Doc. N° 2314
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
112 - 2008/2
Edifícios emblemáticos em países do Mercosul II Complexo Cultural Teatro Solís
Montevideo. Visita da A.B.E. pelo previsto término do plano de obras (2008)
A.A.Bispo
Montevideo. Trabalhos da A.B.E., março de 2008. Fotos A.A.Bispo A recuperação, revalorização e refuncionalização de teatros em países que constituem hoje o Mercosul representam significativas ações culturais que merecem atenções recíprocas, uma vez que se tratam de edifícios em geral emblemáticos das diferentes nações e de suas capitais. Representam, também, componentes de um patrimônio histórico-cultural comum na história das relações culturais. Receberam, através de muitas décadas, companhias e artistas da Europa e de outros países americanos, foram sede de eventos internacionais, marcaram iniciativas, representaram ao mesmo tempo salas de recepção e referenciais culturais no Exterior. A lembrança que os artistas traziam desses países e que transmitiam a outra nações era marcada por esses edifícios. Muito antes do Mecosul existir havia já uma rede de integração em nível da vida artística e cultural entre os países do Sul do continente, e os seus nós mais evidentes foram e são os grandes teatros. Para a criação e manutenção dessa rêde foram sempre necessários empreendimentos de grande envergadura, inclusive do ponto de vista econômico, e a realização prática de temporadas e estações exigia contatos e representantes nos vários centros estrangeiros.
Atualmente, dois monumentos máximos da arquitetura teatral dos países hoje constituintes do Mercosul passam por avultados trabalhos de restauração, revalorização e refuncionalização. Ao lado das obras que se desenvolvem no Teatro Colón de Buenos Aires, cumpre considerar o andamento do "Complexo Cultural Teatro Solís", em Montevideo. O Teatro Solís desempenhou e desempenha importante papel nas relações culturais entre o Brasil e o Uruguai. Vários músicos e artistas que ali atuaram estiveram antes no Brasil ou transferiram-se posteriormente para cidades brasileiras. Grupos e conjuntos brasileiros apresentam-se no palco do Solís. Esse relacionamento é marcado, no corrente ano, pela presença de companhia de dança do Brasil.
Também aqui o ano de 2008 surge, na previsão das obras, como marco de conclusão pelo menos de parte importante dos trabalhos. Trata-se da finalização prevista para o dia 2 de outubro de 2008 da terceira fase dos trabalhos, a de refuncionalização e recuperação do Cañón Central do teatro, iniciada a 15 de novembro de 2006. O plano de obras previa, além da recuperação do Cañón Central, renovações da Sala Zavala Muniz, do Vestíbulo, do CIDDAE, Centro de Investigación, Documentación y Difusión de las Artes Escénicas, da Sala de Exposições e eventos, da Sala de ensaio de orquestra, da Sala de ensaio de teatro, das Oficinas para a Orquetra Filarmónica de Montevideo e da Comedia Nacional, do Complemento de alas laterais e do Restaurante.
Significado histórico-cultural do Teatro Solis
O Teatro Solís é um dos mais importantes edifícios e referenciais histórico-culturais de Montevideo e da nação uruguaia. Na literatura de viagens, os visitantes não se cansaram de salientar o significado e o valor estético-arquitetônico do edifício.
"(..) O mais intenso tráfego de Montevideo é na Calle Sarandi; com os seus muitos bancos, lojas e vitrines elegantes é uma espécie de Broadway que, na sua parte superior, desemboca na maravilhosa Plaza Independencia. (...) O centro do leque porém, onde giram não apenas as suas partes, mas por assim dizer também os assuntos de todo o país é a Plaza Independencia. O centro é dominado por amplos jardins, nos quais crescem palmeiras, bambus e crotons, flores das mais diversas espécies na mesma florescência como no paraíso dos trópicos, em Rio de Janeiro. Ao redor se elevam palácios ambiciosos, com fachadas com colunas homogênas, grandiosas. (...) (Ernst von Hesse-Wartegg, Zwischen Anden und Amazonas: Reisen in Brasilien, Argentinien, Paraguay und Uruguay, 3.ed. Stuttgart/Berlin/Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft 1915, 300-301)
As colunadas citadas por êste e outros autores da literatura realmente fazem do Teatro Solís componente de extraordinário significado urbano no conjunto arquitetônico do centro de Montevideo. Pouco parece ter-se apreciado histórico-culturalmente com maior profundidade, porém, a singularidade da arquitetura neoclássica externa do edifício no contexto geral da história arquitetônica de teatros do século XIX. Essa simplicidade clássica e nobre do exterior do Solís mereceria ser avaliada em contexto histórico amplo, não apenas comparativo com outros teatros da América e da Europa mas sim também na sua inserção em correntes filosóficas e de visão do mundo e do homem.
"Ao redor da praça, na qual se encontra Artigas a cavalo, se encontram alguns dos maiores edifícios da cidade. O Palácio Salvo ali está, uma espécie de emblema, edifício de torre caracterítica, por assim dizer porta da rua mais bonita de Montevideo. Do outro lado, ainda na cidade velha, encontra-se um grande Teatro, denominado Solís. Quando foi construído no ano de 1856, era o maior teatro das Américas. Com admiração perguntamos, para quê precisava Montevideo em 1856 uma casa de ópera com mais de 1500 lugares, uma vez que ea pouco mais do que uma pequena cidade portuária num continente distante, ainda bastante selvagem? Nos anais do teatro encontramos cantores e virtuoses de mais alto nível; Caruso e a Patti ficaram entusiasmados com o teatro e o seu público. E Montevideo tinha já então uma tradição teatral mais do que centenária, pois o seu primeiro palco datava do ano 1793! Raramente ganhava uma cidade de apenas 70 anos um teatro; um bom sinal do sentido de beleza e arte de sua população." (Kurt Pahlen, Südamerika: eine neue Welt. Zürich. Orell Füssli, 2a. ed. 1952 (1949), 140-141.
O Teatro Solís na história das relações musicais
Dentre as obras que consideram o Teatro Solís na sua importância histórico-musical merece ser lembrada a Breve Historia de la Musica Culta en el Uruguay, de Susana Salgado (Montevideo: Aemus/Biblioteca del Poder Legislativo 1971). A autora, nascida na capital uruguaia, onde realizou estudos com renomados estudiosos, entre êles Lauro Ayestarán, ocupou cargos diretivos em várias instituições de relêvo e em eventos internacionais. O seu professor, Ayestarán, foi o autor da publicação comemorativa pelo Centenário do Solís. Susana Salgado foi delegada do seu país para Radio e Televisão em congressos internacionais, tais como das Juventudes Musicais em Bruxelas, em 1958, foi membro de comissões da UNESCO e representante de publicações da OEA no Uruguai. Desenvolveu intensas atividades junto à cátedra de Investigación de la Música Uruguaya na Facultad de Humanidades y Ciencias.
No seu livro, a autora utilizou-se, entre outros, de material de documentos e programas do Archivo y Museo del Teatro Solís. No ítem dedicado ao Teatro Solis, dá início à sua exposição salientando que a inauguração do Teatro Solís teve, na história cultural do Uruguai, um duplo significado. Por um lado marcou a culminação de uma etapa artística, por outro a abertura de um mundo ilimitado de possibilidades em todos os campos das artes e das letras. A necessidade de construção de um teatro maior deu-se com o incremento do interesse pela ópera e de apresentações de óperas completas, a partir de 1830.
A idéia de construir um novo teatro apareceu já em 1839. Em 1840, alguns particulares formaram uma associação para a sua construção. Em 1841, iniciaram-se os trabalhos segundo os projetos do arquiteto Francisco Javier de Garmendia. Basearam-se estes em planos elaborados pelo engenheiro- arquiteto italiano Carlos Zucchi. Os trabalhos sofreram interrupções à época da guerra, sendo reiniciados em 1852. A sua capacidade era para 2500 pessoas, com 1584 assentos.
A sua inauguração deu-se a 25 de agosto de 1856. Ás 18.00 horas deu-se início a uma apresentação de banda de música na praça defronte ao teatro e, às 19.00 horas abriram-se as portas. Às 20:00 horas, após o hino nacional, entoado pela soprano Sofia Vera Lorini, na presença do Presidente da República, Gabriel A. Pereira, seguiram-se cinco discursos. Para a inauguração, encenou-se o Ernani de Verdi, cuja estréia ocorrera no La Fenice de Veneza, em 1844. A orquestra foi regida por Luis Preti. Como instrumentistas, atuaram importantes músicos uruguaios, entre eles Luis Sambucetti, violinista, Francisco J. Debali, fagotista e Pío Garibaldi, trompetista. Entre os cantores, salientam-se os nomes do tenor Juan Comolli, do barítono José Cima e da soprano Sofia Vera Lorini. No mesmo ano apresentaram-se La Traviata e Rigoletto.
Em 1857, o Solís recebeu Enrique Tamberlick, o mais renomado tenor da época e que apresentou-se no Il Trovatore. Em 1858, destacou-se Ana Bishop, renomada cantora inglesa;atuou juntamente com o tenor Luis Lelmi. Em 1858, a Traviata foi reapresentada com a participação da cantora francesa Ana de Lagrange, vinda ao Uruguai com a sua companhia após ter atuado nos Estados Unidos. Nesse ano apresentou-se também o tenor Rafael Mirate, aquele que, 8 anos antes havia estreado o Rigoletto.
"Este dato, como otros ya señalados anteriormente, sirven para comprobar que los cantantes, igualmente los intérpretes, que llegaron a nuestras tierraas en esos años venían cuando estaban en la plenitud de sus medios artísticos y cuando, tanto en Europa como en Estados Unidos, gozaban del máximo prestigio." (op.cit. 19)
Para o fim do século, Susana Salgado salienta Eva Tetrazzini em Lucia de Lamermoor, em 1894. O fato de o Falstaff ter sido apresentado no Uruguai apenas um ano após a sua estréia no Scala de Milão é também digno de nota. Nesse ano deu-se a primeira apresentação de Tannhäuser, de Wagner. Dos autores uruguaios, a pesquisadora salienta La Parisina (1878) e Manfredi di Svevia (1882), de Tomás Giribaldi, assim como Ofelia (1880) de Carmelo Calvo. Em 1888, aberto com a chegada de Adelina Patti e Roberto Stagno, deu-se a representação da primeira obra completa de Wagner, Lohengrin; Em 1892, deu-se a estréia de Don Carlos, de Verdi. Em 1903, ali ouviu-se Enrico Caruso.
O teatro abrigou também recitais de renomados instrumentistas europeus, em particular pianistas. Entre eles, cita-se Pablo Faget. Particular menção deve ser dada a artistas que desenvolveram significativa atividade no Brasil, sobretudo Oscar Pfeiffer, Artur Napoleão e Louis Moreau Gottschalk. Em concerto realizado no Teatro Solis, em outubro de 1868, esse compositor e pianista de projeção mundial reuniu 16 pianistas. Em 1870, Pablo Sarasate representou um dos pontos culminantes da vida musical uruguaia. Em 1898, o pianista português José Vianna da Motta apresentou-se no Solís.
Do século XX, encontra-se na literatura especial menção para o ano de 1923, quando a mesma companhia apresentou repertórios distintos, italiano, francês e alemão. No palco do Solís atuaram regentes de renome internacional, tais como Richard Strauss e Gino Marinuzzi.
Particular consideração merece a história dos elos entre o Teatro Solís e o Teatro Colón. Em 1931, registrou-se a vinda do elenco que atuava no Teatro Colón de Buenos Aires, entre os artistas se encontravam Tito Schipa e Salvatore Bacaloni. Em 1932, realizou-se a transmissão radiofônica da Lucia com Lily Pons do Teatro Colón de Buenos Aires. A partir dos anos trinta, entretanto, as temporadas de ópera passaram a ter lugar na sala do Estudio Auditorio do SODRE. O Solís passou a ser utilizado para comedias, zarzuelas e concertos de solistas nacionais e internacionais.
O Teatro Solís nos estudos músico-culturais europeus
Na Europa, a história e o significado histórico-musical do Teatro Solís passaram a ser considerados sobretudo após o estudo de Francisco Curt Lange de título "La música en el Uruguay durante el siuglo XIX" (R. Günther, Die Musikkulturen Lateinamerikas im 19. Jahrhundert, Regensburg: Bosse 1982, 333ss.). O musicólogo, que viveu e atuou várias décadas em Montevideo, salientou o significado do Teatro Solís dentro do ambiente cultural uruguaio.
"O Teatro Solís pôde ser levantado em poucos anos, inaugurando-se sua formosa sala a 25 de agosto de 1856, dia da Independência do Uruguay. Para essa solenidade se escolheu a ópera Ernani de Verdi, com a atuação da famosa Sofía Vera Lorini. Ainda existe este Templo de Arte, muito conservado em seus aspectos exteriores e interiores, como um verdadeiro monumento ao passado artístico musical, dado que por seu cenário passaram os maiores representantes da arte lírica, os grandes virtuoses e os não menos famosos regentes de orquestra com conjuntos orquestrais notáveis." (op.cit. 335)
(...)
G.R.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).