Doc. N° 2282
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Tópicos multilaterais
Portugueses na Índia de Akbar e o caminho místico no diálogo interreligioso
Fatehpur Sikri. Trabalhos da A.B.E., dezembro de 2007
A.A.Bispo
Fatehpur Sikri, Índia. Trabalhos da A.B.E. Fotos de A.A.Bispo A questão do diálogo entre as religiões e as culturas de fundamentação religiosa representa um dos mais prementes desafios da atualidade.
Dentre os mais cruciantes problemas do início do século XXI se situa indubitavelmente a situação conflitante entre determinadas tendências do Islão e do Cristianismo.
Se esse conflito assume dimensões globais, há também outras situações mais limitadas regionalmente, porém similares nas suas dimensões e nos seus incalculáveis riscos. Entre elas se situa a reeclosão de tensões entre o Hinduísmo e o Islão no subcontinente indiano e que podem trazer conseqüências para populações de ascendência indiana em países americanos, em particular no Caribe.
A superação dessas renovadas crises no convívio dos povos exige o diálogo cultural e científico. Apenas o conhecimento mais aprofundado dos diferentes universos culturais, de seus fundamentos e do seu vir-a-ser histórico poderá fundamentar uma aproximação em respeito e quiçá levar à revelação de conceitos e estruturas comuns que possibilitem um entendimento maior.
Esses estudos, porém, não se reduzem ao estudo etnológico do Outro. Deles fazem parte a consideração e a análise das várias tentativas de aproximação e de diálogo do passado, de seus sucessos e das causas de seu fracasso. Somente a partir do conhecimento dessas singulares e tão pouco presentes tentativas do passado é que se poderá trazer à consciência uma história comum de processos de diálogo e de intercâmbio religioso-cultural. Somente com o conhecimento dos êrros e dos problemas do passado é que se poderá possivelmente evitar desenvolvimentos que também levem por fim ao fracasso nas tentativas do presente.
Esse estudo da história intercultural da aproximação e do diálogo religioso também diz respeito ao Brasil, embora o país não conte com os problemas cruciantes relativos aos conflitos atuais que envolvem o Islão. O Brasil se insere, pela sua história missionária, sobretudo pelo papel que os jesuítas exerceram na sua formação em amplo contexto internacional.
Missionários que atuavam no Brasil traziam muitas vezes experiências da Índia , estavam informados dos acontecimentos que ali se processavam ou pelo menos estavam sujeitos a desenvolvimentos da Companhia que foram influenciados pela suas atividades na Índia.
Os portugueses desempenharam, sobretudo a partir de Goa um fundamental papel no diálogo religioso-cultural estabelecido em outras partes da Índia e, a partir de suas experiências e observações transmitidas a Roma, na política eclesiástico-missionária global.
As relações histórico-culturais entre o Brasil e Índia a serem alvo de estudos não se limitam porém à consideração dos elos que vinculavam as colonias no antigo mundo português, no caso entre o Brasil, Goa e outras possessões.
Akbar na história intercultural do diálogo religioso
Sobretudo na atual situação conflitante que envolve o Islão parece ser porém de excepcional significado não apenas salientar o papel exercido pelos representantes da cultura cristã ocidental mas sim lembrar que foi uma personalidade do mundo islâmico que mais se destacou na história intercultural do diálogo religioso: o imperador mogul Akbar (arab. "o Grande" - Dschelal ed-Din Mohammed, Amarkot/Sindh 1542 - Agra 1605)), um dos mais poderosos soberanos do Oriente, protetor das artes e das ciências.
No Brasil, informações sobre Akbar foram transmitidas sobretudo em publicações européias difundidas em círculos de imigrantes:
"Akbar, o contemporâneo poderoso de Isabel da Inglaterra e de Felipe II da Espanha foi um soberano que, Shakespeare, um outro de seus contemporâneos, jamais poderia ter suposto, mesmo na sua mais ousada fantasia. Dominou um império gigantesco, maior do que o Império Romano, que ia de Samarkand até Bengala; mais ainda: organizou esse império de tal forma que este se manteve ainda por dois séculos. (...) Embora muçulmano, tendia mais para o Cristianismo do que para qualquer outra religião. Os muçulmanos rígidos o consideravam como um apóstata e tinham nisso talvez razão; êle não era porém um livre pensador como Frederico da Prússia (...) Antes deixava-se influenciar pela astrologia; uma dessas torres com cúpulas chama-se "Torre dos Astrólogos" e, se a tradição que se conserva desde a época dos moguls até hoje está certa, a sua Côrte era visitada por magos e faquires de todos os países. Ele procurava, porém pela luz. Tinha sempre dúvidas: incomodava-o o Profeta, no Islão, no Bramanismo a estrutura odiosa das castas e da queima de viúvas (êle viajou uma vez 100 milhas para impedir um desses Sati), no Budismo a divinização de Buda e no Cristianismo a sua formulação européia. Há 3000 anos antes dele já tinha tentado um outro soberano, o faraó Echnaton, criar uma religião própria, uma espécie de culto da luz, precisando-se porém dizer, para o seu louvor, que não fêz pressão sobre outros, mantendo-se paciente e benevolente."(Alphons Nobel, Tempel, Palaeste und Schungel: Indische Reise von...Bonn a. Rhein: Verlag der Buchgemeinde 1929, 108-109, Trad. A.A.B.)
Esse Grão-Mogul da Índia era neto de Babur, da família Timur, que lançara as bases para o domínio de sua casa no Noroeste da Índia na batalha de Panipat, em 1526. Assumiu o reino de seu pai, Humayun, em 1556. Conseguiu ampliar consideravelmente o território herdado, extraordinariamente complexo na multiplicidade de religiões e culturas. Torna-se compreensível, assim, inclusive por razões práticas e estratégicas, que Akbar procurasse aproximar hindús e muçulmanos. Entretanto, essa perspectiva na análise histórica dos esforços de Akbar não tem a amplitude suficiente para explicar de forma justa e nas suas dimensões mais profundas a obra do Grão-Mogul no fomento do intercâmbio de idéias e da aproximação das religiões. O enfoque mais adequado deve considerar a inserção de Akbar na história da mística islâmica e o extraordinário significado dessa mística no próprio processo de expansão do Islão na Índia.
Deve-se lembrar que o avô de Akbar, Babur, trazia, da Ásia Central, o costume da veneração dos sufis. Babur traduziu o Risala-yi walidiyya de Ubaidullah Ahrar (+1490), principal mestre Naqshbandi e que, em um de seus poemas se autodesignava como "servidor dos Derwische". Após a sua chegada na India, dirigiu o seu interesse à ordem Chishti, uma ordem mística que permaneceria estreitamente ligada com a casa dos moguls. (Annemarie Schimmel, Mystical dimensions of Islam, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, USA 1975; ed. alemã: Mystische Dimensionen des Islam: Die Geschichte des Sufismus, München: Diederich 1985, 2a. ed. 1992, 506-507). Entre os conselheiros e amigos de Akbar encontravam-se nomes vinculados com correntes místicas, tais como o do poeta Faizi e o do historiógrafo e chanceler Abul Fazl, filhos de um místico vinculado com o movimento Mahdi (op.cit. 507).
Akbar e o mundo português
O primeiro contato do imperador Akbar com o Cristianismo deu-se através das atividades de dois portugueses, um de nome Cabral e outro de Pereira, este um sacerdote secular. Tudo indica que conseguiram despertar a atenção do soberano, embora não estando teologicamente à altura de sustentar disputações que satisfizessem a erudição religiosa e o desejo de aprofundamento místico do imperador.
Em 1579, Akbar mandou que viessem "sacerdotes da ordem de São Paulo". Essa singular denominação da congregação desejada parece provir de um mal-entendido. Provavelmente teriam procurado os portugueses elucidar a Akbar as doutrinas cristãs com base em escritos do apóstolo Paulo, salientando a questão hermenêutica na compreensão bíblica e explicar as alegorias-chaves que dizem respeito tanto ao Cristianismo como ao Islão (Ismael e Isaaque como filhos de Abrahão).
Em 1580, correspondendo a esse convite, três jesuítas, Jerônimo Xaver, Manoel Pinheiro e Rodolfo Aquaviva se dirigiram a Akbar. Permaneceram no centro de poder do império Mogul até 1583. Em 1591 e em 1595, outros jesuítas retornaram. Foram recebidos solenemente pelo soberano e este deu permissão a seus súditos que aceitassem a nova religião, sem dúvida um fato de extraordinário signifícado na história intercultural das religiões.
Em 1582, Akbar procurou caminhos para uma harmonização das diferentes religiões, concentrando-as pelo que tudo indica no denominador comum da fé em Deus. Esse intuito mereceria muito maior e mais justa atenção nos estudos interculturais, uma vez que foi e continua a ser considerado negativamente por autores vinculados com as diferentes religiões como sendo expressão eclética ou sincrética. As suas intenções mereceriam uma consideração mais sensível com base nas concepções da mística que dominavam a sua espiritualidade e que, pelo que tudo indica, se orientava segundo uma mística da luz. Procurou assim lançar as bases de uma nova religião que unia o Hinduismo e o Islão, denominada de Din-ilahi.
Somente essas profundas bases espirituais e místicas permitem compreender o intuito de Akbar de que o seu período de govêrno constituisse uma época de ouro, caracterizada pela paz terrena, reflexo da paz eterna. A própria pintura dos moguls mostra motivos simbólicos que simbolizam essa era de paz, tais como o da convivência entre leões e cordeiros.
Os dados históricos disponíveis indicam uma extraordinária tolerância e boa vontade no fomento do diálogo por parte do imperador. Akbar chegou a oferecer meios financeiros aos missionários cristãos, dava sinais de respeito para com imagens e a bíblia, permitiu que se construissem igrejas e que se fizessem pregações. Presenciava a realização de disputações com os eruditos muçulmanos. Parece que chegou a louvar o Cristianismo como a mais perfeita das religiões. Somente supondo-se que tivesse compreendido o sentido místico dos mistérios católicos é que se pode compreender a sua surpreendente veneração por representações natalinas, pelo presépio, a ponto de, em 1599, deixar que uma lapinha ficasse montada por 20 dias. Apesar de sua formação islâmica, que não permitia a representação figurativa e a veneração de imagens, respeitava imagens de Maria e da vida de Cristo, permitindo que fossem apresentadas às suas mulheres.
Entretanto, Akbar não se converteu oficialmente ao Cristianismo, continuando a manter os contatos e as trocas de opiniões com místicos do Hinduismo e com eruditos do Islão. Ainda assim: que diferença com relação ao procedimento dos soberanos europeus da época, que em freqüentes ordens mandavam, de longe, sem conhecimentos mais profundos das circunstâncias locais, para que se destruíssem pagodes e impedissem a realização de "festas gentílicas"!
A literatura missiológica relativa a Akbar, que considera o convite feito a Rudolf Aquaviva SJ (1550-1583) e as conversações que com este teve, inclusive o relato deixado por Monserrat e referências aos contatos que manteve com Jerônimo Xaver, em Agra, e com Pinheiro, em Lahore, considera porém criticamente essa atitude tolerante de Akbar.
Rodolfo Acquaviva SJ era sobrinho de Claudius Acquaviva, Superior da Companhia de Jesus (1543-1615) e que entraria na história missionária pelo caráter severo e disciplinador que imprimiu às atividades dos jesuítas. Entrara na Companhia em 1568, deslocara-se para a Índia em 1578, tornando-se professor de filosofia em Goa.
A sua atividade na corte de Akbar em Fatehpur Sikri, onde alcançou a simpatia do imperador, pode, assim, ser vista à luz da história dos estudos de filosofia praticados em Goa. Tornou-se posteriormente cabeça da missão de Salsete, sendo martirizado próximo a Cuncolim. A sua beatificação deu-se em 1893.
A aproximação das religiões no contexto do mundo indo-islâmico do Norte da Índia enfraqueceu-se no período do govêrno de Dschihangir, filho de Akbar. Mesmo assim, ainda em 1610, três príncipes obtiveram o batismo em cerimônia solene, dirigindo-se à igreja em cortejo repleto de insígnas de dignidade, montados em elefantes e ao som de trompetes. Com o seu sucessor, Dschihan, iniciou-se então um novo período de conflitos entre as religiões, como assinalado por obras de história missionária (por ex. a obra clássica de J. Schmidlin, Katholische Missionsgeschichte, Steil 1924, 250-251)
Fatehpur Sikri - cidade símbolo do diálogo interreligioso
O centro das disputas de Akbar com representantes das diferentes religiões - e local de presença dos jesuítas portugueses - foi um edifício na cidade de Fatehpur Sikri.
Fatehpur Sikri, a cerca de 32 km ao sudoeste de Agra, representa uma das mais singulares obras da história da arquitetura e do urbanismo. Foi uma cidade especialmente construída por Akbar para ser capital a partir de 1556, com base em experiência religiosa e correspondendo a concepções místicas. Embora tendo sido capital apenas por reduzido espaço de tempo (de 1571 a 1585/6, e novamente em 1619), manteve a sua extraordinária significância simbólica como cidade abandonada, quase que cidade encantada através dos séculos. Desde 1986 é considerada pela UNESCO como parte do Patrimônio Cultural da Humanidade.
Segundo a tradição, o Grão-Mogul, sem filhos, orou na ermida de Salim Chishti, místico profundamente respeitado. Este profetizou que teria três filhos. Nascendo-lhe o primeiro, Akbar edificou uma cidade no local onde o religioso vivia, ali edificando um santuário Sufi.
A cidade, de consideráveis dimensões, em arenito vermelho, foi construída em poucos anos e abandonada ao terminar-se a edificação do forte de Agra. A primeira obra edificada foi uma mesquita, a Grande Mesquita Jami Masjid, em cujo pátio construiu-se o mausoléu para o santo. Este local é considerado até hoje como milagroso, a êle se dirigindo mulheres sem filhos. Edificaram-se palácios de vários andares, jardins, uma praça de mercado, uma usina de água, corredores cobertos, terraços e escadarias. A cidade foi edificada sem madeira e sem ferro. Bancos e mesas foram construídos de pedra.
Na sua relação com Agra, Fatehpur foi comparado por alguns viajantes - de forma um tanto inadequada - com aquela que existiria entre cidades européias próximas umas das outras, tais como Potsdam e Berlim, Versaiiles e Paris, Winsor e Londres. Na realidade, porém, parece ainda ser tarefa não realizada uma análise aprofundada do projeto urbano e arquitetônico dessa singular cidade, uma análise que não pode ser efetuada sem conhecimentos da mística islâmica e do Hinduismo. Uma prova de que somente uma concepção mística e de cunho interreligioso pode elucidar a estrutura e o conteúdo dessa cidade é o uso de princípios estéticos aparentemente conflitantes harmonizados entre si. Em colunas, arquitraves e em motivos decorativos constata-se a interação de elementos culturais hindús e islâmicos, isso certamente não apenas como expressão inconsciente de um ecletismo derivado de "processos aculturativos" mas sim da decisão consciente e refletida de harmonização de princípios geométricos do Islão com tradições de imagens do Hinduísmo. Tem-se aqui uma certa relativação do príncipio da não-representação de imagens da tradição muçulmana, uma transgressão que não pode ser vista como tal, mas sim interpretada segundo princípios de análise adequados e baseados no edifício místico do próprio Islão. Assim, constatam-se representações em mármore nas paredes com cenas de animais, com papagaios e faisões balançando-se em ramos e tigres se movimentando nas selvas, quadros que certamente possuem a sua explicação na linguagem poética da mística do sufismo. A poesia criada na Côrte Mogul era influenciada por conceitos e imagens desenvolvidas na Pérsia, os seus versos era impregnada de sentimento místico, de amor divino e humano, de símbolos de flores e pássaros. Na obra de Akbar, outro elemento característico da linguagem mística se insere, a das fontes, dos rios, dos locais aprazíveis de repouso para aqueles imbuídos de amor e anelo, de saudade infinita, de melancolia e de nostalgia.
Os esforços de Akbar em harmonizar o pensamento e as expressões do Hinduísmo e do Islão seriam retomados pelo seu bisneto Dara-Shikoh (1615-1659), sucessor no trono, filho mais velho de Shah Jahn e Mumtaz Mahal, aqueles eternizados no Taj Mahal. (...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).