Doc. N° 2290
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Mesquitas em culturas não-islâmicas e islamização de culturas De poesia e imagens
Reflexões em Quwwatuli-Islam Masjd, Nova Delhi. Trabalhos da A.B.E. 2007/2008
A.A.Bispo
Quwwatuli-Islam Masjd. Reflexões em Nova Delhi. Trabalhos da A.B.E., dezembro de 2007. Fotos de A.A.Bispo A construção de mesquitas em cidades européias que apresentam considerável parcela populacional de imigrantes de países islâmicos e seus descendentes é um dos assuntos mais polêmicamente discutidos na atualidade de vários países.
De um lado, reconhece-se o direito de exercício religioso desses numerosos grupos populacionais em espaços adequados e dignos. De outro lado, teme-se que a construção de mesquitas representativas seja expressão e instrumento de poder, que fira o sentimento religioso da maioria cristã e que descaracterize até mesmo a imagem ocidental de cidades e bairros. Também se discute político-culturalmente a equivalência de procedimentos uma vez que há obstáculos à construção de igrejas cristãs em alguns países islâmicos.
Os argumentos são diversificados e incluem considerações de cunho histórico-cultural e arquitetônico. Discute-se não apenas a altura de minaretes, se esses são ou não mais altos do que as torres das igrejas. Em questão coloca-se também o estilo das construções, e hoje arquitetos de renome procuram criar projetos esteticamente avançados. Em alguns casos procura-se demonstrar que tais construções não necessitam ser imutavelmente convencionais, ou seja, que concepções formais à altura da tecnologia e das correntes estéticas da atualidade podem respeitar determinadas características consuetudinárias.
Problemas de adaptação ao meio, de integração sensível e discreta na sociedade recipiente, de harmonização de concepções orientais e ocidentais passam a ser rediscutidas à luz desse debate atual.
Sente-se, porém, a necessidade de estudos histórico-culturais mais aprofundados e diferenciados, uma vez que a questão da construção de mesquitas em regiões não-islâmicas não é recente.
As fontes medievais e da época dos Descobrimentos apresentam numerosos dados a respeito da transformação de igrejas em mesquitas (exemplo Hagia Sofia) ou de mesquitas em igrejas (exemplo Cordoba) quando da ocupação de regiões, e da tolerância ou não relativa à existência de edifícios religiosos da Cristandade no mundo islâmico ou vice-versa. Sempre se constata a importância da questão sob o aspecto simbólico-cultural e de imagens de comunidades e nações.
Mesquitas no Brasil
Para o Brasil, o problema não se apresenta com a mesma atual importância daquela de países europeus que possuem hoje significativa parcela populacional islâmica proveniente da imigração. Entretanto, também no Brasil poder-se-ia levantar questões relativas à arquitetura de mesquitas na sua inserção ou não no contexto histórico-cultural e no desenvolvimento das idéias estéticas do país.
Aqui cumpriria considerar, entre vários outros, o exemplo da mesquita de São Paulo, na Avenida do Estado. Entre os nomes de autores de projetos que poderiam ser salientados, poder-se-ia mencionar o de Paulo Camasmie, descendente de imigrantes, formado em 1934 e autor dessa e de outras obras que oferecem problemas à análise cultural da imagem urbana no Brasil (exemplo Catedral Ortodoxa do Paraíso, São Paulo).
Profundidade e diferenciação histórico-cultural da questão
A discussão atual e os estudos históricos relativos à construção de mesquitas em contextos não-islâmicos (e de igrejas em regiões muçulmanas) teem sido desenvolvidos quase que exclusivamente sob a perspectiva de uma situação conflitante entre o Islão e o Cristianismo. Nesse sentido, a questão surge enserida em problema tratado por diversas vezes em seminários, conferências e simpósios da A.B.E. e relacionado sobretudo com os fundamentos conceituais da ordenação simbólica da cultura que elucidam as bases tipológicas de tal conflito. Sob o enfoque dos estudos euro-brasileiros, tem-se considerado sobretudo situações que se inserem no âmbito da Reconquista da Península Ibérica e de suas extensões e conseqüências no Norte da África e nas regiões africanas e americanas alcançadas e influenciadas pelos portugueses e espanhóis. Nesse âmbito, expressões culturais da tradição brasileira foram analisadas nos seus elos com similares manifestações de outros países americanos, europeus, africanos e do Oriente.
Entretanto, questões relacionadas com a análise arquitetônico-cultural de mesquitas relativamente a seu contexto não se limitam a situações marcadas pelo confronto do Islão com o Cristianismo. Este é o caso, por exemplo, de mesquitas e de outras edificações muçulmanas existentes em regiões de expansão do Islão na Ásia e na África não caracterizadas predominantemente por culturas de cunho cristão. Esse fato levanta a questão da suficiente amplitude das análises até agora desenvolvidas.
No sistema simbólico, a tensão islâmico-cristã pertence à dimensão anti-típica, embora as suas expressões em geral se processam em nível do tipo. Nesse último nível, uma tensão relativamente aos judeus seria compreensível a partir das bases simbólicas do sistema (Ismael/Isaaque). Como porém se compreenderia que povos de outras religiões - por exemplo hindús - fossem enquadrados num tipo cujo anti-tipo fosse cristão? Em outras palavras: poderia ser o hindú ou membro de outra religião não de fundamentação bíblica "tipo" do cristão? Essa questão, que seria respondida negativamente segundo perspectivas tradicionais, demonstra que as análises do sistema simbólico até agora encetadas necessitam ser aprofundadas. Se a relação de tensão disser respeito a outro sistema conflitante que não o tipológico-antitipológico, então tratar-se ia de um sistema de concepções e imagens mais abrangente do que aquele e, segundo uma perspectiva histórica, provavelmente anterior.
Cultura islâmica na Índia e estudos euro-brasileiros
Essas e outras questões podem ser particularmente consideradas em contextos histórico-culturais marcados pela presença do Islão na Índia. Nos estudos euro-brasileiros, quando se considera a Índia, dirige-se a atenção primordialmente à presença dos portugueses e à missionação cristã desenvolvida a partir do contato e da presença lusa em alguns pontos da costa indiana. A inserção desse desenvolvimento num contexto global da tensão entre a Cristandade e o mundo islâmico tem sido considerado sob vários aspectos, entre outros segundo enfoques dirigidos ao conflito religioso e à competição comercial e econômica. Menos freqüentemente tem-se considerado a situação de tensão existente entre a esfera islâmica e o mundo hindú na própria Índia, uma complexa situação político-cultural interna na qual os cristãos portugueses interagiram.
Nos estudos interculturais, porém, torna-se necessário um aguçamento maior da sensibilidade para perspectivas internas das regiões do mundo atingido pelos portugueses. No caso da Índia, a atenção se dirige necessariamente à situação conflitante existente entre hindús e muçulmanos, aproveitada politicamente pelos europeus e favorecendo o seu estabelecimento e permanência. Passadas décadas da integração dos antigos territórios portugueses na Índia independente, não parece ser mais adequado desenvolver os estudos respectivos somente a partir da perspectiva histórica determinada pelo antigo passado colonial. Essa mudança de ângulo de perspectiva, necessária para que se possa tratar do desenvolvimento histórico a partir de outro referencial, exige o estudo da situação histórico-cultural em regiões que desempenharam de fato papel determinante na história política e religiosa da Índia.
Significado de Delhi para os estudos interculturais
Uma dessas regiões é a de Delhi, de central significado no passado e no presente - capital do país , naturalmente pouco considerada em fontes históricas relativas à antiga Índia Portuguesa. Estas se referem compreensivelmente sobretudo a Goa, Cochim, Diu, Baçaim e algumas outras regiões relativamente de menor significado a partir da perspectiva indiana.
Uma obra difundida entre imigrantes europeus no Brasil do passado oferecia, já no início do século XX, uma expressiva visão do significado histórico-cultural da região de Delhi e de suas antigas mesquitas.
"Antiquíssimo chão da pré-história mítica do país é a região de Delhi. Aqui se desenrolam as mais antigas partes da Iliade índica, o Mahabharata, que trata da luta dos Pandava com os Kuru, aqui, no local da futura Delhi fundou-se segundo ela Nudischthira, o herói e rei dos filhos de Pandu, a sua brilhante capital Indraprastha. Os seus irmãos dirigiram-se a partir daqui a todos os pontos cardeais e subjugaram soberanos e povos; Nudischthira, então, na sua capital, ondem o mestre-encantador Asura Maya construira-lhe um magnífico palácio, celebrou a festa sacrificial solene de sua sagração a rei, na presença dos reis em vassalagem, sacerdotes e unumeráveis pessoas de todas as classes. (...)
Há um outro local onde se manifeste de forma mais impressionante a mudança e a retomada de destinos humanos?
Fatos históricos estão certamente nas bases dos antigos epos, mas não é possível fixá-los cronologicamente. Segundo estudos pormenorizados pode-se datar a luta entre Kuru e Pandava talvez entre 1200 e 1000 A.C., ou seja, na mesma época, na qual a nossa usual cronologia coloca a Ilias. Não se pode dizer se Indraprastha não foi fundada sobre uma outra já existente, como na antiga Troia. (...)
Numerosas gerações de soberanos seguiram-se umas às outras nesses lugares históricos, das quais pouco sabemos. O nome Indraprastha desapareceu, a designação atual Delhi surge ao redor de 57 A.C. como nome da cidade fortalecida que o Radschah Dilu construiu em local mais ao sul da atul Delhi (...) Combates e destruições ocorreram na região até que, no ano 1191, os muçulmanos da Ásia ocidental chegaram com aquela cultura e arte que hoje empresta a grande parte da Índia o seu caráter e que atingiu sobretudo em Delhi o seu maior brilho.
A magnificência e a grandeza com as quais esses conquistadores desenvolveram a sua soberania pode ser hoje vista nos restos grandiosos de construção, que podemos ver nos restos da sua mais antiga fundação urbana, a Mesquita Kutub-ul-Islam e o Kutub-Minar." (Wegener, Georg, Delhi, in: Rund um die Erde: Moderne Weltreisen, Hg. Th. Andersen, s/d, 517-525, 519, Trad. A.A.B.)
A mais antiga mesquita da India
Conhecida como Quwwatul-Islam (Poder do Islão) Masjid é a mais antiga mesquita da India e hoje um dos mais impressionantes conjuntos arquitetônicos da capital. Consiste de uma área retangular de 43,2 m. por 32,8 m, cercado por edifícios construidos por Qutbuddin Aibak, da dinastia Hamluk. Foi completada em 1187. Na sua edificação foram empregados elementos provenientes de templos das antigas religiões das populações conquistadas, entre elas colunas decoradas e outros elementos arquitetônicos de 27 templos hindús e jaínos. Entre os recursos empregados no intuito de islamizar espaços e construções pode-se salientar a colocação de uma divisória em frente da sala de oração, trabalhada com faixas de inscrições, desenhos geométricos e arabescos. Entretanto, os historiadores da arte salientam a vigência de concepções ou de práticas culturais hindús na construção, perceptíveis no uso de linhas onduladas de cunho naturalista.
Mais tarde, a mesquita foi ampliada por Shamsuddin Iltutmish (1211-36) e Alauddin Khalji (1296-1316). As partes edificadas por esses dois sultões apresentam decoração exclusivamente islâmicas, com figurações geométricas e escritas.
Interferência de estilos
A consideração dessa mesquita histórica da Índia pode ser feita não apenas sob o pano de fundo da conquista islâmica de região não-islâmica e da reutilização de materiais provenientes de templos de outras religiões. A interferência de motivos geométricos e de letras com aqueles de cunho vegetal revela-se como de muito maior relevância do que a da simples testemunha de encontro de culturas. Indica expressões visuais de concepções do mundo e do homem e que se relacionam com as bases simbólicas investigadas pela análise cultural. O emprêgo de motivos vegetais e animais na arquitetura indo-islâmica, porém, é mais complexo do que aquele sugerido por um modêlo simplista que coloca uma civilização de orientação mais espiritual, abstrata, com outra de cunho naturalista resultante de maior dependência do mundo sensorial. Entre outros aspectos, o emprêgo de motivos naturais pode ser poético-metafórico por parte da cultura islâmica, ou seja lido como imagens de conceitos abstratos e verbais.
Em todo o caso, ter-se-ia aqui um conjunto de problemas relacionados com a concepção e a leitura de obras arquitetônicas que, apesar de sua contextualização histórico-cultural, não deixa de ter significado para a atualidade. Não se pode esquecer que a arquitetura do Moderno, evitando decorações, evita também referências explícitas ao mundo vegetal e animal. Considerando-se as exigências que hoje decorrem de uma orientação do pensamento arquitetônico segundo critérios de maior sensibilidade para com o meio ambiente impõe-se a necessidade de estudos que possam abrir novas perspectivas.
As discussões terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).