Doc. N° 2279
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Contribuições
A chegada da Corte Portuguesa ao Brasil Contexto político
Leonardo Ferreira Kaltner *
Em 2008 comemoramos o bicentenário da chegada da família real ao Brasil, que ocorreu em 1808. Com este artigo, pretendemos estabelecer uma leitura do contexto desta transferência da administração portuguesa para a sua colônia de então, a partir de uma referência à Política Internacional da época e por um estudo da inserção do Brasil nesta política internacional, a Weltpolitik do século XIX. 1- Alguns fatores geopolíticos: Dentro de um contexto de colonização, na relação metrópole-colônia, que já vigorava por trezentos anos, subitamente, o Brasil rompe o pacto do exclusivo colonial em 1808. Esta ruptura, entretanto, não se dá por via revolucionária, como a independência dos Estados Unidos em 1776, nem como a revolta em 1792 no Haiti. Temos que a Conjuração da elite mineira de 1789, ano da Revolução Francesa, e a Conjuração popular baiana de 1798 falharam no Brasil, sendo sua resultante apenas uma mostra do nacionalismo incipiente conjugado a uma necessidade de superação da antiga estrutura colonial. Daí podemos inferir que a crise do sistema colonial era patente e esta situação mostrava-se insustentável em todos seus limites. A economia extrativista do ouro de Minas Gerais e dos diamantes de Goiás estava em plena decadência, desde o terceiro quartel do século XVIII, para uma população de cerca de 2.400.000 habitantes que se dividia entre mestiços, escravos africanos, imigrantes europeus, em sua maioria de portugueses e espanhóis, então, somados aos índios que ainda viviam em isolamento, como no Espírito Santo, até mesmo na localidade de Resende no atual estado do Rio de Janeiro. Não havia, então, as missões jesuíticas, pois estes haviam sido expulsos do Brasil pelo déspota esclarecido da coroa portuguesa, o Marquês do Pombal, em 1759. Uma pecuária de charque no Sul, a decadência dos engenhos e do ciclo de cana-de-açúcar no Nordeste, o Norte quase inexplorado, apesar do extrativismo, e um Sudeste que transferia-se do ciclo do ouro para o do café, configuravam a estrutura do país em que, por vastas extensões de terra, a única produção era a agricultura de subsistência. Assim, a industrialização passava ao largo e somente em 1930 a produção industrial poderia ultrapassar a agrícola, sob a ditadura de Vargas, encerrando o ciclo do café. A crise e o fim do regime colonial no Brasil do século XIX deve-se a um evento surpreendente e único, que iria amalgamar o país de vez em uma estrutura impossível de passar por qualquer separatismo, formando uma nação continental e unificando politicamente o território. Embora o ciclo do ouro tivesse mobilizado desde os bandeirantes paulistas desde o início do século XVIII, aos investidores de Pernambuco e Bahia, gerando uma economia interna interdependente, como o ciclo da pecuária no sertão nordestino e no Sul do país, será apenas com a chegada da corte do Príncipe regente D. João que todos os esforços separatistas do Brasil serão abafados por uma máquina administrativa que terá o poder de gerir um Estado com tal território, como força de contenção. A chegada da corte portuguesa solidifica o país e o prepara como novo ator geopolítico de força regional, que sustentará as questões de limites e fronteiras, pelas quais a diplomacia brasileira de todo o século XIX trabalhará, até o início e meados do século XX. O Império que substituirá a colônia, como máquina administrativa em 1822 é um fenômeno único das relações Europa-América desde o século XV. 2- Cronologia: Devido uma das resultantes da Revolução Francesa ter sido o imperialismo napoleônico, e estarem França e Inglaterra em atrito pelo mercado mundial, Portugal, ainda monárquico, tendo se aliado à Inglaterra desde o Tratado de Methuen, que transferiu boa parte do ouro arrecadado ao Brasil à Inglaterra, acabou sendo sitiado pelo general francês Junot em 1807. D. João, Príncipe regente, filho de D, Maria I, a rainha louca, e de Pedro II, assumira a regência do trono desde 1792. Temeroso da invasão francesa em 1807, D. João reuniu sua corte e partiu rumo ao Brasil em uma armada no momento em que Junot entrava em Lisboa. Assim, a corte portuguesa transferia sua sede para uma colônia e dava-se a inversão colonial, fato único na história das colonizações. A chegada de D. João deu-se na Bahia, devido a mau tempo enfrentado na viagem. Lá chegando, assinou a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que abria os portos brasileiros às nações amigas, o que marcaria a entrada do Brasil no scenarium da política internacional como um novo ator, que se subordinaria durante todo o século XIX à Inglaterra. Em março de 1808, a corte reuniu-se no Rio de Janeiro, capital administrativa da colônia desde 1763, uma cidade portuária em que dois terços da população era composta de escravos. O séquito de D. João, ao chegar ao Brasil, compunha-se de cerca de 10.000 pessoas, incluindo uma elite erudita para compor a burocracia e modernizar as instituições públicas do Estado. A nova administração apenas substituiu um patriomonialismo local da colônia por outro, de cunho pré-nacional. O patrimonialismo local da colônia, que imbuía desordenadamente as atribuições aos cargos administrativos, sobrelevando funções locais, como o Juiz de Paz, gerava poderes quase absolutistas sobre uma localidade, mesclando o poder político com o controle e propriedade das terras. Todavia, esta elite administrativa reinol, recém-chegada, logo se tornaria também uma elite proprietária de terras, compondo em seguida o grupo de Barões-do-café do Vale do Paraíba, o que daria sustento à independência e ao Império em 1822 sob o reinado de D. Pedro I, descendente de D. João VI. D. João chega em 1808 como príncipe regente de Portugal ao Brasil. Em 1815, a morte de sua mãe, D. Maria I, a louca, faz o príncipe regente ascender ao trono sendo coroado D. João VI, elevando o Brasil à condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarves, que eram as possessões portuguesas na parte ocidental da África, Algarves, pois, significa em árabe ocidente. Em 1820 a Revolução Constitucionalista do Porto em Portugal, de cunho liberal, provoca a saída de D. João VI do brasil, deixando seu filho Pedro como principie regente, este que se tornaria D. Pedro I em 1º de dezembro de 1822, primeiro Imperador do Brasil, sendo coroado após a sagração, quando o Brasil já havia comemorado sua independência em relação à Portugal, em 7 de setembro de 1822. Começava então o domínio inglês durante todo o período imperial até à República em 1889 e o ciclo do café. D. João VI foi o fundador do Banco do Brasil, primeira instituição financeira do país, trouxe também ao Brasil uma importantíssima missão artística francesa que dará os primeiros contornos nacionalistas à arte brasileira, e influenciará em muito o Romantismo brasileiro, em seguida, que representaria a consolidação do espírito da nação. Encontramos ecos do francês Ferdinand Denis, primeiro a retratar o índio brasileiro em um romance, na obra indigenista de José de Alencar. Ao mesmo tempo, as gravuras de Debret estão entre os mais importantes registros do cotidiano do Brasil desta época. Podemos citar também o romance de costumes Memórias de um Sargento de Milícias, escrito por Manuel Antônio de Almeida em 1852, publicado em folhetins, que narra perfeitamente os costumes do Rio de Janeiro da época do rei e serve-nos como guia da vida cotidiana do Rio de Janeiro da época do Rei. 3- O Brasil em contexto geopolítico Não sucedeu ao Brasil ser explorado diretamente como a Índia no século XIX por uma Companhia de comércio, ao mesmo tempo, o Brasil independente não assinou tratados desiguais, como a China de então, com diversas nações européias, a fim de evitar um neocolonialismo direto, por invasão territorial. Também a partilha da África do século XIX não foi o modelo de neocolonialismo que se aplicou no Brasil. A fim de estendermos mais este assunto, relativo à inserção do Brasil do século XIX na Weltpolitik e sua posição sui generis, precisamos como contraponto falar de algumas outras experiências neste contexto. Podemos notar que a fragmentação da América espanhola sempre interessou à política internacional levada a cabo pelo Império, desde o início da questão da Cisplatina com D. João VI, até à guerra do Paraguai com D. Pedro II, em meados do século XIX, e mais além, já na República, fazendo este processo parte de construção de uma liderança regional, sempre apoiada pela Inglaterra, contanto que o Brasil não tentasse anexações. A cisão da América espanhola, o fim do sonho de Bolívar, devido à intensa rivalidade entre caudilhos, proprietários de latifúndios, favoreceu à política econômica imperial brasileira, de concentrar o país como produtor de um gênero agrícola tropical, uma herança da época colonial com o plantio da cana, só que desta vez com um novo produto: o café. O Brasil era o seu maior exportador mundial, monopolizando o mercado e cartelizando a produção, durante todo o século XIX. Em troca o país foi um grande importador de produtos industrializados ingleses e de capitais, contraídos em empréstimos para custear a máquina pública imperial. Desta forma, preso neste ciclo econômico, o Brasil só se industrializaria depois da crise de 1929, somente quatro décadas após a abolição da escravidão em 1888. Os Estados Unidos surgem então como contraponto. Devido, pois, ao isolacionismo que praticaram em todo o século XIX, na marcha para o oeste, consolidando a abertura para o oceano Pacífico como seu limite territorial. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, havia uma retroalimentação da economia, em que o norte e o leste produtor forneciam sua produção internamente para o oeste e sul, alimentando-se de seu mercado interno toda cadeia de produção, expandindo-se em uma industrialização consistente. Podemos notar que a inserção do Brasil na Weltpolitik do século XIX foi uma experiência precipitada, ao menos planejada dentro de um contexto em que uma elite agrária nacional não privilegiava a industrialização e ainda se valia tardiamente da escravidão como mão-de-obra, seguindo a herança colonial. A mentalidade política de total subserviência à Inglaterra, nos discursos que apregoavam o liberalismo, camuflavam o maior interesse, que seria a manutenção do sistema colonial baseado na monocultura latifundiária escravista, totalmente alheia à industrialização e às revoluções burguesas. Este era o caráter político do Império que se inicia com o Reino Unido do Brasil de D. João. A contrapartida deste fator é uma população marginal crescente nas cidades brasileiras do século XIX e o incremento da agricultura de subsistência, fato que ocorreu com parte dos imigrantes europeus do século XIX que imigraram para a decadente área rural do antigo ciclo do ouro: Minas Gerais, para o Sul do país e São Paulo, até mesmo para a capital do Rio de Janeiro. Em meados do século XIX, o grande fluxo de imigração causado pela transição entre a 1ª Revolução industrial e a chegada da 2ª Revolução industrial, quando o carvão e o ferro deram lugar ao petróleo e o aço, atingiu tanto os Estados Unidos quanto o Brasil. Levas de europeus, mormente alemães e italianos migraram para ambos os países. Enquanto nos Estados Unidos os imigrantes formaram uma força de trabalho e expansão a favor da industrialização e da marcha para o oeste, no Brasil fomentaram a superação do modelo de mão-de-obra escrava nas fazendas de café, transferindo o eixo econômico do vale do Paraíba para São Paulo, surgindo o trabalho assalariado no Brasil. E, no final do século, São Paulo já era o maior produtor de café do país, o que desvencilhou o eixo do poder político do econômico e sentenciou o Império ao fim, porque sua base escravista findou-se com a Abolição em 1888, o que acarretou o advento da República em 1889. Todavia, uma leva destes imigrantes europeus adentrou as matas inexploradas do país e passou apenas a viver de agricultura de subsistência, cujo descendente direto é o Brasil caipira que Darcy Ribeiro descreve em O Povo Brasileiro. 4- As festas da corte: Dentro de um contexto social, a chegada da corte ao Brasil e a criação subsequente do Império significaram para o país uma consolidação de sua identidade e afirmação de sua unidade na pluralidade étnica. Porque foram únicas as grandes festas da corte, desde à chegada da Bahia ao Rio de Janeiro, desde a coroação de D. João VI, a aclamação, coroação e casamento de D. Pedro I. A ascensão ao trono de D. Pedro II ainda menino em 1831, os bailes imperiais, as procissões, todas as solenidades públicas, que foram vistas por escravos, imitadas por funcionários da corte, pela população, somaram-se às festas religiosas gerando um caráter público e oficial da celebração, da comemoração, no sentido etimológico do termo, como uma oficialização do Estado. A chegada de D. João ao Brasil em 1808, tanto o desembarque na Bahia, quanto o definitivo no Rio de Janeiro, com seu séquito de 10.000 pessoas, foi seguida de grandes festas, acompanhadas por préstitos de senhoras com suas melhores jóias e roupas, como relatam os cronistas, seguidas por homens do clero, com salvas de canhões, junto a dezenas de embarcações embandeiradas, seguidos de cortejos, com o estandarte da cidade indo à Igreja do Rosário, que tinha à frente uma guarda da nobreza em trajes de gala, magistrados, o Senado da Câmara, cujo estandarte era empunhado por um jovem vestido de seda preta com plumas brancas em um grande chapéu. Em seguida via-se um grande cabido, erguido entre dois círios e o pálio com a família real. A procissão teria sido como um desfile régio triunfal, que nunca havia sido visto na América antes. O povo observava a tudo, vendo as fileiras de soldados, as pedras preciosas, ouvia aos clarins, aos sinos de todas as igrejas juntos, aos fogos-de-artifício, e era coberto com pétalas de flores lançadas pelo cortejo das crianças e das moças. Estes foram dias de canto, dança e festa, de uma cidade cuja população era predominantemente escrava, o Rio de Janeiro de 1808. As festas intermináveis para a corte se tornaram a característica central desse período. Esta máquina estatal que se mostrava dispendiosa, favoreceu na capital uma vida cultural diferenciada das outras experiências da América, a presença da corte era, pois, apoteótica. O Rio de Janeiro, ainda em total fase de construção, uma capital sem palácio, gabava-se da corte. A violenta cidade portuária convivia com os ilustres fidalgos recém-chegados em um clima carnavalizante que encontramos no romance Memórias de um Sargento de milícias, de uma vida social agitada dentro de um contexto de urbanização caótico, em que diferentes classes detinham condições de vida quase próximas, por uma total carência de recursos como saneamento e alimentação, ao mesmo tempo que a guarda pública caçava vadios e arruaceiros pelas ruas mal construídas da cidade e acabava com festas e algazarras noturnas de uma típica cidade portuária, como temos narrado no romance. A cidade era festiva, esta seria uma herança colonial desde sua fundação em 1565, quando serviria apenas para festas religiosas do calendário católico e festas de grandes senhores rurais, que visitavam-na com suas famílias a fim de realizarem casamentos, batizados, retratando o caráter agrário incipiente do país como exportador de gêneros alimentícios tropicais, cujas cidades serviriam apenas para escoar a produção agrícola e receber as manufaturas e no século XIX os produtos industrializados ingleses. Assim, na aurora do século XIX não se ouvia falar de industrialização na capital do Vice-reino do Brasil, mas ouvia-se o Te Deum cantado em latim pelas igrejas. Não havia operários, mas havia barbeiros, se via doceiras, artesãos e carregadores escravos trabalhando na principal cidade portuária do país de então, que agora contava com um quadro imenso de políticos e funcionários públicos para gerir a sociedade. Bibliografia: CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1997. CERVO, Amado e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: editora da UnB, 2002. FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2002. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Global, 2003. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 32. ed. São Paulo: Nacional, 2003. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. ________. A Era do Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. ________. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. ________. Nações e nacionalismo desde 1780. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 42. ed. São Paulo: Brasiliense,1995. ________. A Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Publifolha, 2000 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
* O autor (*1981) é Mestre em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e cursa atualmente o Doutorado em Letras Clássicas na mesma universidade. A sua dissertação de Mestrado, orientada por Carlos Antônio Kalil Tannus, versou sobre o corpus latino de Anchieta (O Brasil hespérico e a Bela Morte de Fernão de Sá no De gestis Mendi de Saa). Dedica-se à pesquisa do latim renascentista no Brasil e é colaborador do LABRHUM, Laboratório de Renascimento e Humanismo do PPGLC, Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ. Graduou-se em Letras Português-Latim pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O seu projeto final de graduação, orientado por Helênio Fonseca, foi dedicado à análise do português da Carta de Caminha (Alguns comentários filológicos e estilísticos da Carta de Caminha). Realizou seus estudos secundários no Colégio Santo Antônio Maria Zaccaria e no Colégio Federal Pedro II, Unidade Humaitá.
Observação: Os textos e as imagens desta seção da revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Os artigos não expressam necessariamente opiniões do editor