Doc. N° 2335
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Paseo Caminito: Tango e côr na valorização de imagens e bens de áreas degradadas
Buenos Aires. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
As grandes cidades da América Latina experimentam de forma particularmente intensa um problema urbanístico e arquitetônico que não é apenas do continente. A degradação de áreas urbanas, sobretudo de periferias pela perda de suas funções, por transformações econômicas e sociais, pela ocupação de terrenos para moradia de menos privilegiados e outros fatores é um dos graves fenômenos de todas as partes do mundo. Muito diversas entre si são as concepções e ações para a recuperação de áreas urbanas assim deterioradas. Ao lado de projetos de reurbanização radical, há aqueles planos de transformação de antigas áreas em zonas residenciais de alto nível qualitativo ou complexos culturais. Isso pode ser observado por exemplos em portos, estações e fábricas que perderam a sua função em várias cidades da Europa e da América. Há, porém, entre outros, um caminho menos ambicioso e dispendioso, e talvez mais sensível. Trata-se da tentativa de recuperação dos valores culturais próprios de antigos bairros. Essa concepção procura conservar a memória dos respectivos contextos, conservando não apenas construções e espaços, mas sim elementos que surgem como importantes para uma identidade diferenciadora da população local no conjunto global da metrópole. Trata-se, assim, de uma perspectiva que implica em outro conceito de patrimônio: o patrimônio que não é apenas representado por monumentos, mas por bens culturais não-materiais. Um exemplo notável dessa concepção é o "Paseo Caminito" de Buenos Aires. Hoje, o Caminito apresenta-se quase que como um centro cultural de vida popular, onde artistas apresentam e comercializam obras, tornando-se um dos atrativos culturais de toda a metrópole.
De caminho degradado a centro cultural
Na zona em questão havia, no passado, um antigo riacho de nome Puntin. Essa denominação era diminutivo de ponte em dialeto genovês. Sobre o leito do córrego desaparecido, colocaram-se os trilhos de uma ferrovia à Enseada. Essa estrada de ferro deixou de funcionar na década de vinte. O local transformou-se em depósito de lixo.
Em meados da década de 50, a área foi concedida à municipalidade da cidade de Buenos Aires. A zona foi reurbanizada, e o Caminito foi inaugurado no dia 18 de outubro de 1959.
Inspiração pictórica e tango
Os espaços foram enriquecidos com esculturas, baixo-relêvos, cerâmicas. recebendo o seu nome atual por sugestões de moradores. Essa sua denominação, Caminito, foi inspirada em idéia de Quinquela Martin, pintor de renome, e remonta a tango de Juan de Dios Filiberto, com letra de Gabino Coria Peñalosa, por sua vez inspirado em paisagem de Chilecito, na província La Rioja. O colorido do bairro também foi de iniciativa de Quinquela Martín. Nessa época, passava a modificar a sua prática de trabalho, substituindo o cavalete à pintura a espaço aberto. Oscar Juan de Dios Filiberto (La Rosa 1885-1964), compositor e mestre de banda, filho do dançarino Juan Filiberto Mascarilla, embora tendo estudado no Conservatório Pezzini Stiatessi, de Buenos Aires, alcançou renome sobretudo como compositor de tangos. A partir de 1915, escreveu tangos que permaneceram populares através das décadas, tais como Caminito (1924, com G. Coria Peñaloza), Porteñita (1928) Clavel del aire (1930). Com a Orquesta Porteña, produziu várias gravações. Há uma lógica consistente no relacionamento entre o popular tango Caminito de Oscar Juan de Dios Filiberto, a conformação sócio-histórica e urbana da região ao redor do antigo caminho ferroviário e a proposta pictórica de Quinquela Martin, também celebrado com placa comemorativa. Inúmeras possibilidades de interpretação do universo assim criado abrem-se para os estudos culturais. Mais do que um resgate de um mundo sócio-cultural ou de sua memória, como muitas vezes considerado, trata-se antes de um construto cultural que procura emprestar valor a configurações humanas e sociais marcadas por estigmas desprestigiadores no passado. Situações altamente instáveis de imigrados, imersos em mundos conflitantes, premidos pela necessidade de sobrevivência e impulsionados pelo desejo de se imporem no novo mundo correspondem de fato a configurações de cunho tanguista. Nem todos os imigrantes, porém, podem ser enquadrados numa tipologia criada ou valorizada apenas a posteriori e que considera pouco diferenciadamente a complexidade de processos transformatórios de identidade. Apesar de toda a labilidade e desejos de vencer no novo ambiente, situações de pobreza e humildade, penúria e sujeira, tristeza e desespero não podem ser igualadas indiferentemente a ambientes questionáveis de meio ou baixo-mundo. O visitante do Caminito leva a sensação desconfortante de que, nesse projeto altamente simpático nos seus objetivos, há o perigo de uma estetização inadequada de uma história de sofrimentos. Apesar dessa sensação dúbia, o Caminito impressiona pela vitalidade que demonstra, pelas possibilidades que oferece de trabalho e de ações culturais e pelo fato de haver conservado um conjunto representativo da história urbana que, sob outras condições, já teria sido há muito substituído por outras construções. Entre as muitas questões que se levantam coloca-se a da possibilidade de ser o Caminito modêlo a ser seguido em outros contextos. Na economia de suas propostas, facilmente exequível nas suas realizações, poderia ser visto como caminho viável para a valorização de bairros humildes, para a conservação respeitosa de identidades e de histórias comunitárias e para a melhoria de vida de seus moradores de outras cidades do continente.
Sem dúvida, o caminho "Caminito" tem sido aquele já seguido em vários casos em outros países, sobretudo em conjuntos arquitetônicos e ambientais com potencial turístico. Bastaria, porém, pintar com cores vivazes as moradias de favelas para superar os profundos problemas sociais, humanos e urbanos a elas inerentes?
A lição do Caminito poderia aqui ser vista não no sentido de um mascaramento, mas no de um necessário respeito e de uma sensibilidade para universos e valores, para a história e para as soluções das comunidades faveladas, superando-se de vez a expectativa irrealizável do passado de que esses bairros possam vir a ser arrasados e substituidos algum dia por outro tipo de edifícios e estruturas urbanas. O debate urbanológico e arquitetônico necessitaria aqui orientar-se culturológicamente e procurar novas concepções para além dos caminhos ditados por ideários abstratos de cunho estético-artístico e tecnológico. Os reais problemas que a solução "Caminito" levantam, porém, são de outro teor. Recordando que o bairro assim valorizado na sua configuração histórica e social organizou-se ao redor de uma antiga ferrovia transformada em depósito de lixo, e que essa ferrovia tinha sido construída sobre o leito de um riacho que secara, percebe-se que o verdadeiro problema é de natureza ecológica. O córrego que marcara no passado a região já não mais existe e não foi recriado pelo projeto Caminito. A degradação natural conserva-se como fato consumado e, sob esse aspecto, o colorido mundo criado cosmetologicamente surge quase que como expressão cínica e grotesca de uma perspectiva decididamente antropocêntrica. A proposta de ampliação do conceito de patrimônio cultural que se encontra por detrás de um projeto como o do Caminito não considera de forma suficiente o patrimônio natural e que cada vez mais surge como fundamento e verdadeiro fim de toda a discussão patrimonial.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).