Doc. N° 2332
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Tema em debate
Consciência latino-americana e análises de discursos e imagens
Trabalhos da A.B.E. relativos a países do Cone Sul, 2008
A.A.Bispo
Monumentos de Montevideo. Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo O complexo temático que continuou a marcar primordialmente os trabalhos da A.B.E. nos meses de maio e junho de 2008 foi o referente ao Mercosul, ou melhor, às novas configurações e aos novos questionamentos que se abrem aos estudos interculturais com o processo integrativo dos países latino-americanos impulsionado pelo Mercosul. A presente edição dessa revista, assim como o fêz a precedente, apresenta relatos de alguns dos trabalhos desenvolvidos a partir da viagem de observações, estudos e contactos promovida pela A.B.E. em fevereiro/março de 2008. Os temas aqui considerados dizem respeito sobretudo a questões que se levantam pela existência de tradições simbólicas e emblemáticas nacionais e eclesiásticas decorrentes de processos históricos e que necessitam ser reconsideradas sob focalizações integrativas. Trata-se, inicialmente, da necessidade de conhecimento mútuo do repertório de símbolos e vultos que marcam o universo das diferentes nações e da tentativa de compreender o seu significado para os países vizinhos, a partir dos respectivos pressupostos histórico-culturais. O objetivo último, porém, é mais amplo. Trata-se de procurar caminhos para a superação de situações conflitivas de natureza especificamente cultural que possam perturbar o desenvolvimento integrativo. Tais esforços e intenções permanecerão continuamente em situação de instabilidade e risco se não houver diluições de potenciais de conflito e até mesmo de resignificação de ordens simbólicas determinativas de identidades originadas de tensões de esferas coloniais ibéricas, de guerras e outros fatores que sedimentam separações. Imagens subjacentes à diferenciação de nações e comunidades necessitam ser refocalizadas de tal forma que, sem perder a sua função diferencial, não se tornem obstáculos aos intuitos de definição de uma identidade latino-americana mais abrangente. Pouco adianta o discurso integrativo se a linguagem visual representada pelos monumentos e símbolos, com as suas perenizações de ocorrências beligerantes e de separações, de heróis nacionais que se distinguiram em ações contra países vizinhos continuar a ser lida de forma pouco distanciada. Os trabalhos que aqui são relatados representam apenas uma tentativa inicial nessa direção, oferecendo subsídios para debates que deverão ter continuidade.
Consciência do Mercosul
Neste contexto, cumpriria recordar algumas reflexões relativas à "Consciência do Mercosul"apresentadas há dez anos por Alberto Methol Ferré, Professor de História da América Latina no Instituto Artigas do Serviço Exterior e da Universidade Católica do Uruguai. ("Mercosul, América do Sul e América Latina", Mercosul: um atlas cultural, social e econômico, Buenos Aires/Rio de Janeiro: Manrique Zago/Instituto Herbert Levy 1997, 118-129) A sua argumentação inicia-se com a afirmação de que o Mercosul representaria muito mais que um mercado comum: "É uma dinâmica que implica uma extraordinária confluência de povos, não somente vizinhos, mas também irmãos, pertencentes a um mesmo círculo histórico-cultural. Uma longa filiação sustenta e projeta o Mercosul como núcleo irradiador e gerador da unidade da América Latina na América do Sul. (...) Este é o acontecimento latino-americano em marcha mais atual e decisivo para todo o próximo século XXI, pois coloca a alavanca eficaz para os povos de toda a América do Sul nas décadas que se seguirão." (op.cit. 118)
Ferré, a partir de uma visão marcada por grandes perspectivas históricas, não teve receios de afirmar que o Mercosul seria "a maior revolução histórico-cultural da América Latina, desde os tempos de sua formação original. É como se fosse o princípio de sua maturidade". Afirmação de tal força convida naturalmente a problematizações e ao questionamento de sua validade. A própria expressão "revolução histórico-cultural" pressupõe que haja uma reviravolta, uma mudança cultural, e para isso fazem-se necessários estudos que analisem espressões, que permitam detectar transformações de sentido e sistêmicas ou que até mesmo as preparem e fomentem. A própria condução de tais estudos necessita porém ser acompanhada de reflexões a respeito de seus pressupostos e suas orientações, ou seja, somente um enfoque teórico-cultural parece ser adequado para dirigi-los. Esses estudos abrangem naturalmente todos os campos do saber e são assim marcados pela interdisciplinaridade, uma interdisciplinaridade que deveria ser então guiada teórico-culturalmente. Embora sendo a perspectiva histórica uma exigência dos trabalhos voltados ao exame de processos, seus mecanismos e expressões, o debate atual mostrou há muito a insuficiência de procedimentos historiográficos convencionais, sobretudo daquelas visões que, em nome da História Mundial, generalizam perspectivas euro-centralizadas.
Questões de eurocentrismo
Na sua argumentação, Ferré, pelo fato de concentrar-se na concepção de "círculo cultural latino-americano" e na diferenciação de conceitos (América do Sul e América Latina), parte de uma visão marcada pela história da expansão européia e dos descobrimentos. Segundo essa perspectiva, a América Latina surge como um primeiro fruto da globalização da história mundial, um processo iniciado por Portugal e Cadtela, com a participação de Gênova e Florença: "(...) Colombo e Vasco da Gama, Portugal e Castela abrem a globalização da Terra pelos oceanos e, então haverá o nascimento desse 'povo novo', mestiço, da América Latina. Uma dramática e movediça constituição de meio milênio; meio milênio de processo já 'globalizador' da História Universal." (loc.cit.) Cumpre salientar que o autor não faz apologia indiferenciada do processo globalizador: "A globalização não apenas faz interagir, nas diversas regiões e círculos culturais, modificando-os, como também pode, até mesmo, criá-los. Globalização, culturas e regionalizações são processos inseparáveis. Não existe e jamais existirá a globalização puramente global". (loc.cit.) Entretanto, ao tentar definir etapas de um desenvolvimento histórico que culminaria no "novo círculo cultural latino-americano" representado pelo Mercosul, não deixa de manifestar de forma explícita interpretações e avaliações de fatos históricos que implicam em posicionamentos que devem ser questionados. Assim, das três grandes fases que esboça, a primeira representaria a configuração da América Latina nos séculos XVI, XVII e XVIII, uma época "da exploração, conquista e colonização até os vice-reinados do Peru, Nova Granada, do Rio da Plata e do Brasil na América do Sul e de Nova Espanha (México) na América Central e no Caribe". Para o autor, o momento de apogeu unificador teria sido aquele quando as coroas de Portugal, Castela e as indias Ocidentais têm o mesmo rei (1580-1640): "Com os Felipe de Habsburgo, nasceu a primeira unidade totalizadora da América Latina". Perguntar-se-ia aqui se os historiadores portugueses - e brasileiros - estariam de acordo com o autor em considerar o período da união pessoal no século XVII com palavras tão positivas. Não haveria aqui até mesmo o perigo de que tais palavras sejam compreendidas como uma sugestão de que tal configuração do século XVII pudesse ser um modêlo para a atualidade e o preconizado futuro? Isso, porém transformaria o ideário latino-americano em questão de política européia! O que diria Portugal? A segunda fase sugerida pelo autor seria aquela da independência e da fundação dos estados constitucionais liberais: "A falência das metrópoles lusitana e espanhola, no início do século XIX, fragmenta em múltiplos estados o ramo castelhano, não o Brasil. (...) Em seguida, no século XX, virão as lutas pela democratização, industrialização e inegração, três aspectos que se ligam intimamente. São os grandes movimentos nacional-populistas, que têm suas maiores figuras em Haya de la Torre, Vargas e Perón". (loc.cit.) A terceira fase, o Mercosul, teria sido preparada por um vasto movimento cultural latino-americano proveniente dos festejos do IV Centenário do Descobrimento da América (1892), realizado com espírito ibero-americano. Tal movimento procederia do português Oliveira Martins, de "homens das gerações espanholas dos anos 70 e de 98, como Castelar, Valera, Unamuno, Maeztu, etc. e que desemboca na geração latinoamericana dos 900 de Rubén Dario, Rodó, Ugarte, Oliveira Lima, Carlos Pereyra, García Calderón, Blanco Fombona e tantos outros". (loc.cit.) Para o autor, explicitamente, o "Mercosul aparece como o máximo desdobramento prático e nuclear do latino-americanismo. É sua base e fundamento necessário." (loc.cit.) Entretanto, esse latino-americanismo, na linha traçada, manifesta-se como culminação quase que redentora de processos europeus: "A Aliança Peninsular renasce na aliança continental sul-americana de Argentina e Brasil, deixando para trás os vestígios da era dos conflitos". (pág. 128) Essa Aliança Peninsular seria aquela entre Portugal e Castela e que, segundo o autor, teve o seu apogeu com a subida ao trono português de Felipe de Habsburgo, Felippe II de Castela e Felipe I de Portugal (!). Sob esse pano de fundo, a frase com que Ferré encerra o seu texto sumariza de forma impressionante não apenas uma visão historiográfica centralizada na Europa como também um ideário que, no fundo, é europeu: "A Hispânia da origem agora folga e se moderniza em nossa terra mestiça americana, aberta a todos os entendimentos da Ecumene Mundial". (pág. 128)
Reflexões
Transcorridos dez anos da publicação desse texto, cumpre agora repensar se o objetivo dos esforços integrativos latino-americanos pode ser visto numa espécie de redenção da Hispânia ou até mesmo na renovação de uma Aliança Peninsular. Mesmo em argumentações não tão explícitas parece impor-se a necessidade de reflexões sobre as bases teóricas dos discursos relacionados com o Mercosul e a história cultural. Sente-se falta, sobretudo da presença indígena. Em textos que tratam da configuração da atual América Latina, de processos unificadores no passado, não se encontra por vezes nenhuma referência aos nativos do continente, nem uma menção ao fato de que, apesar das diferenças, constituíram um complexo cultural que apresentava surpreendentes traços comuns e unificadores. Pode haver uma "revolução histórico-cultural da América Latina" sem a presença daquelas culturas que deveriam ser consideradas até mesmo como ponto de partida para argumentações com finalidades integradoras e superadoras de tensões ibéricas transplantadas? Pode haver uma "revolução histórico-cultural da América Latina" sem a consideração dos complexos processos de formação de identidade de uma configuração "mestiça" do continente? O questionamento de discursos teóricos associados a uma "consciência do mercosul" poderia ir ainda mais longe. Não seria a Natureza, na sua riqueza própria e na diversidade da vida animal, o bem patrimonial comum mais fundamental de todas as nações do continente? Um pensamento dirigido a esse patrimônio, aos rios e florestas que atravessam fronteiras, às espécimes de uma fauna diversificada e própria que não conhecem limites nacionais, aos ideais e às ações de proteção desses bens em forma de reservas e parques não representaria um ponto de partida mais adequado para reflexões integrativas, para a procura e valorização de traços comuns e de união? Os estudos culturais relativos a contextos relacionados com o Mercosul não podem, assim, dispensar reflexões teóricas e, ao mesmo tempo, exames de tradições de pensamento e da produção intelectual. Essa discussão teórica é de significado não apenas para os países imediatamente envolvidos, como também para a Europa. Nesse direcionamento, a A.B.E. realizou os estudos de caso que se encontram relatados na presente edição.