Doc. N° 2319
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
113 - 2008/3
Catedral de Santiago: Monumento nacional e relações histórico-culturais com a Europa
Trabalhos da A.B.E., 2008
A.A. Bispo
A presente edição desta revista é dedicada a complexos temáticos relacionados com a consciência latino-americana e a análise de discursos e imagens culturais à luz dos processos integrativos impulsionados pelo Mercosul. Estudos de imagens e símbolos herdadaos do passado colonial e que determinaram a formação de identidades de cidades e nações surgem como de fundamental importância para a elucidação de processos históricos ainda vigentes no presente. Esforços de superação de barreiras culturais que separam os povos do continente e a procura de valorização de traços que apoiem e fomentem a aproximação e a integração pressupõem o conhecimento do repertório de imagens e de seus significados.
Santiago de Compostela
Nesse estudo, não pode faltar a consideração pormenorizada de um vulto da história hagiográfica da Península Ibérica que se tornou emblemático para toda a história da Reconquista cristã e, por extensão, da Conquista da América Latina. Trata-se de Santiago de Compostela, o apóstolo do Ocidente, centro de uma rêde de caminhos que cruzam toda a Europa e que tiveram seus prolongamentos no mundo extra-europeu. Todos os esforços voltados ao estudo e à compreensão de uma consciência latino-americana e desejos de possíveis resignificações exigem o conhecimento da hermenêutica tradicional relacionada com o Apóstolo. Somente um estudo mais pormenorizado poderá superar o relacionamento histórico-cultural do Apóstolo com a Reconquista e a Conquista, mostrando, por detrás dessa concretização histórico-medieval, um significado mais profundo e abrangente, passível de ser atualizado em outros contextos e em situações menos beligerantes. A contínua presença de Santiago na História Colonial da América Latina é marcada pela denominação de numerosas cidades. regiões e pela dedicação de catedrais e igrejas. Algumas delas já não apresentam o nome na sua designação, mas a história demonstra que foram fundadas sob a invocação de Santiago. Basta aqui recordar Caracas, fundada em 1567 como Santiago de León de Caracas, Santiago de Guayaquil, no Equador, e São Felipe e Santiago de Montevideo. Dentre as grandes cidades que trazem o nome na sua denominação salientam-se Santiago de Cuba e, sobretudo, Santiago de Chile. Poder-se-ia ainda considerar, entre muitos outros exemplos, a província de Santiago de México, Santiago de Cali (Colombia), Santiago de Guatemala, Santiago de Veraguas, Santiago de Chiuitos (Bolívia) e Santiago de los Caballeros (República Dominicana). Apesar de Santiago de Compostela estar ligado a Portugal por uma rêde de caminhos, apesar de ter a sua modelaridade desempenhado também aqui um papel relevante no processo de Reconquista e, assim, da formação do país, apesar de sua contínua presença em nomes de cidades e na invocação de igrejas, o culto jacobeo não determinou de forma tão explícita a identidade lusa como a da Espanha. Os estudos de simbologia hagiográfica são aqui mais complexos, pois exigem a consideração de outros vultos da hagiografia nacional que possivelmente tivessem desempenhado função similar ao Patrono da Espanha. Mesmo assim, porém, sabe-se do significado relevante de Santiago na ação portuguesa no mundo extra-europeu, sobretudo em esferas de conflito com o mouro e nas suas transplantações, por exemplo no antigo Reino do Congo. Pode ser considerado como significativo da situação ibérica, porém, que Santiago se encontre menos representado no Brasil do que em países da América hispânica. Os estudos jacobeos, de significado para a medievalística, para os estudos ibéricos e para a simbólica em geral, são também de relevância especial para os estudos latino-americanos, em particular numa fase em que se procura fomentar a integração, superando separações. Não há talvez lugar mais predestinado para o desenvolvimento desses estudos do que o da capital do Chile, que traz o nome do Apóstolo do Ocidente e Padroeiro da Espanha na sua própria designação.
Catedral de Santiago
Dentre os edifícios emblemáticos de Santiago encontra-se indubitavelmente o da sua catedral como principal templo do país, ecentemente reformada. Dedicada à Assunção de Nossa Senhora, a catedral denota significativamente que estudos de Santiago não podem ser separados da veneração mariana. A catedral de Santiago, dominando, ao lado do Palácio Arquiepiscopal e da Paróquia do Sagrado a central Plaza de Armas, constitui por assim dizer o coração da estrutura urbana da capital chilena. Assim como os demais edifícios do conjunto, é considerada como monumento nacional. Nela se encontram não apenas os restos mortais de arcebispos e bispos, mas também sepulcros de vultos históricos da nação. Assim como as catedrais de Montevideo e de Buenos Aires, a do Chile assume nesse sentido caráter de mausoléu nacional. Ali se conservam, por exemplo, os corações de heróis do combate de La Concepción, assim como restos de José Miguel Carrera e seus irmãos. Ao padroeiro da cidade, o apóstolo Santiago, é dedicado um dos altares laterais.
A destinação desse local da Plaza Mayor para a construção do templo remonta ao fundador de Santiago, Pedro de Valdívia. Foi instituida sob o pontificado de Pio IV, a 18 de maio de 1561. A história da construção, porém, é marcada por sucessivas reedificações e reformas, e a atual catedral é a quinta na série. Os elos com a Europa manifestam-se na atuação dos arquitetos e na influência estilística que exerceram. Salienta-se sempre o fato de que o diretor da construção, Antonio Acuña, sob o govêrno de Ortiz de Rosas, a partir de 1748, trabalhou com base em projetos de jesuítas provenientes da Baviera. Pouco se considerou, porém, que a vinculação desse templo consagrado em 1775 com o mundo sul-alemão implica em todo um universo cultural caracterizado pela Contra-Reforma e re-catolização da Europa Central. Esse vínculo, de extraordinário significado para a compreensão da história cultural do Paraguai e de suas conseqüências, também para o Brasil, parece não ter sido ainda suficientemente analisado em seus alcances. A fachada da Catedral, porém, foi realizada posteriormente segundo projetos encomendados a um arquiteto italiano a serviço da Espanha, Joaquín Toesca. Estilisticamente, esse projeto apresenta já orientação neoclássica.
A arquitetura da catedral do Chile surpreende pela grandiosidade de suas naves e pelo mobiliário em madeira talhada do Capítulo e dos púlpitos. O altar-mór, remodelado em 2006, fora construído em Munique, em 1912. De particular interesse organológico é o órgão construído nas oficinas de Calera de Tango, de 1756.
Música sacra na Catedral de Santiago e nas igrejas do Brasil
A relevância da Catedral de Santiago na história comum dos países latino-americanos pode ser avaliada sob diversos aspectos. Com relação ao Brasil, foi ponto de partida para uma cooperação chileno-brasileira no campo da musicologia. Em 1975, foi alvo de encontros relacionados com a publicação do artigo "La música en la catedral de Santiago de chile durante el siglo XIX", de Samuel Claro Valdés (in: R. Günther, ed., Die Musikkulturen Lateinamerikas im 19. Jahrhundert, Regensburg: Gustav Bosse 1982, 167-198). Seguindo sobretudo os trabalhos desenvolvidos por Robert Stevenson, o autor defendia a posição excepcional da Catedral do Chile no panorama geral da história da música do continente. Assim como o templo conheceu sucessivas reconstruções na sua história, também a história da música estaria marcada por contínuas superações. Assim, a música da Catedral de Santiago no século XVIII ter-se-ia elevado acima do nível daquela do século XVII e, no século XIX, acima do nível do século XVIII. No seu estudo, Samuel Claro Valdés salientou o significado da Catedral nas suas relações com a história política da nação. A passagem da Colonia à República teria transformado essencialmente o acontecer musical catedralício, introduzindo novas práticas que tiveram estreitos elos com os sucessos históricos do século XIX. A lista dos mestres que se sucederam na Catedral durante o século XIX sintetizaria de forma expressiva esse processo. José de Campderrós (1793-1812) foi sucedido por José Antonio González (1812-1840), sobre quem teriam recaído algumas conseqüências dos difíceis começos da República. Henry Lanza (1840-1846), filho de italianos nascido em Londres e contratado em França, foi um dos principais protagonistas da exteriorização da música sacra em meados do século XIX. O peruano José Bernardo Alzedo (1846-1864), autor do Hino Nacional do Peru, representou o ponto culminante da música catedralícia no século XIX. José Zapiola (1864-1874) alcançou o posto de mestre-capela graças à celebridade adquirida no mundo civil como criador de um hino dedicado à vitória do exército chilena em Yungay (1839). Teve, como sucessor, o organista alemão Tulio Eduardo Hempel (1874-1882), que foi também diretor do Conservatorio Nacional de Música. Após o interregno representado pela ação de um músico pouco capacitado, Manuel Arrieta (1882-1894), esse período de transição foi marcado pelas atividades do presbítero Moisés Lara. Como nome excepcional dessa série de mestres, Claro Valdés salientou o de José de Campderrós, nascido em Barcelona e mestre-capela da Catedral de Santiago de 1793 a 1812. Como "un clásico maestro de capilla colonial" atuou como compositor, determinando o repertório da catedral. Na época desse encontro com Claro Valdés, uma de suas missas, em Sol Maior, havia sido há poucos anos restaurada e apresentada. As várias ocorrências bélicas sofridas pelo Chile tiveram a sua repercussão na música da Catedral, ou melhor, a intercessão de auxílios celestiais foi sempre solicitada. Isso deu-se por exemplo por ocasião de ataques de ingleses e à época da invasão napoleônica da Espanha. Ter-se-ia, aqui, uma continuidade do ethos da tradição jacobea, o "matamoros"? O período de apogeu da história da música sacra catedralícia, após anos de influência operística, foi, segundo Valdés, representado por José Bernardo Alzedo. Tendo nascido em Lima, em 1788, chegara ao Chile em 1823, após ter participado em ações militares como músico do Batalhão N°4 do Chile, foi nomeado em 1846. Em 1864, foi chamado pelo Peru para fundar o Conservatório Nacional de Música, em Lima.
Marco da restauração: órgão inglês
Marco na restauração da música sacra foi a vinda de um órgão encomendado na Europa, em 1849, o que possibilitou a gradativa substituição da orquestra na prática musical catedralícia. Através de um agente em Londres, Alexander Caldcleugh, que havia estado no Chile, entre 1819 e 1821, o instrumento foi encomendado ao fabricante Benjamín Flight & Son. A vinda do órgão foi acompanhada pela de um organista, Henry Howell. Paralelamente, comprava-se na França um livro de canto gregoriano e, em Madrid, obras musicais recomendadas por Hilarión Eslava, mestre da Real Capela. A inauguração deu-se com Te Deum solene, em 1851. O debate desenvolvido com Samuel Claro Valdés, na época, baseou-se na comparação do desenvolvimento histórico-musical da Catedral do Chile com aquele das igrejas brasileiras. O movimento restaurativo no Chile e as extraordinárias circunstâncias da vinda do órgão, do organista e de materiais sacro-musicais parecem denotar uma certa precedência e maior consciência do seu significado pelas autoridades eclesiásticas. Entretanto, como Claro Valdés bem acentuou, esse período foi sucedido por uma época de decadência artística sob José Zapiola, superado apenas com a atuação do organista, compositor e regente alemão Tulio Eduardo Hempel, sucessor de Henry Howell após a sua morte, em 1860. Transcorridos mais de 30 anos do interlóquio aqui resumido, espera-se que o diálogo chileno-brasileiro possa ser retomado sob novas perspectivas teórico-culturais, para além dos limites da musicologia histórica tradicional.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).