Doc. N° 2325
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Patrimônio natural dos países do Cone Sul e patrimônio cultural: Petrohue
Petrohue.Trabalhos da A.B.E., 2008
A.A.Bispo
A aproximação dos países do Cone Sul do continente americano, impulsionada pela criação do Mercosul, traz conseqüências múltiplas para os estudos culturais. Promove a cooperação científica e a consideração recíproca de instituições, projetos e linhas de pesquisa e de reflexão. A atualidade das discussões relativas ao binômio Cultura/Natureza, sobretudo aquelas que dizem respeito aos esforços de desenvolvimento de um conceito de cultura orientado ambientalmente e segundo critérios de respeito à vida faz com que ações de proteção do patrimônio natural surjam como verdadeiros atos culturais. O próprio conceito de patrimônio cultural adquire, assim, uma dimensão muito mais ampla, incluindo necessariamente os bens naturais e a vida animal. A discussão relativa ao patrimônio cultural, hoje marcada pela ampliação do conceito patrimonial a bens do quotidiano e a bens imateriais, intangíveis, alcança um nível ainda mais abrangente. Bens a serem protegidos não seriam apenas os monumentos, edifícios de valor histórico-artístico, os seus contextos urbanos, nem também complexos representativos da identidade de comunidades e bairros, também não apenas bens intelectuais e artísticos, mas sim e sobretudo atos e instituições destinados à proteção do patrimônio natural. Reservas, Parques Nacionais e outros organismos similares passam a ser, sob essa perspectiva, expressão maior da cultura de nações, de muito maior significado e relevância do que edifícios históricos, casas de ópera, igrejas ou qualquer outro bem construído material ou imaterialmente pelo homem. Seria de fato irresponsável e indesculpável para as futuras gerações que bares e confeitarias de fins do século XIX sejam conservados e que se destruam florestas, cachoeiras, lagos e rios. O nível cultural de nações passaria a ser medido em primeira linha pelos órgãos e estatutos que teriam criado e mantido para a proteção do seu próprio patrimônio natural. Expressão deficitária de cultura seria a inexistência ou a ineficiência de institutos criados para esse fim, assim como a destruição do patrimônio natural e da vida animal representaria expressão por excelência de falta de cultura. As discussões relativas ao binômio Cultura/Natureza, em desenvolvimento no âmbito do programa de mesmo nome da A.B.E. sugerem, assim, a necessidade não apenas de ampliação do conceito de patrimônio cultural, mas sim também a da revisão de conceitos de Cultura, fomentando uma reconsideração crítica da compreensão desse termo vigente em disciplinas de cunho antropológico-cultural da atualidade e que já foram, há décadas atrás, progressistas e atualizadoras. A concepção ampla do conceito de cultura que hoje se impôs, considerando, e com razão, sob esse termo não apenas expressões de uma esfera elevada ou privilegiada, mas sim todas as expressões do homem, surge como insuficiente ampla por não considerar a referência à natureza e, na sua imprecisão, apta a ser novamente discutida. Um grande movimento editorial, de concertos, de projetos, a intensidade da vida social e cultural de cidades, a valorização de bens culturais da vida sócio-cultural pouco significam se essa mesma sociedade permite a destruição de bens naturais insubstituíveis. Sob o pano de fundo desse debate, aqui apenas insinuado, os estudos culturais que procuram considerar as novas situações criadas pelos esforços integrativos necessitam considerar as fontes históricas que documentam bens naturais, movimentos e instituições destinados a protegê-los e suas conseqüências. Parte significativa dessas fontes é constituida por relatos de viajantes, e essas obras oferecem, ao mesmo tempo, subsídios para a consideração das relações entre o patrimônio natural e o cultural no âmbito de contextos euro-latinoamericanos.
Natureza do Chile na literatura de viagens
Entre os relatos de viagens que tratam mais pormenorizadamente do patrimônio natural do Chile no conjunto de observações realizadas no Brasil, na Argentina e em outros países pode-se mencionar a pouca considerada descrição de viagem de Willi Ule, realizada no âmbito de um projeto da Sociedade de Geografia de Berlim apoiado pelo príncipe Heinrich, em 1910/11. (Quer durch Süd-America von Professor Willi Ule, Hamburg: Uhlenhorst s/d). Após visitar várias regiões brasileiras, atravessou a Argentina, alcançando o Chile através dos Andes. Em capítulo de título "O vale do rio Petrohue e o Lago Todos los Santos", o Dr. Wilhelm Müller, no seu livro dedicado às belezas naturais e culturais da América do Sul, publicado há 80 anos, ofereceu uma primeira descrição minuciosa do Parque Nacional Chileno aos leitores europeus. (Wilhelm Müller, Das schöne Südamerika: Reisen in Argentinien, Brasilien, Chile und Perú, 2a. ed. Berlin: Globus 1928). O significado desse texto reside no fato de ser um dos primeiros a focalizar especificamente um parque nacional sulamericano sob a perspectiva de valores naturais e culturais da Humanidade. A partir da Ensenada, acompanhado por um engenheiro do Govêrno chileno, o viajante suiço empreendeu uma viagem a cavalo pelo vale do Petrohue e pelo Parque Nacional. A sua descrição é entusiástica. Para êle, não existiriam muitas regiões da terra que pudessem ser comparadas nas suas belezas naturais com esse vale e com as florestas das costas sul-orientais do vulcão Calbuco e que se prolongavam até o litoral do Oceano Pacífico. Tratava-se de uma paisagem que pouco haveria mudado no decorrer dos séculos. O Govêrno Chileno tinha procedido de forma modelar ao declarar essa região paradisíaca a Reserva do Estado e a Parque Nacional. Engenheiros e botânicos percorriam a serviço do Govêrno esse território para investigá-lo. Vulcões cobertos de neve elevar-se-iam nobres nos seus cumes rochosos acima do infindável verde das florestas. Corredeiras agitadas encantariam os solitários visitantes.
"Dirigimos os nossos passos primeiramente às costas do Petrohue. A maior parte do vale do Petrohue é literalmente forrada pelas lavas e cinzas de ambos os vulcões, o Osorno e o Calbuco. Infindos campos de lava interrompem a magnífica vegetação, formada por numerosas espécies de Mirtáceas, Muermo, Murta, Louro, Ericáceas e outras. Do fundo de riachos lavados pela chuva resultam cortes notáveis das massas endurecidas de lava. Quanto mais nos aproximamos das costas do Orsono e do Calbuco tanto mais se elevam as formações rochosas eruptivas e que diferem entre si de acordo com a idade da erupção. Em regra, encontramos torres formadas livremente por massas petrificadas arredondas e escantilhadas, de colorido negro ou cinza, com concavidades a modo de bolhas e que devem ser vistas como restos de formações de gás originado na erupção. Às margens do Llanquihue, esses pedaços de lava, de dimensões que variam do tamanho de um punho ao de um homem, rolam literalmente para dentro do lago. Particularmente notáveis são as grandes corredeiras do Petrohue há cerca de 10 quilômetros a sudeste da Ensenada. As correntes turbilhantes desse magnífico rio se atiram alí, formando várias cascadas de 15 a 20 metros de altura, de forma trovejante e borbulhante nas profundezas. O leito do rio se estreita nessas corredeiras, formando gargantas apertadas e rochosas, nas quais a água cristalina da corrente se despeja em cachoeiras selvagens nas profundidades, por entre árvores da floresta nativa agitadas pelo vento." (op. cit. 110-111) Em visita a Petrohue, representantes da A.B.E. puderam verificar a contínua validade dessa descrição na atualidade. Esse fato, após oito décadas da publicação da obra, documenta a conservação desse patrimônio natural e a eficiência do Parque Nacional. Permite também ler a publicação de fins da década de 20 a partir da experiência real do presente. As espécimes vegetais já mencionadas por W. Müller encontram-se indicadas em quadros que orientam o visitante e o introduzem nos estudos da flora regional, sensibilizando-o à sua percepção e apreciação.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).