Doc. N° 2355
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Bretanha-Portugal-Brasil
O santo ferreiro e o resgate de escravos: Eloi na França, em Portugal e na África
Bodilis. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Bodilis Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H. Hülskath No âmbito do ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil, realizado em maio-junho de 2008 pela A.B.E. (sobre os seus objetivos veja "Tema em debate" desta edição), visitou-se a pequena cidade de Bodilis. A igreja de Bodilis pertence ao círculo daquelas igrejas bretãs destacadas pela sua arquitetura de "espaço paroquial fechado" e ossuários. Infelizmente, o ossuário de Bodilis foi demolido em 1825.
Bodilis, parte da antiga paróquia de Plougar, encontra-se em território cristianizado no século VI por Paulo-Aureliano, discípulo de Santo Iltud. A cultura cristã local remonta portanto a um período bastante remoto, podendo servir assim como campo privilegiado para estudos da permanência, em forma reinterpretada, de estruturas simbólicas de antiga visão do mundo. O mais significativo, porém, é que Bodilis oferece a oportunidade para estudos relativos a determinados aspectos dessa concepção global do mundo, ou seja, aqueles relacionados com o mundo da terra, camponês, e com o dos mercados.
A própria história da localidade está estreitamente vinculada com mercados e feiras no século XV. O senhor de Coatsabied (Coetsabrieuc), Olivier de Kerouzéré, obteve, em 1429, permissão do Duque Jean V para a realização de um mercado anual por ocasião do "Pardon" de São Mateus. Esse mercado foi mais tarde transferido para Landivisiau. O vínculo com São Mateus não é sem significado, e os estudos simbólicos relacionados com esse evangelista têm revelado relações com o ciclo do ano, os elementos e suas conotações. O florescimento da localidade no decorrer do século XVI manifesta-se na arquitetura da sua igreja, sob a invocação de Notre Dame de Bodilis. Iniciou-se em 1564, tendo sido a seguir ampliada. Os trabalhos do século XVII foram efetuados sob a direção do arquiteto Christophe Kerandel, de Lanneuffret. O pórtico, construido em 1585 e 1601, apresenta esculturas que permitem análises do programa visual e de significados. O portal principal data de 1570.
Uma atenção especial foi dedicada à arquitetura interior e aos altares da igreja. O retábulo do altar principal foi executado de 1695 a 1701 por Guillaume Lerrel, de Landivisiau, pintado e dourado em 1705. No santuário abaixo do altar-mor, há nichos com imagens de São Pedro e São Paulo. Aos lados, os de S. Rafael e S. Pol de Léon.
O retábulo de Notre-Dame de Bodilis data do início do século XVII (ca. 1623). O de São João Batista, também do século XVII, é emoldurado por imagens do Precursor, de Santo Eloi, de Santa Clara e de Santa Catarina.
Há numerosas outras imagens do século XVI, a de Sta. Clara, Sta. Catarina, Sta.Margarida, São João, Santa Maria Madalena e São Cristóvão, além da de Cristo esperando o suplício. Um estudo mais aprofundado mostra que a escolha dessas imagens não foi arbitrária, mas que se inserem em conjunto coerente de relações.
Santo Eloi
A igreja de Bodilis dá ensejo a reflexões sobre um elo inesperado entre o universo cultural bretão e o luso-afro-brasileiro. Encontra-se, nesse templo, uma imagem em situação de destaque de Santo Eloi, hoje pouco lembrado no mundo de língua portuguesa. Foi, porém, venerado em Portugal na Idade Média e de grande significado na história da ação cristianizadora dos portugueses na África. A veneração de S. Eloi em Portugal parece ter sido trazida da França no processo de formação do país no decorrer da Reconquista. Éloi é a designação francesa de Eligius, nascido ao redor de 588, em Chaptelat, próximo a Limoges, e falecido em Noyon, a 1 de dezembro de 660. Esta data é, também, a da sua festa. Foi bispo de Noyon, de 641 a 660. A sua hagiografia diz que foi artesão, mais especificamente ourives e mestre de moedas no reinado de Chlothar II e Dagobert I. Pelas suas qualidades e aptidões tornou-se conselheiro do reino. A sua santidade manifestava-se sobretudo no empenho em resgatar escravos (e isso no século VII !). Fundou várias igrejas e conventos, entre êles Solignac. Com a morte de Dagobert I, em 639, Eligius abandonou a côrte, juntamente com o seu amigo Audoin, tornando-se sacerdote. Audoin (Dado, Ouen), nascido em 610, perto de Soisson, e morto a 24 de agosto de 684, em Clichy, era chanceler de Dagobert I. As suas relíquias encontram-se na igreja de S. Pedro, em Rouen. A 13 de maio de 645 foi sagrado bispo. Dedicou-se a partir daí à conversão de germanos.
Modêlo de ferreiros
Santo Eloi é considerado como paradigma dos trabalhadores em ouro e sobretudo dos ferreiros, assim como dos camponeses. Coerentemente, entre os seus atributos encontram-se instrumentos de ferro e de fundição, como martelos e alicates. Como trabalhador da matéria, terra, compreende-se o seu vínculo com a agricultura e com os lavradores. Além do Eloi Ferreiro há ainda o do Guerreiro, o conversor de alemães. É nesse contexto que se explica o seu elo com o símbolo do cavalo e que se manifesta nas práticas tradicionais: é invocado por motivo de doenças de cavalos e um de seus atributos é uma pata de cavalo. É de alta relevância para os estudos culturais - fato até hoje não considerado a não ser no âmbito de publicações e de eventos da A.B.E. - que o culto de Santo Eloi haja desempenhado um papel fundamental no início da história luso-africana. Os primeiros africanos trazidos para Portugal e ali cristianizados foram colocados sob a responsabilidade da Congregação de S. Eloi ou de São João Evangelista. O fato de ter sido evangelizador em vida explica o vínculo. Membros dessa ordem estiveram entre os primeiros enviados à África para as primeiras tentativas missionárias. A sua função paradigmática foi tão forte que o próprio rei do Congo, cristianizado, passou a usar trajes inspirados naquele da ordem, de cor azul. Há, porém, outro aspecto mais significativo e de maiores conseqüências: o elo da devoção a S. Eloi com o resgate de escravos, o fato de ser o modêlo, daquele que comprava escravos para dar-lhes a liberdade (do Cristianismo). Sob esse pano de fundo, os olhos do estudioso se abrem para dimensões mais amplas de relatos sobre combates do rei do Congo, tornado "Defensor da Cristandade na África" com forças inimigas. Assim como Eloi convertia germanos, assim africanos cristianizados, seguindo o seu modêlo, dedicavam-se à conversão de infiéis e ao resgate. Uma análise mais profunda, porém, exige que se considere o sistema de concepções no qual o modêlo se inseriu há muitos séculos antes e que se transplantou para as regiões extra-européias. Nos estudos já desenvolvidos no âmbito da A.B.E. demonstrou-se que a imagem do Ferreiro, documentada na antiga mitologia, correspondia de forma coerente a concepções relacionadas com o ano natural e com o sistema de elementos. Desse conjunto de concepções compreende-se a sua função na estrutura que representa a dinâmica elemental do todo. Essa imagem está vinculada com a parte descendente do ano, com o equinócio do outono e com o processo individuador. Nesse sistema, manifesta-se a relação com outro segmento do ano, por assim dizer simétrico. Dessas relações, e de suas correspondentes personalizações pode-se interpretar a relação simbólica entre Éloi e Ouen/Dado, entre o Ferreiro e aquele que se tornaria protetor de vendedores de bebidas e de cozinheiros, venerado na igreja de São Pedro, em Rouen. Qualquer leitor mais familiarizado com expressões sincretísticas da América Latina percebe, nestas poucas menções, estruturas e imagens conhecidas de tradições religiosas vigentes até o presente. Que a necessidade de revisão de hipóteses relativas às origens e ao significado dessas expressões é um fato que vem sendo salientado em eventos e publicações no âmbito da A.B.E.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).