Doc. N° 2356
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
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Resenha
Sandra Oswald. Berlim, 40 graus: Aventuras de uma jornalista carioca em terras estrangeiras. Rio de Janeiro: Uni-Mídia, 1999. 120 p. ISBN 85-86921-10-6
A.A.Bispo
A autora, jornalista e tradutora do Rio de Janeiro, viveu em Berlim entre julho de 1996 e dezembro de 1997. Realizou trabalhos para a televisão alemã ARD e reportagens para a rádio SFB4 Multikulti. O seu documentário cinematográfico Galera foi premiado com o primeiro lugar no festival de Barcelona, em 1997. Na presente publicação, registra as suas impressões e experiências na capital da Alemanha. A obra, não tendo pretensões teóricas, merece atenção por diversas razões. Há uma grande produção européia a respeito do Brasil, escrita por jornalistas e viajantes das mais diversas profissões. Sabe-se, de relatos do passado, o quanto possuem de interesse para os estudos histórico-culturais, se considerados com o necessário cuidado crítico. O estudo da literatura de viagens é parte importante dos estudos culturais. Não são trabalhos de cunho científico-cultural, mas representam êles próprios objetos de estudos. Podem ser fontes de informação, são porém ainda mais significativos para o estudo de imagens do país e da própria cultura do observador. Quanto mais recentes, porém, menos interesse têm oferecido aos estudos culturais. A imensa produção jornalística serve não apenas ao necessário intercâmbio de informações e de atualidades. Cada vez mais percebe-se uma tendência que já se pensava superada do passado, quando algumas disciplinas culturais ainda não estavam institucionalizadas acadêmicamente e havia a necessidade de que não-especialistas se dedicassem a questões históricas e culturais. Essa situação, observada na Europa e que muitas vezes surge como de conseqüências negativas, até mesmo como causa de retrocessos no desenvolvimento dos estudos euro-brasileiros, vale em ambas as direções nas relações bi-laterais. Jornalistas e correspondentes que atuam ou atuaram no Brasil divulgam não apenas atualidades; publicam textos de cunho quasi-científico, sem considerar porém adequadamente o desenvolvimento do pensamento e a situação dos debates específicos. Cada vez mais há também jornalistas brasileiros que atuaram em emissoras européias e que passam a exercer funções de especialistas em assuntos culturais, quase que em desrespeito àqueles devidamente formados no país e no Exterior. Esse problema, que deveria vir a ser debatido com mais cuidado, não significa, em absoluto, desmerecer a atividade jornalística. Pelo contrário, um trabalho conjunto, uma cooperação sensível e cuidadosamente respeitante de especializações poderia ser altamente produtiva. A literatura de viagens de brasileiros na Europa é muito menos volumosa do que a de europeus que visitaram o Brasil. Com a presença cada vez maior de brasileiros nos países europeus, esta é uma situação que tende a ser modificada. As primeiras impressões são aquelas que mais sensivelmente registram as pequenas diferenças. Após algum tempo, com a adaptação às novas situações, a acuidade perceptiva diminui. A visão a posteriori de fatos e de processos difere muito daquela gravada nos primeiros momentos. Nesta necessária sensibilidade pelas pequenas diferenças aproxima-se o escritor com os seus registros daquele estudioso empírico com as suas anotações de pesquisador participante. O leitor ganha a impressão, ao ler os muitos episódios que constituem essa publicação, que a autora registrou-os ainda em momentos que a sua percepção se encontrava aguçada pelo diferente universo que presenciou. Assim, o seu relato registra inumeráveis aspectos da realidade que se perderiam por não serem por outros percebidos ou considerados dignos de registro. O primeiro relato, de título No início era... o frio, a autora descreve as suas peripécias com o aquecimento a carvão de sua moradia no bairro de Kreuzberg, zona socialmente problemática da capital alemã devido à grande quantidade de estrangeiros, sobretudo turcos. Já a sua primeira frase revela o estilo leve, coloquial, espirituoso e, ao mesmo tempo, auto-irônico da autora: "O dramático relato que aí segue conta a saga da carioca que vos fala, quando se defrontou com o terrível aquecimento a carvão, que nos dias de hoje ainda grassa na cidade de Berlim, mesmo do lado ocidental. No original, essa era parte de uma carta enviada para casa, cujo único comentário de mamãe foi: que trabalheira, não?" (pág. 9) A seguir, em Onibus número 100, descreve uma viagem de ônibus pela cidade, no tom de um guia turístico, inserindo inúmeras observações relativas à vida quotidiana: "Suba para o andar de cima, que é muito mais bonito. Corra pra pegar um dos quatro lugares na frente. Não deixe que os japoneses vençam você pelo número nem os italianos pelo volume. (...)" (pág. 12) Em Campinas, filial Berlim, registra o que chama de verdadeira colônia de campineiros em Berlim que se teria formado nos últimos dez anos antes da sua estadia. Inicia aqui uma verdadeira história oral dessa fase da presença brasileira em Berlim, anotando dados, histórias e estórias dos protagonistas: "O pioneiro da onda Campinas é Jasso Mariano. Aos 14 anos, ele saiu da sua cidade natal e foi correr em São Paulo. Aos 20 anos se sobressaía entre os grandes do atletismo dos anos 80, como Robson Caetano. À procura de patrocínio, cada um foi para um lado. Jassa escolheu e adotou a Alemanha em outubro de 1987, mas acabou abandonando o esporte. (...)" (pág. 16) No seu relato, transmite inúmeros detalhes da vida do dia-a-dia da comunidade: "Não chega a surpreender que o ponto de encontro para campineiros e brasileiros em geral, tanto os que moram quanto os que passam por Berlim, seja o restaurante Taba. Ali se mata a saudade do aipim frito, do pudim de Leite Moça, do guaraná Antártica e principalmente da música brasileira ao vivo. (...)" (pág. 18) Em O Carnaval das Culturas, registra e comenta a participação e o papel de brasileiros. Cita os grupos Afoxé Loni Iabás, Amasonia, Boi da Caipora Doida, Capitães de Areia, Cara de Alegria/Terra Brasilis, Ramba-Samba e Samberra, assim como registra ações apologético-culturais de difusão de concepções afro-brasileiras através da música por um Murah Soares, "um sotero-paulistano que assumiu, talvez com os orixás, a incumbência de espalhar os ritmos afro-brasileiros pela desengonçada Alemanha". (pág. 23) Sob Festas Populares, registra tanto a realização de festas juninas em comunidades de brasileiros na Alemanha, no exemplo do Schmiedehof em Kreuzberg e da parada do Christopher-Street-Day. Em Povo de Rua, exprime uma negatividade que sentiu na atmosfera e na imagem de Berlim através de uma associação singular com Exú: "Berlim até que é legal. O que estraga é que tem muito exu. (...:) A começar pelos bêbados, é uma loucura a quantidade de homens que andam na rua com a latinha de meio litro de cerveja na mão." (pág. 27) Em Vive la Différence!, registra uma série de pequenos fatos e ocorrências da vida urbana que também aqui passam despercebidos por todos que vivem já há mais tempo na Alemanha. Com muito espírito e humor registra que as saídas de veículos não têm sirene nem placa luminosa, que a maior parte dos prédios não têm elevador, que um carro de supermercado exige uma moeda para ser liberado, que transportes coletivos não têm roleta, que a numeração das casas é diferente daquela do Brasil e muitos outros pormenores da vida quotidiana que diferem daqueles do Brasil. Em O Verão mandou dizer que não vem, descreve vantagens e sobretudo desvantagens de um verão berlinense, sobretudo no bairro de Kreuzberg: "O bom mesmo é aproveitar o clima quase carioca dos barzinhos e cafés com gente bonita nas mesas que invadem as calçadas enquanto o sol prestigia, o que em geral vai até quase 10 horas da noite. (...) Se esquenta um pouquinho mais, europeu ou não, o povo sua. Sem banho... Quem achar que estou exagerando pode vir conferir." (pág. 35-36) Essa sua capacidade de observar e registrar fatos da vida quotidiana manifesta-se em vários de seus outros textos. O fato de unir a observação com a sua própria participação contribui para a transmissão de atmosferas e ambientes. Este é o caso, por exemplo, do texto Os Fora da Lei, onde descreve as peculiaridades do sistema de transportes coletivos de Berlim e as aventuras daqueles que forem encontrados sem bilhetes: "Organização ou medo? Toda vez que eu conto como é o nosso sistema de metrô no Brasil, com as catracas e roletas, os olhinhos dos alemães brilham de felicidade. Eles acham o máximo esse sistema e garantem que a tal liberdade vigiada, com tudo aberto e olhos atrás da sua nuca, não está com nada. (...)" (pág. 47) A vida de Berlim vista pelos olhos do estrangeiro tem interesse também para o próprio alemão, uma vez que mostra aspectos de uma realidade que já não mais percebe e abre-lhes os olhos para outras perspectivas e dimensões de marcas de sua história. Um texto de particular significado é, nesse sentido, aquele referente às Fronteiras do Passado, onde a autora considera o mundo de Berlim sob o aspecto de suas relações com a arte. (págs. 56-59) Dentre os inúmeros aspectos altamente sugestivos de suas observações pode-se salientar aqueles que dizem respeito à sua auto-observação, a das transformações que sentiu no seu comportamento e, talvez, na sua mentalidade: "Tão ocupada eu tenho estado em registrar para a posteridade como acabei me tornando uma genuína berliner Schnauzer - no Rio eu já destoava da paisagem com meu jeitão rabugento - que quase me esquecia de mencionar o que os jornais noticiam por aqui." (pág. 87) Inserindo os seus registros na sua própria vivência, a autora conseguiu emprestar-lhes um tom profundamente humano: "Nos piores dias de crise que eu precisei passar aqui na Alemanha, experimentei um fenômeno que até então desconhecia. Nesses dias, em que eu mal conseguia suportar a dor de um coração partido e a constatação de que o trabalho não ia ser tão fácil quanto eu imaginava - e isso justamente por causa do jeito das pessoas - muitas vezes eu me sentei numa pedra ou num banco de praça para chorar." (105) Descrevendo uma experiência que teve com um tocador de realejo, em Meio Cheio, Meio Vazio, a autora tematiza a questão da falta de sensibilidade dos habitantes da grande cidade e de outras metrópoles. Partindo de uma expressão do tocador de realejo - "Vocês estão todos mortos! Todos mortos e não sabiam", tece reflexões a respeito da indiferença e insensibilidade: "Aos poucos o homem começou lá a girar sua manivela e voltou a si. Então fui eu que saí dali com aquelas palavras na cabeça. Claro que eu sabia do que é que ele estava falando.(...) Essa fieza de quem já morreu e não sabe, de quem já não consegue mais se emocionar, não é exclusividade dessa capital somente. Embora eu ache que aqui ela ultrapassa a média das metrópoles mundiais, apesar do estonteante berliner Flair." (pág. 110) O livro de Sandra Oswald, despretencioso e aparentemente singelo, pode ser assim considerado, sob muitos aspectos, como de particular significado para os estudos interculturais. É um exemplo de como o trabalho jornalístico pode-se aproximar dos estudos culturais sem superar esferas de especialização, pelo contrário, enriquecendo-os com as suas próprias qualidades. A cada página o leitor se surpreende com a acuidade perceptiva e capacidade de observação da autora. Trata-se de uma série de estudos sensíveis, que são muito mais do que simples documentários: denotam, na sua aparente simplicidade, reflexões e análises e, além do mais, um modo de ver que une intelecto à emoção.