Doc. N° 2283
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Da perspectiva hindu na história cultural indo-islâmica e o mundo português
Reflexões em Amber. Trabalhos da A.B.E. 2007/2008
A.A.Bispo
Amber, India. Trabalhos da A.B.E. 2007/2008. Fotos de A.A.Bispo John H. Parry, no seu muito divulgado estudo sobre a Era dos Descobrimentos, traduzido em vários idiomas, salientou de modo surpreendentemente expressivo que não apenas os portugueses teriam vindo de fora, ou seja, foram estrangeiros que aportaram na Índia. Também os muçulmanos tinham vindo do Exterior, também êles não eram originais do mundo indiano. (The Age of Reconnaissance, London: Weidenfeld & Nicolson; trad. al. Das Zeitalter der Entdeckungen, Munique: Kindler 1979, Deutscher Taschenbuch Verlag 1983, 437-438).
Poucas décadas após a chegada dos portugueses, a Índia vivenciava uma nova invasão. Em 1524, Babur, um descendente de Dschingis-Khan pelo lado materno, atacou a região então em decadência do sultanato de Delhi, restaurando a supremacia islâmica. A sua invasão deu-se com uma pequena tropa de cavalaria da Ásia Central e, especialmente, com a participação de uma artilharia de turcos. Originou-se, assim, o período do poderoso reino de Delhi sob a soberania da casa de Timur, o império que se tornaria conhecido como dos moguls.
Se os sultanatos muçulmanos já estabelecidos há séculos poderiam ser considerados como tendo sido originariamente vindos de fora, isso valeria ainda mais para os moguls:
"Eles eram de origem centro-asiática, o seu idioma materno era turco-tátaro e a língua oficial e de escrita era a persa. (...) Como os moguls constituiam exclusivamente um povo de guerreiros terrestres, e os portugueses representavam uma potência marítima, houve de início apenas contatos indiretos. Resultaram das tentativas do sucessor de Babur, Humayun, de ampliar a sua soberania aos sultanatos independentes do Norte da Índia, em particular no estado litorâneo de Gudscharat (...). O soberano de Gudscharat, que temia uma invasão dos moguls, pediu o apoio aos portugueses, a eles permitindo (...) que edificassem uma feitoria-fortaleza em Diu, incluindo outras concessões territoriais. Humayun interrompeu a sua invectiva, os portugueses, porém, permaneceram em Diu e repeliram todas as tentativas de recuperação do sultão de Gudscharat (...). Diu transformou-se, após Goa, em um dos principais pontos de apoio do poder português na Índia." (loc.cit.)
Segundo essa exposição dos fatos, percebe-se, em linhas gerais, uma situação política conflitante dentro do próprio mundo islâmico e da qual ter-se-iam aproveitado os portugueses. Se para os hindús ambas as partes representavam intrusões de fora, os portugueses poderiam surgir como inimigos de inimigos, criando variáveis possibilidades de aproximação e distanciamento no jogo de poder.
O estudo dessas situações não tem apenas interesse histórico-político, uma vez que se tratava também de predomínio religioso e religioso-cultural. Análises diferenciadas e justas aqui precisam considerar primordialmente o ponto de vista daqueles sobre os quais agiram os invasores. Até hoje, porém, para o mundo ocidental, tem-se considerado sobretudo a perspectiva portuguesa, uma vez também que para ela é que se dispõe de maior número de fontes mais acessíveis.
Um experimento cultural motivador de reflexões seria o de se procurar empaticamente situar-se na posição do mundo hindú submetido ao mesmo tempo à dominação muçulmana e à influência vinda dos europeus. A partir desse referencial poder-se-ia então tentar compreender o desenvolvimento histórico tal como visto através do prisma indiano. Esta tentativa representaria até mesmo um pressuposto para um diálogo científico-cultural mais aprofundado.
Amber, capital do Rajasthan
Um dos principais contextos que se oferecem para estudos referentes ao mundo cultural hindú nas suas relações com a supremacia islâmica é aquele do Rajasthan, a "terra dos Príncipes", uma região de maior consciência de si, de sua história, de sua cultura e de suas tradições do subcontinente.
Nos primeiros séculos da presença portuguesa na Índia, a capital do Rajasthan era Amber, uma das mais poderosas e influentes cidades da Índia.
Ambar era desde 1150 residência dos Rajputanos das Kachhawaha. À época da chegada dos portugueses, os soberanos hindús viviam em parte um período de recuperação do antigo poder devido aos já mencionados sintomas de fraqueza que apresenta o poderio islâmico do sultanato de Delhi. Quando, em 1524, os muçulmanos ganharam nova força com a invasão de Babur, o reino de Rajputana foi vencido em 1527, um ano após a tomada de Delhi.
O Palácio, com caráter de fortaleza, constituido por várias pátios e conjuntos, perfazendo um um complexo quadricular edificado em patamares, foi construído entre 1600 e 1727. Através de um pré-portal chega-se ao pátio baixo, o Jalb Chowk, onde ficava a guarda. Ao lado da escadaria que leva ao próximo patamar, encontra-se o templo Shila Devite com uma figura de Kali, trazida d Bengala por ordem de Akbar, no início do século XVII.
O próximo pátio, alcançado por um caminho que faz 90° por motivos estratégicos, vê-se a sala de audiência (Diwan-i-Am). Essa sala representa uma obra arquitetônica de especial significado para o estudo da influência islâmico-mogul na construção e nas concepções estéticas hindús. A edificação em forma de sala possu colunas duplas externas, de arenito vermelho, e internas, de mármore amarelado. As consolas dos capiteis são derivados da arquitetura de templos hindús e ornamentados com figuras de animais. O telhado, em forma de baldaquim, com teto espelhado, orienta-se segundo as construções de Akbar.
A entrada para o próximo pátio faz-se através da porta do Ganesh Pol, provavelmente construida por Jai Singh II. Nele se manifestam mais uma vez aspectos da arquitetura dos Mugul (nichos e arco) e do Rajasthan (trabalhos em pedra e miniaturas). A imagem do Ganesh na entrada marcava a separação da área pública daquela privada.
No pátio encontra-se a sala de audiência particular, o Jai Mandir, com colunas e decoração em espelhos no teto e motivos vegetais nas paredes. No telhado, em forma de terraço, levanta-se o pavilhão Jass Mandir, de cujas janelas engradadas se avista o vale.
Na parte ocidental do pátio há a Sala da Satisfação (Suk Nias), de cujo centro corre um canal em mármore, com finalidades de refrigeração. Daqui chega-se ao último pátio, antigamente o núcleo do palácio.
Somente no ano de 1727 seria a capital transferida para Jaipur, distante a ca. de 10 km a nordeste. Foram, portanto, mais de dois séculos de história cultural que necessitariam ser considerados com mais cuidado. A partir dessa transferência, Amber permaneceu sobretudo como decantada cidade histórica, objeto de visitas de estudiosos e turistas.
Imagem de Amber no mundo ocidental
Uma das descrições em relatos de viagens que chegaram ao Brasil através dos imigrantes é aquela que se encontra na Grant's Tour Around the World; with incidents of his Journey..., de J. F. Packard, publicada em São Francisco, em 1880. O viajante, um eneral norte-americano, foi acompanhado nessa viagem por John Russell Young, correspondente do New York Herald. Esse relato testemunha a imagem romântica que marcou e marca Amber.
"Durante a estadia em Jaipor, fêz-se uma visita ao antigo palácio de Amber. O correspondente assim descreve a visita: - Para ir a Amber precisamos montar elefantes; após algumas milhas há colinas, as estradas estão destruídas e viaturas não podem trafegar. Poderíamos ir a cavalo ou a camelo, mas o marajá nos enviou elefantes, e aqui eles se encontram, esperando por nós à sombra de mangueiras, virando-se para o lado da rua como a saudar-nos. (...) O elefante principal trajava uma vestimenta vermelha em especial homenagem ao general. O elefante significa autoridade na Índia, e quando se deseja dar a máxima honra ao hóspede oferece-se a êle um elefante como montaria. O marajá também enviou cadeiras para aqueles que preferiam viajar mais facil e suavemente.
Abandonamos o plano e subimos a quente e sêca colina para Ambar. Durante a subida, a planície abria-se perante nós, e à distância da área marrom e árida descortinamos os jardins, e o verde do vale veio a nós, trazendo-nos alegria, como uma lembrança de casa (...) Passamos por pequenos templos, alguns deles em ruína, alguns com oferendas de cereais, flores e frutas, alguns com sacerdotes e pessoas no culto. Nas paredes de alguns desses templo víamos a marca da mão humana como se tivessem sido mergulhadas no sangue e apertadas contra a parede branca. Contar-nos que era costume quando se desejasse algum bem dos deuses, anotando o voto pondo a mão num líquido e imprimindo-a na parede. Isso era para lembrar a divindade do pedido e do orante (...)" (pág. 593)
O longo texto dedicado a Amber nessa obra inclui não apenas descrições das circunstâncias da visita, de paisagens, de edificações. Inclui também julgamentos de valor da cultura e das artes a partir de um ponto de vista cristão e de critérios estéticos do século XIX. Critica-se assim uma tendência à superficialidade, ao pêso dado à diligência artesanal, negando-se um valor real como obra à arte oriental presente em Amber. O efeito geral seria agradável, mas tratar-se-ia apenas de efeito. Não poderia ser comparado com o trabalho sério, constatado em catedrais góticas ou mesmo em edificações muçulmanas. Essa diferença no conteúdo e no valor artístico estaria fundamentado na diversidade das concepções religiosas. De um lado, o homem que, na sua imaginação, veria deuses por todos os lados, de outro lado, o homem que crê em um só Deus.
"What strikes youin this Oriental decoration is its tendency to light, bright, lacelike gosamer work, showing infinite pains and patience in the doing, but without any special value as a real work of art. The general effect of these decorations is agreeable, but all is done for effect. There is no such honest, serious work aas you see in the Gothic cathedrals, or even in the Alhambra. One is the expression of a facile, sprightly race, fond of the sunshine, delighting to repeat the caprice of nature in the curious and quaint; the other has a deep, earnest purpose. This is an imagination which sees its gods in every form - in stones and trees and beasts and creeping things, in the stars above, in the snake wriggling through the hedges the other sees only one god, even the Lord God Jehovah, who made the heavens and the earth, and will come to judge the world at the last day." (pág. 595)
Uma outra obra divulgada sobretudo entre imigrantes alemães, com longas referências a Amber ,foi o relato de viagens de Alphons Nobel, de título "Templos, Palácios e Jângal" (A. Nobel, Tempel, Paläste und Dschungel: Indische Reise. Bonn: Verlag der Buchgemeinde 1929). Também esse livro inclui julgamentos de valor de fundamentação religiosa, aqui claramente católicas: "Será que a Índia vai se tornar cristã? Esperamos. Mas quando? Talvez em cinqüenta, talvez porém apenas em cem anos. O caminho para o coração desse povo é longo" (pág. cit. 181).
A descrição de Amber é feita no contexto de um diálogo com um guia muçulmano, o qual menciona fatos anedóticos da história e dos costumes hindús, o desejo de matar os macacos que prejudicavam os edifícios, fato proibido pelos hindús e vários outros elementos literários que situam a descrição da cidade e de suas obras de arte em quadro geral de conotações irônicas. Assim, a menção dos macacos é feita logo após a menção de que ainda hoje o castelo de Amber seria fantasticamente belo. Por todo o lado se constataria imitações do Palácios de Agra e Delhi. Essa beleza derivaria talvez do emprêgo de motivos animais, proibida aos muçulmanos de Agra e Delhi. (op.cit. 153-154)
Desses dois exemplos de literatura de divulgação ocidental percebe-se a parcialidade injusta e pouco sensível para a percepção dos valores culturais próprios dessa obra excepcional de arquitetura e urbanismo. Uma mudança de critérios de avaliação exige a reflexão sobre o próprio condicionamento cultural e a tentativa de percepção de um ponto de vista da própria cultura hindú.
Uma estória elucidativa de processos culturais
O aguçamento de sensibilidade para determinadas questões proporcionado por debates atuais dirige a atenção a processos de labilidade e de auto-afirmação experimentados pela cultura do Rajasthan no confronto e na interação com a supremacia islâmica.
Essa situação ambivalente entre esferas culturais hindús e islâmicas pode ser percebida de uma estória constantemente relatada na literatura e repetida até o presente. Segundo ela, o soberano hindú Mân, em situação de vassalagem com relação ao grande mogul Akbar, retornava da sede do Império em Agra sempre impressionado com a riqueza e suntuosidade de seus palácios. Cada vez que chegava a Amber, dava início a novas construções e ao refinamento da pompa externa. Adquiria novos elefantes, serviçais e mulheres para o seu harém. O povo o considerava um mago. Uma vez caíra na imprudência de afirmar perante o mogul Jahangir que possuiria uma residência muito mais preciosa do que as de Delhi e Agra. Considerando essa afirmação como ameaçadora para a supremacia muçulmana, o mogul enviou um exercito contra Amber e ordenou que o novo palácio fosse incendiado e as mulheres do harém levadas a Delhi. O soberano hindú acedeu. Uma embaixada veio ao comandante, trazendo-lhe 50 elefantes com valiosos presentes, entre eles uma princesa do harém. O soberano de Amber mandou dizer que tinha apenas feito aquela afirmação por constatar que o palácio de Delhi era mil vezes mais belo do que o seu; na verdade, moraria em quartos pintados de branco. O comandante, entrando na cidade para convencer-se do fato, encontrou, de fato, o edifício em questão pintado de branco. O soberano tinha mandado pintar de cal todos os mosaicos e trabalhos em relêvo. A tentativa de se considerar o ponto de vista hindú dos processos histórico-culturais pressuposto para o diálogo intercultural exige, assim, que o estudioso procure posicionar-se empaticamente em determinadas situações históricas caracterizadas pela supremacia de outras esferas religioso-culturais, no caso indo-islâmicas, levando em consideração mecanismos de instabilidade e de autoafirmação delas decorrentes.
As reflexões tiveram prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).