Doc. N° 2295
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
111 - 2008/1
Mediação cultural Oriente/Ocidente, rotas terrestres e pousos de caravanas na Índia
Shekhawati, Índia. Trabalhos da A.B.E. 2007
A.A.Bispo
A questão da mediação cultural tem sido estudada em estreito relacionamento com o das vias de comunicação no passado, com os caminhos por mar e terra e com os seus pontos de apoio e repouso.
No âmbito do mundo de língua portuguesa, tem-se dado especial atenção à transmissão de conhecimentos e de elementos culturais do Oriente ao Ocidente através da via marítima a partir da sua descoberta por Vasco da Gama. As viagens de navegação dos portugueses, com fins comerciais - entre outros -, constituem objeto central da pesquisa da época dos Descobrimentos e, com ela, de uma história cultural em contextos globais da era moderna. Vários autores procuraram salientar o significado do comércio como motor das relações interculturais e o papel dos portugueses como comerciantes. Assim, José Alípio Goulart, no seu estudo sobre o mascate no Brasil, procurou caracterizar um tipo humano que indicaria, na sua própria denominação, vínculos com as atividades comerciais dos portugueses no Oriente. "Sabe-se que em 1507 os portuguêses apoderaram-se da cidade de Mascate, na costa sul do Gôlfo de Omã, na Arábia, conservando-a sob seu domínio até 1658. Formara-se, ali, um núcleo aglutinador de mercadores, das mais variadas procedências, inclusive portuguêses que lá compareciam para barganhar e trocar mercadorias com os demais. Acontecia, então - como afirmam Pierre Deffontaines e Tanus Jorge Bastani - que os lusos, ao regressarem a Portugal após tais viagens à Arábia, eram cognominados mascates, como apôdo, devido ao tipo de comércio que praticavam naquela cidade oriental." (José Alípio Goulart, O Mascate no Brasil, Rio de Janeiro, 1967, 30). Esse autor procurou salientar a importância do comerciante perambulante como "carreador de progresso e de civilização para as pequenas cidades, vilas e vilarejos do interior que visitava, nas suas perambulções comerciais, sendo, do mesmo passo, um difusor oral dos acontecimentos, um disseminador da cultura material da época (...)". (op.cit., palavras dos editores, 9)
Rotas terrestres
Também tem-se considerado, nos estudos específicos, as rotas terrestres existentes entre o Oriente e o Ocidente no interior da África, seja passando por Gao, Timbuctu ou outras cidades. Não se tem dado atenção suficiente, porém, à importância das vias terrestres no interior dos países do Oriente, sobretudo da Índia. Foram esses os caminhos para a vinda das tão procuradas mercadorias de várias partes do subcontinente e de outras regiões ainda mais longínquas aos portos onde os portugueses e outros europeus se estabeleceram.
O estudo do intercâmbio não pode ser realizado somente a partir dos portos e das rotas que então deles ou para eles os navios perfaziam. Os pressupostos para esse intercâmbio nos vários pontos do litoral devem ser procurados no interior. Os comerciantes não apenas traziam diretamente mercadorias das mais afastadas regiões como também aquelas obtidas através do comércio nos postos intermediários.
A rêde desses caminhos internos das caravanas, os seus pontos de apoio, as relações internas de contatos humanos, as diferentes situações políticas e religioso-culturais das várias regiões atravessadas e de seus vínculos com estruturas sociais e políticas nos portos precisam ser conhecidos e considerados.
Na tentativa de desenvolvimento de estudos interculturais no sentido mais próprio do termo, a consideração dessas situações internas representa uma necessidade para a superação de perspectivas unilaterais.
Não se pode esquecer que as relações entre os portos e as localidades do interior envolvidas no intercâmbio eram recíprocas. Mudanças na estrutura desses pontos de comércio na costa causavam modificações na rêde interna de comunicações, trazendo consigo o apogeu e a queda de cidades e regiões. A história cultural do interior do subcontinente vincula-se, assim, com situações políticas das zonas litorâneas, e essas relacionavam-se com a política européia global.
Um exemplo: Shekhawati
Uma das regiões que merecem ser consideradas em estudos dos processos interculturais assim esboçados é aquela de Shekhawati. Essa denominação remonta ao nome do soberano Rajpute Rao Shekhaji que, no século XV, apossou-se de grande parte dessa região. Até então, encontrava-se na dependência de Amber, a capital do Rajasthan, e estava obrigada a pagar tributos.
As caravanas que vinham do Noroeste e que cruzavam os grandes centros do Rajasthan - caravanas de comércio, de animais e de transporte de pessoas - tinham que pagar impostos de trânsito aos soberanos locais. Procurando esquivar-se desses tributos, passaram a concentrar-se em Shekhawati, fundamentando um desenvolvimento dessa região a centro de pouso de carregadores e a de mercado livre. Ali se comercializavam mercadorias de Lahore e Peshawar, hoje no Paquistão, assim como aquelas que vinham da rota de Gujarat; os contatos alcançavam a China, o Afganistão e a Pérsia. A pequena cidade transformou-se em centro de comércio de ouro, seda, jóias, ópio, papéis, marfim, tecidos, metais e tabaco, além de produtos alimentícios, tais como arroz, trigo e frutas sêcas.
O desenvolvimento e a existência desse centro comercial dependeram não apenas da situação regional de tributação, mas sim das relações com os locais de exportação. Esse desenvolvimento de Shekhawati apenas foi possívei em época na qual a estrutura das relações comerciais e políticas era tal que os comerciantes mantinham as suas casas no interior. Essa parece ter sido a situação predominante durante os séculos nos quais os portugueses mantiveram a supremacia dos pontos de exportação. Quando os inglêses se estabeleceram e sobretudo ampliaram os portos de Bombai e Calcutá, transformando-os em centros comerciais de primeira grandeza, os comerciantes da região para lá transferiram as suas sedes comerciais. Entretanto, o enriquecimento proporcionado pelo comércio nessas grandes cidades levou à aplicação de meios no embelezamento das moradias nos locais de origem, tornando-as mais representativas.
Casas de comerciantes
Do ponto de vista histórico-cultural, Shekhawati, hoje decadente e quase que abandonada, pode ser vista como testemunho de uma época de apogeu como pouso de caravanas, de mercado interno e, ao mesmo tempo, das conseqüências do enriquecimento de seus proprietários mesmo passada essa fase. Não é uma cidade que foi marcada primordialmente por fortalezas, burgos, portais, templos. mas sim pelas casas mais ou menos representativas de comerciantes. Torna-se, assim objeto de um outro tipo de interesse histórico-arquitetônico, mais dirigido a aspectos pouco considerados convencionalmente, a uma cultura antes de cunho popular e do quotidiano. Justifica-se, assim, um particular interesse para questionamentos de cunho culturológico da atualidade.
Essas casas de comerciantes, as havelis, muitas vezes em estrutura de madeira, serviam à moradia e ao depósito de mercadorias. Elas apresentam interesse não só sob o aspecto especificamente construtivo-funcional mas sim também e sobretudo, na sua ornamentação interna.
Em geral, um grande portal - que permitia a passagem de camelos com carga - levava a um pátio cercado de galerias em vários andares. Havia câmaras de recepção profusamente ornamentadas para o recebimento dos visitantes e denominadas de Baithak. Alguns quartos eram destinados aos membros das caravanas e ao depósito das mercadorias. A vida particular desenrolava-se num segundo pátio.
Os afrescos, exemplos de arte popular, mostram influências orientais e ocidentais. Ao lado de profusa ornamentação vegetal, flores e folhas, as paredes apresentam imagens figurativas de animais e de pessoas. Podem ser constatados temas dos epos indianos, do Ramayana e do Mahabharata. Um motivo freqüentemente pintado foi o de elefantes. Muito mais do que uma simples ornamentação de cunho realista, referente ao transporte, essas imagens possuiam muito mais um valor simbólico, relacionado com a prosperidade e sucesso nas viagens. Sendo os Hawalis também pousos, essas figuras davam as boas vindas aos viajantes. Esse simbolismo relaciona-se também com aquela do deus Ganesha, encontrado em nichos e altares domésticos. Para as decorações foram empregadas tintas de cores vivas, embora sem naturalmente a riqueza de materiais empregados encontrada em palácios e templos.
Para estudos da história da arte popular ou "primitiva", a cobertura de paredes com motivos geométrico-vegetais - quase que como tapetes - é particularmente significativa. Faixas de motivos florais, quase que como interpretação ingênuas de esquemas antigos, surgem em formas justapostas e combinadas. Aqui tem-se a possibilidade de estabelecimentos de relações com outros gêneros de atividades artístico-artesanais, como com a gravura e a impressão de motivos em tecidos. A partir da comparação de modêlos poder-se-ia desenvolver estudos relacionando-os com expressões da cultura popular dos europeus. Abrir-se-iam, assim, novas perspectivas - interculturais - para o estudo da arte popular. Assim, o contato com o mundo ocidental efetuado pelos comerciantes nos pontos de exportação da costa levou ao emprêgo de novos motivos nas pinturas murais, tais como locomotivas e representações da vida quotidiana e lúdica, tais como mulheres em banheiras e brincando em balanças.
Fonduks
Já se tem observado que as havelis sugerem uma certa similaridade com as construções conhecidas no mundo islâmico designadas pelo nome de fonduks. Aqui, estudos comparados mais aprofundados poderiam abrir caminhos de particular significado para os estudos relacionados com Portugal e suas expansões.
A instituição do fonduk ou alfondech dos mudejares foi de importância na Idade Média ibérica e vem sendo estudada como parte de uma política de segregação social. Conhecida com o nome latino de Hospitium maurorum, era localizada dentro das mourarias. Serviam não apenas como estalagem para viajantes e mercadores muçulmanos. Eram também centros de prostituição. Esta função parece poder ser também suposta para alguns dos pousos indianos. Representações de mulheres servindo iguarias a homens, divertindo-se alegremente e outras figurações brejeiras parecem indicar uma atmosfera marcada por certa sensualidade. Se esse for o caso, a ornamentação alegre e colorida das câmaras adquire uma outra conotação.
A consideração desse contexto de pontos de apoio, pouso de caravanas e trocas do passado, com as suas possibilidades de hospedagem e de divertimento para carregadores e comerciantes permite um aguçamento da sensibilidade para novos questionamentos no âmbito dos estudos dos pousos e da vida dos tropeiros nos caminhos no Brasil. "Atualmente, acabados êsses tempos heróicos, o proprietário de alguns lotes de muares cargueiros desaparece quase, no anonimato. É um industrial do transporte, como qualquer outro. Entretanto, mesmo despido dêsse manto de glória que só trazem os séculos, o tropeiro, como classe, ou grupo, tem aspecto interessantíssimo a estudar..." (Aluísio de Almeida, Vida e morte do tropeiro. São Paulo: Martins, 1971, 21
(...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).