Doc. N° 2305
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
112 - 2008/2
Temas em debate
Do "Espírito Cultural do Mercosul" e Mercosul sob a perspectiva dos estudos culturais 10 anos da abertura do centro europeu de estudos da A.B.E. na Alemanha sob o patrocínio da Embaixada do Brasil
A.A.Bispo
Buenos Aires (1-3) e Montevideo (4-6) Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H. Hülskath O relacionamento do Mercosul com questões culturais e a própria dimensão cultural do Mercosul vêm sendo debatidos já há anos. A tematização da necessidade de se focalizar com especial atenção os contextos que se abrem com os intuitos integrativos fundamentados no Tratado de Assunção, assinado em 26 de março de 1991, deu-se já por ocasião de debate organizado pela A.B.E., no mesmo ano, quando se discutiu questões de contextos internacionais nos estudos científico-culturais. O próprio Tratado incluia a dimensão cultural: o mercado comum a ser formado não deveria limitar-se ao comércio de bens; a cooperação nas esferas da economia e da cultura deveria estar a serviço da democracia, da liberdade e da modernização produtiva.
As relações entre o Mercosul e a cultura no debate teórico-cultural foram consideradas sob diferentes aspectos em outros eventos que se seguiram. No âmbito de reflexões encetadas pela visita ao Memorial da América Latina, em São Paulo, em 2007, salientou-se a necessidade de maior precisão teórica no tratamento do tema, levando em considerando o estado de sua discussão nas diferentes regiões e nas várias esferas do conhecimento. Para isso, decidiu-se que, no corrente ano, trabalhos mais pormenorizados deveriam ser efetuados. Seguindo-se o procedimento empregado pela A.B.E., esses trabalhos deveriam ser contextualizados e realizados in loco, incluindo assim observações e troca de idéias nos respectivos países.
Uma das questões que primeiramente foram levantadas disse respeito à necessária distinção dos diferentes enfoques que se têm dado à problemática,. Considerações que partem dos intuitos culturais no âmbito do Mercosul e suas ações e conseqüências não deveriam ser confundidas com aquelas que partem de uma perspectiva teórico-cultural na qual o próprio Mercosul é inserido em contextos e processos histórico-culturais mais amplos. Esta última focalização seria aquela que caberia, de fato, aos estudos culturológicos em contextos internacionais. Por mais estreitas que sejam as relações e interferências entre os dois enfoques, pareceu ser conveniente e necessário distinguir entre as duas perspectivas, uma motivada primordialmente por intuitos econômicos e políticos, de natureza antes pragmática, outra basicamente de análise teórica, de cunho interdisciplinar. Esta perspectiva científico-cultural deve considerar não apenas questões levantadas à luz dos novos intuitos da atualidade como também oferecer subsídios ao esclarecimento de problemas que se colocam na prática.
Relendo um Atlas do Mercosul
Ponto de partida para a releitura de posições e argumentos de textos e pronunciamentos relativos ao Mercosul foi a publicação Mercosul, um atlas cultural, social e econômico/Mercorsur: un atlas cultural, social y económico publicado (Buenos Aires/Rio de Janeiro: Manrique Zago ediciones/Instituto Herbert Levy, 1997), uma coletânea de textos selecionada por Félix Peña e Paulo Manoel Protasio. O projeto institucional dessa obra foi do Instituto Herbert Levy e a edição contou com o patrocínio cultural da Petrobrás e da lei de incentivo à cultura do Ministério da Cultura do Brasil. A razão da reconsideração à distância de 10 anos dessa obra foi o fato de ter sido fonte para pronunciamentos de representantes diplomáticos por ocasião das sessões de inauguração do centro europeu de estudos da A.B.E. na Alemanha. Pareceu ser conveniente fazer-se um balanço do desenvolvimento do pensamento nos últimos 10 anos para um prosseguimento mais refletido dos trabalhos. Esse Atlas, organizado na forma de uma coletânea de textos, foi constituído pelas seguintes partes principais: O Projeto do Mercosul; O Contexto Histórico; O Comércio e as Oportunidades de Investimento e Sociedade, Cultura e Meio Ambiente. Apesar da amplo leque de temas tratados, inclusive tendo um capítulo explicitamente dedicado à cultura, a publicação não deixa dúvidas de que o ponto de partida foi o da perspectiva econômica. Assim, a apresentação, de título "Em boa hora", ficou a cargo do Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique V. Iglesias. Também o artigo inicial, de título "Raízes e Projeção do Mercosul" é tratado por um especialista em relações econômicas internacionais, Félix Peña. Nesse estudo, Félix Peña parte introdutóriamente do sentido de um processo com raízes históricas, considerando o sentido da idéia, o fato de que não se trata de uma criação artificial, nem de um conceito novo, também nem de um fenômeno isolado. Salienta que o estudo do processo integrativo exige uma metodologia adequada que deve refletir realidades específicas e que vai além do fato comercial. A seguir, trata da integração econômica no Sul das Américas, salientando que a região representa um grande mercado em pleno processo de transformação. Considera o caminho percorrido, os resultados alcançados e a nova etapa do Mercosul, mencionando a aliança entre a Argentina e o Brasil domo uma base de sustentação do projeto. Diferencia três planos para a análise do Mercosul e considera a sua projeção internacional.
Esse estudo, de caráter fundamental, acentua a "importância de refletir sobre as metodologias que permitem, através do tempo, manter vigente o vínculo de integração entre um grupo de nações" (op.cit. pág. 20). Essa importância seria evidente quando se consideraria que na história, mesmo na contemporânea, o predominante entre povos e nações seria a lógica da fragmentação e não da integração. O conceito de "metodologia da integração" iria além das "técnicas concretas que se podem aplicar para abrir os mercados dos associados ao comércio recíproco de bens e serviços (...)" (pág. 22). Também incluiria a dimensão cultural, "isto é, os valores e pautas de conduta que explicam que um grupo de nações, geralmente com fronteiras ou proximidade geográfica, opte pelo trabalho conjunto, desenvolvendo uma interdependência marcada pelo espírito de cooperação, em vez de uma interdependência dominada pela hipótese de conflito" (loc. cit.). Seriam, assim, "as raízes culturais comuns as que sustentam nas respectivas sociedades a vontade política expressada pelo trabalho conjunto no âmbito regional." (loc.cit.)
Dimensão cultural do Mercosul e paradigmas teóricos
Seguindo-se a lógica dessa argumentação nas suas últimas conseqüências, a verdadeira "metodologia da integração" deveria ser, porém, de natureza culturológica. Sob essa perspectiva, o ponto de partida adequado não deveria ser econômico ou político. Não se trataria tanto de considerar a "dimensão cultural" do processo integrativo, mas sim da análise de seus pressupostos, de seus mecanismos e de suas características específicas. Trata-se de uma diferenciação teórica sutil mas decisiva. Aqui entra-se realmente no campo da discussão a respeito da metodologia, uma vez que se trata da inserção do objeto de consideração em áreas disciplinares, ou melhor, em configurações interdisciplinares. Haveria uma diferença, portanto, entre um ponto de vista que focaliza a "dimensão cultural" do Mercosul, ou o "Espírito Cultural do Mercosul" e uma perspectiva científica que se dedique à análise dos pressupostos e de desenvolvimentos de processos integrativos. Trata-se, portanto, de um outro paradigma.
A questão do "Espírito Cultural do Mercosul"
Assim, embora também fundamental e aliciante, o texto "El espíritu cultural del Mercosur"/"O Espírito cultural do Mercosul", do ensaísta, poeta e tradutor Santiago Kovadloff, necessitaria ser reconsiderado à luz desse outro paradigma. (op.cit. 264.267)
Kovadloff inicia a sua argumentação afirmando que a criação do Mercosul responderia a um imperativo da época e uma necessidade específica regional. A época privilegiaria projetos de integração e interdependência, e a região aqueles voltados à superação do subdesenvolvimento. O Mercosul é considerado nesse estudo não só como um produto do espírito democrático vigente nas nações participantes como também um estímulo de proveito para a credibilidade regional desse mesmo espírito democrático.
Ele viria assegurar uma redefinição substancial da identidade cultural da região. A interdependência prosperaria quando o reconhecimento dos vizinhos não se apoiaria somente na consciência dos interesses materiais, mas também, e sobretudo, da qualidade de vida que seria necessária alcançar.
O Mercosul seria um desafio complexo, porque o reconhecimento e o aproveitamente de suas características exigiria a superação de velhas desconfianças, preconceitos, divisões estéreis, cuja vigência remontaria ao processo de emancipação das nações sul-americanas. Seria um projeto fascinante, porque a médio e a longo prazo o Mercosul representaria a coluna vertebral de um projeto inédito de transformação continental.
A dimensão cultural do empreendimento não se restringiria somente à intensificação e à diversificação do intercâmbio de bens e obras. Tratar-se-ia de promover uma funda redefinição da identidade continental à luz da integração e da interdependência.
Uma nova história teria lugar na América do Sul e uma nova visão da história permitiriam no futuro reformular a compreensão do passado. O Mercosul não modificaria somente o futuro, mas também a compreensão do passado. Tratar-se-ia de um fenômeno de transfiguração de significados do ontem. A reconfiguração do ontem, a intensificação de estudos comparados fariam da literatura e das ciências humanas áreas de trabalho, pesquisa e docência dinâmicas radicalmente revitalizadas. Um novo humanismo se originaria necessariamente tanto no campo acadêmico como na experiência do convívio diário.
O espírito cultural do Mercosul introduziria uma nuance diferencial na concepção usual da identidade latino-americana. Ela teria sido entendida como um conglomerado de traços e recursos mais do que como um conjunto. O Mercosul surge, para o autor, como um empreendimento substancialmente cultural, na medida em que teria nascido para enfrentar os aspectos estéreis gerados pela falta de contato profundo e permanente entre as nações da América do Sul.
O reconhecimento recíproco dos estados associados não exigiria somente a atenção sobre as particularidades próprias de cada um. Exigiria um espírito essencialmente imaginativo para que fosse possível aflorar, nessa expressão particular, a manifestção de valores partilhados. Assim, as letras, as artes e as ciências seriam chamadas a desempenhar uma função rica na ordem da convivência participativa e desobstrução dos caminhos que promovam uma melhor percepção, reconhecimento e valorização dos outros.
Perspectiva culturológica
Esta exposição de Santiago Kovadloff, que pode ser considerada como básica e altamente significativa na sua visão promissora, salienta e justifica de forma explícita o cunho cultural do projeto Mercosul, ou até mais, o Mercosul como "empreendimento substancialmente cultural". Também aqui, portanto, seguindo-se a lógica da argumentação, o caminho metodológico adequado seria o de considerar sob a perspectiva culturológica os pressupostos e os desenvolvimentos de processos integrativos na história e no presente. O espírito que é vivificado e liberado pelo Mercosul, o seu surgimento como produto do espírito democrático e estimulador desse mesmo espírito, o impulso que dá para novas perspectivas historiográficas e para reconfigurações de identidades devem antes ser avaliados com relação às circunstâncias favoráveis que criam para o estabelecimento de uma perspectiva realmente adequada de análises. Deve-se considerar, assim, não apenas o desenvolvimento de visões e processos culturais como resultados do "Espírito Cultural do Mercosul", mas sim também e primordialmente o Mercosul na sua inserção em processos culturais muito mais abrangentes.
Na presente e na próxima edições desta revista, a A.B.E. publica relatos de algumas das reflexões por ela encetadas em trabalhos realizados em fevereiro e março de 2008 na Argentina, no Uruguai e no Chile.
A.A.B.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).