Doc. N° 2324
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Restauração litúrgico-cultural e romanizações na história eclesiástica dos países do Cone Sul Catedral de Porto Alegre e Giovanni Battista Giovenale
Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Catedral de Porto Alegre. Fotos A.A.Bispo Sob a perspectiva dos intuitos integrativos fomentados pelo Mercosul, a historiografia eclesiástica dos países do Cone Sul assume novas conotações e orientações metodológicas. Procurando-se analisar a história do processo colonial no sentido da crítica de traços separadores e de redescoberta e revalorização de estruturas e desenvolvimentos que possam fornecer subsídios para estudos e ações no presente, constata-se o estreito relacionamento entre a história eclesial, a colonial e a da imigração. Essas relações já vêm sendo estudadas e debatidas em eventos da ABE há muitos anos, por exemplo por ocasião do Congresso de encerramento das comemorações dos 500 anos do Brasil (Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro 2002). Como ficou demonstrado nesse evento, essas relações evidenciam o significado dos estudos correspondentes para reorientações culturológicas de várias áreas disciplinares. A atenção tem sido dirigida sobretudo às relações entre a ação de cristianização e a transformação cultural de indígenas e africanos nos primeiros séculos da colonização. Entretanto, cada vez mais fica mais claro que também a história eclesial nas comunidades européias e neo-européias necessita uma reorientação de cunho científico-cultural de suas perspectivas e premissas. Sob esse enfoque, também a história catedralícia das grandes cidades do Cone Sul adquire um novo significado, acima daquele apontado por estudos históricos e histórico-artísticos convencionais. Esses novos paradigmas permitirão que tais catedrais sejam relidas e quiçá revalorizadas, uma vez que, em geral, no seu ecletismo, são pouco ou negativamente consideradas por estudiosos que se orientam segundo critérios estabelecidos por tendências modernistas dominantes do pensamento do século XX. Também as catedrais dos países do Cone Sul apresentam uma história que não pode ser desmembrada daquela dos processos colonizadores e imigratórios. São até mesmo edifícios emblemáticos de máxima força simbólica para capitais e nações. Para os intuitos integrativos atuais, sobretudo as regiões de confronto entre as esferas coloniais ibéricas apresentam particular interesse. Isso diz respeito, por exemplo, à catedral de Montevideo, cuja história está estreitamente vinculada com esse campo de tensões (Veja texto correspondente nesta edição). Do lado brasileiro, pode-se considerar sob êsse ângulo a Catedral de Porto Alegre.
História da matriz de Porto Alegre
"O século XIX assistiu o surgimento no Rio Grande do sul de algumas obras arquitetônicas que ainda não foram estudadas, mas que merecem atenção por certas qualidades (...) Merecem que alguém afaste o pesado véu com que têm sido ocultas dos estudiosos por aquêles que só conseguem ver, nas coisas e fatos do Rio Grande, a aparência externa e romântica, envoltas numa gíria rural nem sempre autêntica." (Francisco Riopardense de Macede, "A Arquitetura" in Rio Grande do Sul: Terra e Povo, 2a. ed. Porto Alegre: Globo 1969, 109-128, 109) Nos estudos dedicados à história da paróquia de Porto Alegre já se tem salientado, sem dúvida, que as suas origens não podem ser vistas separadamente da história da fundação da própria cidade. Essa história vincula-se com a da imigração, uma vez que remonta à vida de casais açorianos que, com alguns soldados paulistas que se dirigiam ao território das missões e que se encontravam estacionados no porto de Viamão, conformaram o núcleo da povoação nas proximidades do rio Guaíba. Profundamente católicos, esses imigrantes não poderiam ficar sem acompanhamento religioso. Para tal designou-se, por provisão de 1753, o religioso carmelita Frei Faustino de Santo Antonio de Santo Alberto e Silva. Ter-se-ia erguido então uma capela, dando o seu padroeiro, São Francisco de Chagas, o nome à povoação de São Francisco do Porto dos Casais. Em 1755, com a retirada do religioso, os imigrantes, inseridos na paróquia de Viamão, perderam orientação espiritual particular. Em 1772, a pedido do governador Marcelino de Figueiredo, o bispo do Rio de Janeiro, D. Antonio do Desterro, criou a freguesia sob o patrocínio de São Francisco, designando para vigário o Pe. José Gomes de Faria e solicitando que se construisse uma igreja matriz adequada. Em 1773, por ordem episcopal, a invocação da igreja mudou-se para o de Nossa Senhora da Madre de Deus. Segundo alguns historiadores, o fato deu-se como um préstito de homenagem à princesa D. Maria de Portugal e que viria ser mãe de D. João VI ou, simplesmente, em atenção à devoção mariana do monarca reinante, D. José. A invocação testemunha sobretudo, a intensidade do culto mariano local, possivelmente um fruto da ação carmelita. A construção de um templo de maiores dimensões tornou-se necessária com a transferência da capital de Viamão para Porto Alegre. Em 1772, por ordem do vice-rei, demarcou-se, entre os lotes destinados aos açorianos, um para a futura igreja. A construção do edifício iniciou-se em 1780. As primeiras décadas da vida religiosa e cultural local refletiram a situação imigratória. Como elemento fundamental para a manutenção de sua identidade, os açorianos introduziram o culto ao Divino Espírito Santo segundo as expressões consuetudinárias das ilhas atlânticas. O calendário religioso passou a ser marcado por festas organizadas por irmandades leigas, entre elas, além da do Divino, a de São Miguel e Almas e a do Santíssimo Sacramento. Somente em 1832 é que surgiram outras paróquias, desmembradas do território da matriz.
O Papa Pio IX, que tão importante papel desempenhou na história da matriz de Montevideo, também não se descuidou do enobrecimento da de Porto Alegre. Através da bula "Ad oves dominicas rite pascendas", de 7de maio de 1848, elevou a matriz à catedral, instituindo a diocese de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Giovanni Battista Giovenale
A nova catedral foi iniciativa do arcebispo D. João Becker (1870-1946). A pedra fundamental do edifício foi lançada em 1921. A sua dedicação ocorreu apenas em 1986, sob Dom Cláudio Kolling. O projeto do edifício foi entregue ao arquiteto italiano Giovanni Battista Giovenale, um dos mais destacados vultos da arquitetura sacral de sua época (Roma, 1849-1934).
Assim, a Catedral de Porto Alegre, sob o aspecto arquitetônico, apenas pode ser devidamente apreciada sob uma perspectiva global. O seu autor era um dos principais representantes da arquitetura romana na época de intensa urbanização que se seguiu à sua elevação à capital do reino da Itália. Giovenale não compreendia a arquitetura independentemente de suas inserções no universo religioso. Esse universo era fundamentalmente orientado segundo a renovação da vida espiritual segundo uma reconscientização do período de reformas eclesiásticas da época do Concílio de Trento. Assim, uniu o seu trabalho de construtor com uma intensa preocupação pela restauração de edifícios sacros segundo a sua "pureza original", pela supressão de elementos posteriores, e pelo interesse teológico e artístico pela arqueologia da Idade Média e do universo bizantino. Considerado como o principal representante do ecletismo romano e "chefe-de-escola" do "barocchetto romano", a sua obra ainda está para ser levantada e analisada histórico-culturalmente de forma mais pormenorizada. O seu nome permanece vinculado sobretudo com o Villino Folchi (1886-1887), edificado na área do antigo jardim barroco da Villa Ludovisi. Obras suas de reconhecido mérito são o Villino Boncompagni (1901) e a cripta neobizantina de Santa Cecília em Trastevere (1901). Com a restauração da igreja de Santa Maria in Cosmedin e com o museu anexo à Basílica de San Pietro, portador do Tesouro de San Pietro, o arquiteto realizou obras de excepcional relevância. A Catedral de Porto Alegre, portanto, na sua arquitetura, na sua disposição interna e sobretudo no seu espírito, que é salientado pelos seus mosaicos, reflete a perspectiva e a inserção cultural de Giovenalli como responsável de um dos mais amplos programas de "restauro" patrimonial da história, o de Roma. Na leitura cultural desse edifício, portanto, deve-se considerar o universo restaurativo que marcou o Catolicismo de fins do século XIX e início do século XX, expresso na música pelo fomento do Canto Gregoriano e da Polifonia Clássica segundo modêlos do século XVI e XVII, e na arquitetura pela procura de formas do Cinquecento tardio e do primeiro Seicento. Com esse edifício emblemático, o Rio Grande do Sul passou a ter também um vínculo manifesto com o século da Contra-Reforma - tão presente em outras metrópoles e regiões do continente. Trata-se, porém, de um vínculo estabelecido a posteriori, no âmbito de intuitos restauradores e dirigidos segundo normas vistas como universais de sacralidade. Dentro desse panorama amplo, eclesiástico, por assim dizer universal, insere-se a do contexto romano ao qual se insere o projeto. A Catedral de Porto Alegre, cujas origens remotas levam à imigração açoriana, torna-se assim, por caminhos complexos, um símbolo da predominância de uma outra corrente imigratória que tanta influência teve e tem no Rio Grande do Sul, a italiana.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).