Doc. N° 2320
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Hagiografia hispânica e identidade comunitária sob a perspectiva integrativa latino-americana San Isidro Labrador
San Isidro, Grande Buenos Aires. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
San Isidro, Grande Buenos Aires. Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H.Hülskath Sob os novos impulsos integrativos despertados nos países do Cone Sul no contexto do Mercosul, assumem renovado significado questões de natureza cultural que dizem respeito a processos unificadores e diferenciadores das várias nações envolvidas. Como países de formação colonial ibérica, o Catolicismo romano, difundido através dos colonos e da ação missionária desempenhou fundamental papel e representa base religioso-cultural do universo comum dos vários países. O estudo de processos integrativos não pode, assim, deixar de considerar a história da propagação religiosa de cinco séculos. Entretanto, apesar de sua unidade - justificada nas características do Cristianismo e na universalidade defendida pela Igreja -, a história religiosa na América Latina também é marcada por traços distintos decorrentes sobretudo da origem dos colonizadores, missionários e da história das ordens atuantes.
Sob este aspecto, a hagiografia surge como área de relevância para os estudos histórico-culturais que procuram considerar aspectos de diversidade na unidade de concepções e expressões religioso-culturais da região. O culto de santos vinculados com a história nacional, regional e local de colonos e religiosos foi sempre um dos principais esteios de manutenção da memória com o país de origem. Mesmo na atualidade, em comunidades de imigração mais recente, observa-se o significado do culto de determinadas expressões marianas e de santos para a identidade de grupos e comunidades. O estudo das transformações que ocorrem na intensidade e nas expressões dessas formas de culto, de sua difusão e assimilação por outros círculos da sociedade pode fornecer subsídios para análises de processos culturais integrativos. Tanto a Espanha quanto Portugal possuem um diversificado e rico patrimônio de expressões marianas e de culto de santos de fortes vínculos regionais. A história de vultos beatificados e santificados está em muitos casos estreitamente unida à história ibérica no seu todo e nacional de seus dois países. Alguns de seus personagens históricos e heróis foram elevados à honra dos altares. Certos nomes passaram a fazer parte de um patrimônio comum de culto, apesar de diferentes intensidades, unidos que estiveram com a história mais antiga da Península ou com a Reconquista. Outros, porém, permaneceram mais ligados com a história e a cultura religioso-popular das respectivas nações. Vários são os fatores que necessitariam ser aqui considerados e que elucidariam o vir-a-ser de tradições e as suas transformações nas diferentes épocas e regiões. Neste contexto bastaria apenas lembrar que uma Santa Isabel, Rainha de Portugal, ou um São Gonçalo de Amarante, venerados naturalmente sobretudo por portugueses e seus descendentes, relativamente pouca expressão assumem em regiões de formação colonial espanhola, enquanto que vários vultos considerados modelares à conduta humana e espiritual da história da Espanha são pouco conhecidos no Brasil. No âmbito de intuitos de aproximação entre a América de língua portuguesa e a de história colonial espanhola cumpre, assim, dar particular atenção àqueles homens e mulheres pouco conhecidos que são alvo de culto nos países vizinhos, que emprestam o seu nome a igrejas, cidades, bairros e ruas, e que assumem assim papel referencial e determinador de identidades.
San Isidro
Entre os santos espanhóis menos divulgados no Brasil cita-se São Isidro (conhecido porém, como o prova cachoeira de mesmo nome na Serra da Bocaina). Homem da Idade Média, nascido ao redor de 1070 e morto a 15 de maio de 1130, tem a sua sepultura na igreja de Sto. André, em Madrid. A sua beatificação deu-se em 1619, por intermédio de Felipe III, que a solicitou a Paulo V. Em 13 de maio de 1622, deu-se a sua canonização, sob Gregório XV, ao lado de outros santos (Santa Teresa, São Inácio, São Francisco Xavier, São Felipe Neri), ou seja, em época marcada pelos impulsos contra-reformatórios e pelo fomento especial da ação missionária a partir de Roma através da criação da Propaganda fide. A história e as estórias relacionadas com São Isidro salientam a sua origem humilde, de pais sem formação escolar mas empenhados na vida religiosa, a sua orfandade, a sua vida dedicada ao trabalho como peão de campo e auxiliar de agricultura de D. Juan de Vargas, proprietário de uma quinta nas proximidades de Madrid, e à condução modelar de uma família. Com o seu culto vincula-se o de sua mulher, a beata Maria Toribia, conhecida na tradição por Santa Maria de la Cabeza, uma vez que a sua cabeça é levada em procissão a pedido de chuvas. O seu próprio nome, Isidro, evoca uma outra personalidade de excepcional significado para a hagiografia ibérica, Santo Isidoro de Sevilha, este porém muito mais antigo e de significado para a vida espiritual, de estudos e da ciência. Santo Isidro, porém, considerado como padroeiro dos camponeses e agricultores, que passou a vida lavrando a terra de outros, apresenta-se naturalmente mais próximo da realidade existencial dos colonos espanhóis que se dirigiam às novas regiões da América. Sobretudo o fato de Isidro ter tido de abandonar Madrid por ocasião da sua tomada pelos muçulmanos e ter sofrido em lugar estranho com a falta de emprêgo, a dificuldade de alcançar a confiança dos locais, além da saudade da terra natal, o insere no rol dos santos vinculados com a imigração. A estória de Isidro salienta também o fato de que a pobreza e a condição de estrangeiro não dispensa o homem do dever de ajudar ao próximo e mesmo de socorrer os outros seres viventes. Assim, louva-se o fato de Isidro não apenas dar partes daquilo que ganhava como diarista aos pobres, como também às aves durante o inverno. Através dos séculos, a sua vida foi apresentada aos colonos e migrantes espánhóis como exemplo de que a vida de trabalho não deve prevalecer sobre a vida espiritual: acusado de começar tarde na sua labuta ou menos trabalhar por causa de dedicar parte de seu tempo a deveres religiosos, soube demonstrar que o trabalho que assim realizava mais rendia. A vida de Isidro foi decantada por Calderón de la Barca, Lope de Vega e muitos outros escritores espanhóis. Um estudo mais pormenorizado da história de São Isidro e de suas interpretações em hagiografias e homilias pode oferecer significativos subsídios para o conjunto de normas de conduta inerentes a sistemas culturais determinadores de identidade de comunidades de trabalhadores em países de formação espanhola. Constata-se, por exemplo, freqüentes menções à humildade e paciência com relação à inveja e à calúnia, à dignidade e às virtudes que caracterizariam o "castellano viejo", tais como laboriosidade, honradez e discreção. Um tal estudo oferece também subsídios para a consideração das normas transmitidas pela religião aos trabalhadores com relação a seus empregadores, assumindo assim relevância para estudos de história trabalhista. O "ora et labora" da tradição beneditina, formulado a partir da vida monacal, contemplativa, encontra no contexto do culto a Santo Isidro uma versão muito mais próxima do homem trabalhador. Não é formulada a partir da vida contemplativa, mas sim da perspectiva da vida ativa. O seu sentido, porém, permanece o mesmo.
San Isidro, Buenos Aires
Um dos grandes templos dedicados a Santo Isidro é aquele da localidade de mesma denominação na região da grande Buenos Aires. A igreja atual, atualmente em fase final de recuperação arquitetônica, é um dos mais muitos exemplos de arquitetura neo-gótica dos países latino-americanos, um caso porém especial pela qualidade construtiva e artística do projeto. A história da localidade remonta aos primórdios de Buenos Aires. Poucos meses após a fundação, por Juan de Garay, em 1580, da cidade sob a invocação da Santíssima Trindade e do Porto de Buenos Aires, o seu fundador deu início à repartição de terras em chácaras ao redor do Rio de la Plata. A região então chamada de Pago de la Costa correspondia, assim, nas suas características agrícolas, àquela das quintas citadas na lenda de São Isidro. A ereção de uma capela sob essa invocação, porém, deveu-se a um imigrante basco, Domingo de Acassuso, chegado a Buenos Aires em 1681. Foi resultado de um sonho, em 1706. Soldado e comerciante, realizou também atividades no funcionalismo colonial, entre outras como tesoureiro das caixas reais. As implicações de moral trabalhista inerentes à história de Santo Isidro poderiam ser aqui interpretadas em função das atividades de Acassuso. As chácaras da região exerceram papéis de importância na história argentina. A "Chacara do Bosque Alegre", local relacionado com a história da indepêndencia, abriga hoje o Museu Histórico Juan Manuel de Pueyrredón. (...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).