Doc. N° 2294
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Tópicos Multilaterais
Saudade em Portugal e no Brasil e a Mística da Saudade no universo indo-islâmico
Reflexões no Palácio de Agra, Índia, patrimônio mundial (UNESCO).Trabalhos da A.B.E. 2007
A.A.Bispo
Palácio dos moguls de Agra, Índia Jornadas de estudos da A.B.E., dezembro de 2007. Fotos de A.A.Bispo "Como é que se pode descrever com palavras mortas essa obra magnífica da arte de construção humana na sua magnificência que estarrece e que sempre se supera a si própria?
A respeito falo como o poeta, que deve sabê-lo; pois é a sua matéria. Estamos no castelo dos moguls em Agra, nos encontramos no teto do palácio de Schah Dschehan e aqui descansamos, dirigindo o olhar às salas cobertas de mármore, às cúpulas douradas do antigo harém e à planície do rio Dschumna, na qual, à distância de cerca de 3 quilômetros, se eleva aos céus indianos a catedral-mausoléu de Mumtadsch i Mahal" (...) Como é que relataram os viajantes da India famosos?
Os Indólogos: Richard Garbe, que aqui esteve em 1885, achava que todas as maravilhas de Agra e Delhi perdiam o sentido perante o mausoléu que o Schah Dschehan edificou para a sua esposa preferida (...) O seu colega Paul Deussen, o indólogo e filósofo, visitou Agra em 1893. (...) Ele falava de uma imagem que faria desaparecer todas as preocupações na alma do observador. (...) Um livro antigo, um relato de viagens em francês do soberano russo Soltykoff, de 1842, considera Agra, Delhi e Cairo como sendo as três mais belas cidades do mundo, comparando o burgo de Agra com o Kreml em Moscou (...)"
Nesses termos entusiásticos se expressa o autor de um relato de viagens publicado em coletânea divulgada em meios de imigrantes alemães no Brasil e que descreve a sua viagem "à mais bela obra de arquitetura do mundo" (Kumhardt, Egon, "Reise zum schönsten Bauwerk der Welt", Theodor Andersen (ed.), Rund um die Erde: Moderne Weltreisen, Expeditionen und Entdeckungsreisen in das Innere unerforschter Gebiete in populärer Darstellung, Berlin: W. Herlet, s/d, 219-228)
Local da saudade
Na torre de Jasmim do Palácio de Agra, no interior do Forte, abre-se o mencionado panorama vasto no qual se vê, ao fundo, o Taj Mahal. Foi nesse local que o imperador Shahjahn, construtor dessa obra magna da arquitetura indo-islâmica, mausoléu e monumento de amor e de saudade para a sua espôsa, esteve prêso por ordem de seu próprio filho. À distância podia observar a sua obra: separação entre o amante e a amada pela morte, nostalgia da recordação, distância e visão, todos esses momentos fazem do palácio um local por excelência para para estudos interculturais da saudade.
O Palácio de Agra e a mística indo-islâmica
A construção da residência dos moguls em Agra, no século XVI, foi iniciada pelo imperador Akbar, um dos maiores nomes da história dos esforços interreligiosos. Os seus sucessores Jehangir e Shahjah a ampliaram, criando uma das maiores fortalezas do mundo. Uma muralha dupla, de 2,5 quilômetros de comprimento cerca a área. Construida com blocos grandes de arenito vermelho, a entrada do forte é feita pelo portal gigantesco de Amar-Singh. Um caminho leva ao Diwan-i-Am, a sala de audiência pública com o trono do imperador A decoração surpreende pelos trabalhos de entalhe no mármore, com incrustações de pedras semi-preciosas.
Saudade em estudos lusos
"Saudade é a palavra mais linda, expressiva e maviosa do idioma português, sem par noutras línguas, embora existam algumas de acepção afim." Essas palavras são de um ensaio dedicado à Saudade, de António Borges de Castro, publicado no Porto, em 1980 (António Borges de Castro, Saudade -Ensaio - Etimologia, Significação, Antologia; Porto 1980 [Estudos Mondinenses V]). Elas bem servem para introduzir reflexões que dizem respeito a um conceito e a um sentimento altamente decantados nas expressões culturais de Portugal e do Brasil. Transformado por alguns autores quase que em cerne de uma filosofia cultural lusitana e brasileira, o termo saudade deu origem às mais diversas interpretações. Os estudos interculturais da atualidade, embora partindo de novas perspectivas teóricas, não podem deixar de considerar esse conceito tão divulgado e sempre salientado como de fundamental importância para a compreensão das expressões culturais e do pensamento do Brasil e de Portugal. Uma aproximação atualizada teoricamente pode até mesmo abrir novas perspectivas para um aprofundamento das considerações até hoje feitas e oferecer novos rumos que permitam superar estreitamentos de visões.
No seu citado ensaio dedicado à saudade, António Borges de Castro ocupa-se com a defesa da origem etimológica árabe do termo. Discordando do dicionário português do Padre Bluteau e de explicações de outros autores em parte nele baseados, não aceita a origem latina do termo. A lógica dos principios levaria a outra elucidação de suas origens.
A primeira fonte documental do uso do termo é de 1335, em trova atribuída a D. Pedro e relativa a seus amores com Inês de Castro.
No Leal Conselheiro, o rei D. Duarte, tratando do termo "Suydade", já afirmava a sua singularidade e a sua não proveniência do latim: "E porem me parece este nome de suydade tam proprio, que o latym, nem outro linguagem que eu saibba, nom he per tal sentido semelhante". Define claramente o coração como sede dos sentimentos e da saudade: "Digo que ao coraçom pertencem, donde verdadeiramente nace a suydade, mais que da razom nem do siso".
António Borges de Castro considera ainda definições de D. Francisco Manuel de Melo (Epanáfora amorosa III) e de outros autores. Salienta que A. Garrett, em nota a seu poema "Camões", afirma que Saudade seria "o mais doce, expressivo e delicado termo da língua. A idéia, o sentimento por ela representado, certo que em todos os países o sentem; mas que haja vocábulo especial para o designar, não o é de outra nenhuma linguagem senão da portuguesa".
Esse sentimento da saudade teria marcado a vida histórica dos portugueses, a formação de Portugal, as Cruzadas, a época dos Descobrimentos, a colonização e emigração. Não se percebe bem se todos os autores que trataram do termo dão ao sentimento um significado causal, motor para os destinos dos portugueses ou se seriam esses destinos que teriam marcado o predomínio do sentimento de saudade como marca nacional. O sentimento abrangeria não só as pessoas, coisas e animais, como também a terra natal e os entes queridos falecidos. A saudade teria vindo de toda a parte para onde os portugueses teriam ido, teria nascido do seu mundo, do mundo onde souberam chegar e morrer. Estaria assim vinculada com o amor e a morte, e com os retiros daqueles que sofrem de amor: os jardins, os parques, as fontes e os rios.
A renomada estudiosa Carolina Michaelis de Vasconcelos partia, como a maioria dos autores, de sua etimologia latina. Autora de um dos mais pormenorizados estudos sobre a Saudade, (A Saudade portuguesa, 1914), Carolina Michaelis de Vasconcelos afirmava ser necessário recorrer à analogia, à associação de idéias, ou seja a processos psicológicos para encontrar a chave do enigma e explicar transformações histórico-etimológicas. A substituição do o-i por au teria, assim, aumentado a significação do vocábulo, o seu conteúdo ou sua alma. Entretanto, não aceitava a opinião de abalizados estudiosos que indicavam a origem no termo latino solitatem. O conceito alemão de Sehnsucht também não corresponderia plenamento ao português; teria um conteúdo metafísico, aspirando a estados e a regiões ideais. Para o autor, essa tendência filosófica do alemão faria que o termo tivesse um outro conteúdo do que o da saudade portuguesa. Esta se refereria antes "ao morrer de amor da ternura portuguesa" (op.cit., pág. 11). Para a tradução da palavra portuguesa seriam necessários três vocábulos alemães: Heimweh, Sehnsucht e Wehmut.
Na defesa da etimologia árabe do termo, António Borges de Castro defende a opinião do brasileiro João Ribeiro. Antenor Nascentes teria citado, seguindo referências de João Ribeiro, a opinião de que o termo poderia provir das palavras árabes "saudá" e "suaidá". Considerando as correções gramaticais de A. Zoran Ninitch, António Borges de Castro salienta a probabilidade da explicação de João Ribeiro, mas não na grafia de A. Nascentes, uma vez que não seria própria ao árabe o ditongo au, pelo menos não sem o v. Seria assim, segundo o autor, admissível a probabilidade de uma origem da palavra saudade de "saudah" ou "savdah". Com isso, explicar-se-ia a ocorrência do termo e do sentimento correspondente em outros países, não sendo verdade que só ocorressem em Portugal. Assim, na Sérbia existiria a palavra "sevdah", também pronunciada como "savdah" e que corresponderia à saudade portuguesa. Também na Bósnia, Herzegovina existiriam as mesmas expressões. Significativamente, o bosneano teria psicologia similar à do português: "é muito sentimental, canta as dores ao som do violão, nunca m coro e sempre em lugar êrmo, canções cheias de melancolia e nostalgia, 'mata Saudades'". (op.cit. 14)
O autor termina o seu capítulo dedicado à etimologia com a seguinte frase: "Pelo exposto, julgo também poder concluir, por comparação, que SAUDADE é palavra admiravelmente adoptada, talvez a única que a língua árabe nos deu para exprimir sentimento e que valiosa dádiva!" (op.cit. pág. 16)
Quanto ao significado do termo, o autor parte do princípio de que teria sido mais reduzido no passado. A saudade limitava-se ao "morrer de amor", ao sentido de solidão e de abandono que inspiravam amor. Os dicionaristas definiriam a Saudade como "o sentimento gosto-amargo, as carinhosas sensações que desperta o bem ausente, como 'um sentimento de incompletitude por falta, perda ou distanciamento do objecto, pessoa, lugar, situação, etc. que à nossa consciência se apresenta como um 'bem'." (op. cit. 18)
Resumindo, António Borges de Castro dá várias acepções do conceito de saudade, salientando, entre outros significados, os seguintes:
"a) lembrança pesarosa e agradável que produz em nós a ausência da coisa amada com o desejo de a ter presente e de a tornar a ver, ou facto passado;
b) nostalgia causada pela lembrança de um bem passado de que estamos privados; (...)
e) nome de várias plantas da família das dispsácias e das suas flores rochas ou vermelhas salpicadas de branco;
f) morrer de saudades, traduzindo dor moral, tristeza profunda causada ela recordação de uma pessoa querida que nos morreu;
(...)"
Da Filologia às Ciências da Cultura
A mudança metodológica ocorrida nos últimos anos em várias disciplinas de cunho humanístico levou em geral à superação de tradições de pensamento de cunho filológico em muitos ramos do conhecimento. Também com relação aos estudos referentes ao conceito de saudade, uma consideração mais ampla de contextos e processos culturais pode ampliar o leque de interpretações. Não se trata mais somente de provar a origem árabe do termo e os mecanismos da etimologia histórica atuantes na transformação da palavra. Uma visão mais ampla permite aproximações daquele potencial de significados que os filólogos tiveram sempre dificuldades de compreender e que dizem respeito ao conteúdo psicológico, "ao espírito e à alma", segundo Carolina de Michaelis.
Os estudos respectivos levam aqui não apenas à adoção de um vocábulo do árabe, mas sim de um sentimento de fundamentação mística. Não se trataria aqui apenas de metafísica, como refutado por António Borges de Castro, mas sim de mística, ou seja, de experiência espiritual profunda. Os estudos da mística islâmica salientam a sua relevância para a Península Ibérica e, ao mesmo tempo, dos contextos ibéricos para o seu desenvolvimento. Infelizmente, pelo que tudo indica, os estudos interculturais da mística islâmica nas suas relações com a mística judaica e com a mística cristã, ambas também tão vinculadas com o mundo ibérico, encontram-se ainda pouco desenvolvidos. Torna-se muito difícil tratar questões de prioridade de origens, de influências mútuas e de suas diferenciações. Entretanto, estudos pormenorizados da mística islâmica e de sua história permitem identificar tendências e modos de pensar, conceitos e práticas que levam a uma consideração muito mais aprofundada da esfera de significados do estado de espírito definido pelo termo saudade. Assim o estudo relativo às dimensões místicas do Islão e à história do Sufismo de Annemarie Schimmel surge como obra básica que singularmente abre novos caminhos aos estudos lusos e luso-brasileiros. (Annemarie Schimmel, Mystical dimensions of Islam, The University of North Carolina Press, Chapel Hill, USA 1975; ed. alemã: Mystische Dimensionen des Islam: Die Geschichte des Sufismus, München: Diederich 1985, 2a. ed. 1992).
Nas considerações do contexto místico no qual se inseria o sentimento da saudade no pensamento e na prática do Islão cumpre partir de suas relações com o amor e com o coração. Os elos entre o amor e a saudade podem ser constatados no pensamento e na doutrina de um dos mais influentes teólogos do Islão medieval, Ghazzali. Esse religioso salientava que o principal seria a vida do coração, desde que em sintonia com a lei. Teria sido essa doutrina que, segundo A. Schimmel teria possibilitado que um sufismo moderado tivesse influenciado a vida do muçulmano médio, possibilitando a sua larga difusão.
A saudade no Islão, saudades de Deus, vinculava-se também com a dor pungente, o sofrimento e a morte. As orações, segundo Kharawani (1034) queimavam em amor e saudade ou anelo cruciante, e pedia-se que a alma não fosse entregue à morte antes de ter sido impregnada de Deus. A morte exterior surgia como um objetivo em si, pois suprimia o ego que sofria com a separação entre o amante e o amado.
Bases hermenêuticas e imagens poéticas
Os fundamentos desse pensamento que une a saudade à separação entre o amante e o amado seriam de origem bíblica. Ghazzali relata a historia de Abrahão que, chamado pelo anjo da morte, se negou a segui-lo, pois não acreditava que Deus matasse alguém que tanto o amasse; ouvira, então, a admoestação: teria êle visto um amante que se negasse a ir ter com o seu amado? O amante que teria aprendido a compreender a morte como ponte que levaria ao amado entregaria a sua alma com um sorriso que poderia ser comparado com uma rosa.
A esfera do amor místico na história do pensamento islâmico era tão vasta e complexa que vários místicos procuraram sistematizá-la segundo graus e expressões. Assim, Bayezid partia da existência de quatro naturezas do amor, comparáveis a ramos de árvores, e Abu Talib al makki falava de 9 aspectos.
Os corações daqueles que "entendem" são ninhos do amor, os corações dos amantes são ninhos da saudade, os corações dos saudosos os ninhos da confidencialidade (op. cit. pág 193).
Essa profusão de imagens poéticas da literatura mística islâmica oferece caminhos para a interpretação das representações vegetais na arquitetura indo-islâmica. Tais pinturas e incrustrações de plantas, sobretudo de flores, não representam meras ornamentações de cunho naturalista, mas sim emblemas poéticos que podem ser lidos. Essa leitura exige, na verdade, profundo conhecimento da linguagem poético-mística, de um repertório de imagens que em parte já caiu em esquecimento. A perspectiva intercultural pode, aqui, abrir novos caminhos inclusive para a história da arte indo-islâmica. Assim, sabe-se, do português, conforme acima mencionado, que saudade também é "nome de várias plantas da família das dispsácias e das suas flores rochas ou vermelhas salpicadas de branco". Ora, essas flores podem ser observadas nas paredes do Palácio de Agra!
Vínculos da saudade mística islâmica com concepções marianas
Os Sufis amavam de forma especial Maria, Maryam, a imaculada. Ela foi compreendida e tratado freqüentemente como símbolo da alma que recebe inspiração e é impregnada pela luz divina. Até hoje constata-se o amor pela virgem como modêlo da pureza no mundo islâmico; provas desse fato podem ser constatas no local do seu suposto túmulo em Éfeso. A A.B.E. aqui desenvolveu estudos juntamente com eruditos muçulmanos, em 1985. Os elos entre o amor a Maria na mística islâmica e as tradições marianas - inclusive musicais - do Cristianismo foram apresentados em manifestações místico-musicais durante congresso realizado em Beirute pela universidade local, em 1999.
Ter-se-ia, nesse elo com as concepções marianas, uma ponte facilmente compreensível entre a mística islâmica e o universo cristão do mundo português.
Os trabalhos terão prosseguimento.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).