Doc. N° 2284
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Problemas de imagens no encontro religioso-cultural com o Hinduísmo Dois casos: Lingam e Ganesha 35 anos da publicação do Tratado sobre o Hinduísmo do Pe. Gonçalo Fernandes (1616) por J. Wicki S.J.
Reflexões em templos de Jaipur. Trabalhos da A.B.E.
A.A.Bispo
Imagens de templos em Jaipur, Índia Jornadas de estudos da A.B.E., dezembro de 2007 Fotos de A.A.Bispo Análises das relações Índia-Europa-Brasil sob o aspecto dos estudos interculturais não podem ser empreendidas sem a consideração especial do Hinduísmo e de sua recepção no Ocidente.
Não se trata apenas da religião da maioria da população da Índia (82%) e referencial religioso-cultural para o estudo das interações e tensões com outras correntes religiosas no universo multidimensional do subcontinente.
Trata-se de um dos mais antigos sistemas de concepções religiosas do mundo, remontante a tradições e a obras que constituem patrimônio de toda a Humanidade e, assim, fundamentais para estudos culturais em geral.
Com os imigrantes indianos, o Hinduísmo já há décadas transplantou-se para vários países da Europa e do continente americano, sobretudo ao Caribe. A crescente importância da Índia, de seus técnicos e especialistas no mundo globalizado faz com que se torne presente em esferas sociais de influência e liderança do Ocidente.
Estudos do Hinduísmo são desenvolvidos em universidades e centros de estudos dedicados às ciências das religiões e da cultura. Portugal, o Brasil e outros países de língua portuguesa deveriam desempenhar um papel especial nesses estudos.
O mundo de língua portuguesa possui uma antiga e notável tradição de pesquisa do Hinduísmo, de esforços de sua interpretação e de procura de caminhos para interações religioso-culturais. Esses esforços se inseriram no contexto mais amplo da história missionária e, conseqüentemente da polêmica relativa à acomodação cultural de séculos passados.
Trata-se, assim, de uma inserção em contextos de dimensões globais não só da Europa ocidental. Dizem respeito a tentativas, conceitos e práticas de mudança religioso-cultural de especial interesse para os estudos culturais da atualidade.
Justamente a reorientação culturológica de áreas das ciências humanas deve levar necessariamente ao reconhecimento da importância dessas fontes do passado. Além do mais, esses documentos são fontes históricas de importância para a própria Índia, testemunhando fases do próprio desenvolvimento de concepções e práticas.
Tratado sobre o Hinduísmo de 1616
Obra extraordinária dessa literatura é o Tratado sobre o Hinduísmo do Pe. Gonçalo Fernandes Trancoso, escrito em Madura, em 1616, editado, com notas críticas por José Wicki S.J. e publicado pelo Centro de Estudos Históricos Ultramarinos de Lisboa, em 1973.
Tudo indica que essa obra ainda não foi avaliada à altura de sua magnitude pelo esforço intelectual de seu autor e pelo seu significado na história da observação de cunho etnológico e intercultural.
P. Gonçalo Fernandes S.J. (1541- 1621), cuja biografia, em seus parcos traços, é considerada e discutida por J. Wicki, parece ter-se dirigido à Costa da Pescaria, na Índia, após 1576. Em 1583 já era sacerdote e procurador da missão local.
Quase que seguindo critérios científicos apenas posteriormente convencionalizados, P. Gonçalo Fernandes procurou realizar um levantamento de fontes exaustivo e selecionado, tomando cuidado especial na escolha de tradutores. Esses passaram os textos sânscritos para o tamul para que o Pe. Gonçalo Fernandes pudesse lê-los, uma vez que dominava esse idioma malabar.
O editor do Tratado, J. Wicki, salienta esse cunho por assim dizer científico da obra:
"Estudando o assunto com os meios disponíveis, encontrei que este Tratado no conjunto, na sua sobriedade e imparcialidade, parece quase moderno. Os muitos nomes de divindades, livros, autores, árvores e numerosas palavras sânscritas e tamuis podem ser identificadas nas póprias línguas, (...). Também a descrição da vida dos bramanes corresponde à realidade. Mais difícil é saber se os numerosos mantrãos (orações em sânscrito) assim soam, contudo um bom número pude identificar; até a Gâyatri, oração secretíssima, é tal qual se reza (...)" (op.cit. XXV)
Problemas de leituras de imagens: dois casos
Um dos problemas fundamentais que dificultaram no passado e dificultam no presente o diálogo intercultural e interreligioso parece residir não tanto em nível abstrato das concepções mas sim no da percepção visual, por assim dizer semiológico da leitura das imagens. Pressupostos culturais distintos quanto à conotação de imagens parecem impor obstáculos dificilmente superáveis para o observador ocidental. Apenas uma reflexão sobre a natureza cultural desses pressupostos e o conseqüente relativar de julgamentos baseados no repúdio ou estranheza que causam determinadas imagens podem abrir caminhos para um entendimento mútuo mais profundo. Se os europeus não refletem sobre a impressão negativa que povos de outras culturas podem ter à primeira vista de representações da Paixão ou de martírios, por estarem acostumados a interpretá-las teológicamente no seu sentido mais profundo, necessitariam considerar que uma questão similar se coloca na perspectiva do hindú. Ter-se-ia aqui, portanto, um problema de natureza especificamente cultural e cuja análise seria necessária para a superação de possíveis mal-entendidos na aproximação e no diálogo intercultural. Nesse estudo, seria necessário tratar de questões relativas às múltiplas possibilidades de leituras de imagens nos diferentes contextos. Se uma cultura religiosa, por exemplo, é marcada pela proibição da representação de imagens, como no Islão, há o perigo de haver uma tendência irrefletida para julgar que as imagens de outras religiões representem reproduções da Natureza Criada, o que nem sempre é necessariamente o fato. Também os muçulmanos utilizam-se de imagens, por exemplo de vegetais ou flores, pois sabem que são representações visuais de imagens poéticas de conteúdo teológico, e não reproduções realistas. Com relação ao Cristianismo, o contato com o Hinduísmo parece ter sido prejudicado há séculos pela constatação superficial de imagens que levaram e levam os europeus a situações de espanto, escândalo e repúdio.
Lingam
O estudioso ocidental que viaja pela Índia tem até hoje a sua atenção despertada pela freqüente representação fálica que encontra em templos, oratórios e nichos. À frente desse símbolo encontra-se em geral a figura de um boi (Nandi).
Trata-se, assim não de uma imagem, mas de um conjunto de imagens que representam um complexo acontecimento passado, decantado pelo mito mas, pelo que tudo indica, perenemente vigente. Esse conjunto simbólico testemunha nada menos do que a força da veneração de Shiva, marcando a fisionomia de cidades e edifícios com os seus símbolos: o tambor duplo em forma de ampulheta, o arco-e-flecha, a cobra, o terceiro-olho e outros. Venerado como Criador, Conservador e Destruidor, com diferentes formas de manifestação correspondentes a essas características, verdadeiro dançarino cósmico, é visto como modêlo do Yogi, dos ascetas e como fundamento da doutrina da Yoga. Essas representações simbólicas que tanto chamam a atenção do visitante ocidental se referem à divindade como portadora da força vital e criadora.
O observador ocidental, devido a seus pressupostos culturais, vê em geral com estranheza e utilização sagrada desse símbolo.
Já no seu Tratado, o Pe. Gonçalo Fernandes referiu-se várias vezes ao falo e parece que essa freqüência indica a estranheza que possivelmente quis transmitir aos leitores católicos, corroborando os negativos julgamentos de valor que faz nas suas conclusões. Faz a relação do jogi com o símbolo: "o jogi que hé o mesmo lingam e mais ensellente alma" (pág. 159) Dedica todo um capítulo (32) para "O modo de pôr o lingam que pera sempre á-de-estar, que parece responder à consegrasam das nosas igrejas" (op.cit. 183 ss.). É surpreendente a quantidade de informações que oferece a respeito das práticas rituais relacionadas com o falo. Registra também a oração que manifesta o vínculo do símbolo com a força criadora:
"O mandiram hé: 'Eu faço puxei a vós que sois hum só e o sois o primeiro e sois o que fizestes o mundo, vós mesmo sois o equiam, vós sois o que estais em o corasam de todos, vós recebei este comer" (...)'Vós, que sois o mundo e que sois a alma universal e a Paraatumam, vos comemos". (op.cit.187)
No capítulo 34, após mencionar a localização de Shiva no coração do homem, trata detalhadamente dos rituais relacionados com o lingam. Na conclusão da primeira parte de sua obra, tratando da propriedade das decisões de autoridades eclesiásticas em proibir ritos bramânicos, diz: "Á-se porem de advertir que tudo o que até aqui se tem dito, asim de sacrificios com de llavatorios e mais serimonias, asim de comer como de llavatorios, ett. com os mandirõis da llei, não nos pode fazer nem mandar fazer senão bramanes, e asim os pandarás que fazem puxei ao llingam não no fas(em) senão os da seita de Xiven com sinco lletras que sam as seguintes: Om na-ma Xi-va-ya. (...)" (op.cit. 218)
Em resposta a proposições do P. Nobile, o P. Gonçalo Fernandes trata também do lingam: "e não avendo mundo, elle o criou e, conforme aos meritos e demeritos de cada hum, fes as castas nobres e innobres, e fes todas as mais cousas e está em os corações de todos, e assim o que der a gloria a todos será senhor do mundo universo." (...) "todas estas cousas se achão no lingão e que o lingão hé inmortal, por onde dis elle que o lingão hé o que fes este mundo, pois nelle se acham estas cousas". (op.cit. 304) Uma superação dos problemas e do mal-estar que causa esse símbolo aos olhos de religiosos ocidentais e que dificultam o diálogo intercultural somente poderá ser alcançada se houver uma formação de simbologia e hermenêutica mais diferenciada de representantes religiosos e de estudiosos. Nesse sentido, dever-se-ia considerar o significado desse símbolo na Antigüidade greco-romana e no Judaísmo e, sobretudo, as possibilidades que teve de reinterpretação cristã, considerando-se, entre outros aspectos, a sua relevância em correntes gnósticas. Perceber-se-á, então que esteve relacionado com conceitos fundamentais da filosofia e da teologia, ou seja, com o da Criação e do Logos.
Ganesha
O visitante da Índia se surpreendeu no passado e se surpreende hoje com a constante presença da imagem da divindade com cabeça ou tromba de elefante: Ganesha. Essa imagem é representada em portas, portões, arcos e altares de concorridos templos, representando uma das mais populares divindades do Hinduismo. Essa popularidade pode ser explicada pelas características que lhe atribuem e que estão relacionadas com aspectos positivos, benfeitorias, bons augúrios, proteção aos viajantes, superação de obstáculos da vida. Naturalmente, o sentido mais profundo dessa veneração deve ser vista em nível conceitual, filosófico e teológico. Segundo o mito, Ganesha foi filho de Shiva e Parvati, divindade da Sabedoria. Para os cristãos, a representação de divindades com traços animais foi contínuo motivo de escândalo, sobretudo, no caso, por lembrar imagens da Sagrada Família.
O Pe. Gonçalo Fernandes trata pormenorizadamente de Parvati no capítulo 29 de sua obra "porque etando este grande deos (Shiva) no mais insigne lugar de huma serra de Caillajo en hum trono, vendo baillar e cantar a sobredita Parpadi, sua molher, com muita reverencia e acatamento e devasam e tremor, fazendo ao sobredito senhor do univerço a sumbaia astamquam, que hé tocar com todos os membros no cham, e com as mãos junts dize: "Senhor, eu queria perguntar a urigen de todos os mundos (...)" (pág. 160)
Também no caso da representação de Ganesha, seria necessário, para a superação de mal-entendidos, que os estudiosos ocidentais considerassem a presença da imagem do elefante na história do simbolismo. Como em outros casos, o estudo da literatura mais remota do Cristianismo, da literatura judaica de influência helenística e sobretudo o de correntes gnósticas do passado poderia abrir caminhos para uma visão menos superficial de representações animais de cunho simbólico e, portanto, mais refletida e menos emocionalizada. As discussões terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).