Doc. N° 2349
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Hagio-historiografia em contextos globais Dionysius a Nativitate Domini OCD (Pierre Berthelot) e Redento da Cruz
Honfleur. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Honfleur, Capela de Nossa Senhora da Graça Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo Em poucas localidades da Normândia e da Bretanha encontra-se a presença do mundo de língua portuguesa tão viva do que na cidade portuária de Honfleur, vizinha a Le Havre (Calvados). Essa presença é devida hoje aos esforços para a canonização de Pierre Berthelot, conhecido sobretudo pelo seu nome religioso de Dionísio da Natividade. Por essa razão, a A.B.E. dedicou uma das jornadas do seu ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil a esse vulto da história cultural e hagiográfica. Na igreja de Santa Catarina, um dos monumentos arquitetônicos da cidade, não só se encontra uma imagem do beato como também painéis de uma exposição que relatam a sua vida e a do seu companheiro Redento da Cruz. O texto em português dessa exposição indica o interesse de visitantes de Portugal e do Brasil pela cidade de nascimento desse religioso que atravessou fronteiras culturais. Ao lado de fotografias e gravuras dos locais onde atuou em antigas possessões portuguesas do Oriente, alí se encontram também expostos documentos históricos que testemunham os esforços realizados no passado para a sua beatificação, ocorrida a 10 de junho de 1900, e programas de conferências, concertos e ações religiosas a serviço de sua memória. Um dos principais monumentos arquitetônicos de Honfleur tornou-se, assim, um local de presença do mundo de língua portuguesa na França e um dos principais centros de fomento da santificação de um nome da história hagiográfica de Portugal.
Pierre Berthelot está também presente na capela de Nossa Senhora da Graça, "Rainha do Carmelo", antigo local de peregrinação da Normândia, de oração de mareantes antes da partida para o Novo Mundo e de onde partiriam no século XIX impulsos para a fundação de Lisieux. Ali se encontram quadros, gravuras, vitrais e imagens do beato e ex-votos em forma de naves e outros objetos marítimos. O vínculo de Honfleur com Portugal, Brasil e comunidades lusófonas do Oriente é hoje assim garantido sobretudo pela veneração desses dois mártires, um bretão e outro português. A memória de ambos é compreensivelmente sobretudo cultivada pelos Carmelitas, tanto em Portugal como no Brasil. Este é o caso, por exemplo, do Carmelo de outra cidade portuária: Santos. Para os estudos culturais em contextos internacionais, esse elo hagio-histórico entre Honfleur e o mundo de língua portuguesa adquire sob muitos aspectos especial significado. Diz respeito à história colonial francesa na América do século XVII e à época crítica no mundo português, marcada pela concorrência holandesa no Oriente e pela presença francêsa no Maranhão. O vínculo intercultural possibilitado por Pierre Berthelot insere esses processos e conflitos no campo de tensões mais amplo criado pelo confronto entre o Cristianismo e o Islão, ambos em expansão no Extremo Oriente e na Indonésia. Testemunha uma fase importante na história missionária e cultural no Oriente, quando os missionários da Propaganda Fide gradualmente assumiram tarefas que antes estavam a cargo de religiosos do Padroado. Fala sobretudo de uma cultura do mar, de marinheiros, como elo comum entre a Normândia e a Bretanha e Portugal, e das dimensões simbólico-espirituais dessa cultura nos seus vínculos com a história religiosa e missionária dos Carmelitas. Há, também o aspecto histórico-científico, referente à cartografia e as relações franco-lusas no seu desenvolvimento.
Formação cultural em Honfleur e pesca de bacalhau
Pierre Berthelot nasceu em Honfleur, a 12 de dezembro de 1600. Nessa época, a localidade era um porto de mar de vida agitada, de comerciantes, marinheiros e colonizadores. Já em 1513, na flota organizada por Luis XII, marinheiros locais equipagem a nave La Louisa, comandada por Le Brun de Salenelles. Em 1542, Roberval e Jean Alfonce equiparam os três navios que levaram 300 colonos para o Canadá. Na época dos Descobrimentos, Honfleur mantinha vínculos com a Guinea e com as Índias Ocidentais. À época de Pierre Berthelot, época dos navios de Champlain para a Nouvelle France, mercadores locais tinham estado no Brasil, com Gonneville, e Daniel de La Ravardière ali procurava homens para o estabelecimento que queria criar no Maranhão.
Os principais elos coloniais e comerciais desenvolviam-se com os empreendimentos no Canadá, entre êles a pesca do bacalhau. O próprio pai de Pierre Berthelot era marinheiro e cirurgião, tomando parte como médico em viagens à Terra Nova. Da formação de Pierre Berthelot pouco se sabe. A sua biografia indica ter sido piedoso, sem porém ter tido especial vocação para a carreira religiosa. Na Capela de Nossa Senhora da Graça, lembra-se, porém, que ali várias vezes veio o rapaz orar em época de recrudescimento da devoção à Imaculada Conceição. A capela atual foi construída justamente à época de sua juventude, entre 1600 e 1615, financiada pelos burgueses e marinheiros da localidade, em terreno doado por uma senhora devota. A construção substituiu uma mais antiga, fundada antes de 1023 por Ricardo II, Duque da Normândia, e destruída no século XVI. Há muitos séculos os bretões e os camponeses normandos tinham Santa Ana e Nossa Senhora da Graça como padroeiras. Essa veneração era tão intensa que Santa Ana tornar-se-ia também padroeira da colonia no Canadá. Quando Jacques Cartier recebeu, em 1532, no Mont Saint Michel, a ordem de Francisco I° para explorar as novas terras na América do Norte, veio antes de deixar a França à capela de Honfleur. Pierre Berthelot cresceu, assim em meio a uma cultura simbólico-religiosa que dava uma dimensão espiritual à vida do mar. Barcas e naves, Santa Maria nas suas diversas associações com as águas (Nossa Senhora da Enseada), assim como Santa Catarina, encontram-se presentes na invocação de igrejas e altares.
A sua própria existência seria porém determinada pela vida de marujo. O jovem Pierre foi envolvido na pesca do bacalhau, partindo para o Canadá. Durante vários anos exerceu essa atividade, ganhando experiência e adquirindo conhecimentos técnicos de navegação.
Mundo português do Oriente
Em 1619, uma companhia de mercadores de Paris e Rouen organizou uma expedição de três navios (Montmorency, L'Ermitage e L'Esperance) às ilhas de Java e Sumatra, com o objetivo de compra de tecidos e especiarias. Pierre Berthelot embarcou na nave L'Esperance, sob o comando de Robert Grave, que havia sido parceiro de Champlain no Canadá, entre 1605 e 1610. Os navios passaram pela Madeira, no dia 17 de outubro. Dobrou-se o Cabo da Boa Esperança no dia 14 de abril de 1620. O admiral da flota, Beaulieu, por motivo de avarias, decidiu fazer uma escala no Madagascar. A nave em que se encontrava Berthelot prosseguiu a viagem à Sumatra, passando por Bantam.
Os franceses entravam aqui numa região que vivenciava graves tensões. Comercialmente, os portugueses ainda mantinham o predomínio, eram porém cada vez mais premidos pela ação dos holandeses que já se haviam estabelecido em vários pontos. Naves portuguesas, em retorno à metrópole, corriam o risco de ataques dos piratas. Além do mais, sultanatos locais conversos ao Islamismo em expansão representavam parceiros comerciais instáveis, podendo mudar as suas relações com os católicos e protestantes do Ocidente dependendo das circunstâncias e dos interesses. O conflito confessional europeu refletia-se, assim, nas relações com o Islão.
A própria viagem de Berthelot foi atribulada mais pela presença dos holandeses do que propriamente pelas tensões com os nativos. Assim, na costa de Java, constatou-se que o porto de Bantam era assediado pelos holandeses. No porto de Iakatra (Batavia, Jacarta), a nave onde viajava Berthelot foi atacada, pilhada e incendiada por piratas. Dispersando-se a equipagem, Pierre Berthelot permaneceu em Bantam com mercadores bretões de Saint Malo. Estes procuravam realizar negócios de cabotagem no arquipélago, apesar do perigo representado pelos holandeses. A caminho das Celebes, os franceses foram atacados por um navio de guerra holandês, sendo aprisionados. Receberam porém autorização para que se instalassem em Makassar. Sendo esse empreendimento de pouco sucesso, Berthelot retornou a Bantam, de onde voltou a fazer viagens de cabotagem. Com a crescente presença de holandeses, e não desejando viver em ambiente marcado pela ação de europeus não-católicos, Berthelot partiu para Málaca, então bastião português. Tudo indica que razões religioso-culturais foram decisivas para essa passagem à esfera portuguesa. A afinidade proporcionada pelo catolicismo foi mais forte do que as diferenças políticas entre a França e Portugal, então abaladas pela ação francesa no Maranhão. Berthelot chegava a Malaca como um profundo conhecedor da geografia e da situação no arquipélago indonésio. Participando nos empreendimentos portugueses, expandiu os seus conhecimentos geográficos da região. Tendo aprendido o português e também o malaio, tornou-se um especialista valioso para os portugueses. A êle foram confiadas galeras para a guarda costeira. Anotando o que observava, realizou mapas da região, tornando-se renomado cartógrafo.
Piloto maior das Índias, cosmógrafo real e carmelita em Goa
O passo decisivo na vida de Pierre Berthelot deu-se com a sua ida a Goa, então verdadeira Roma do Oriente, em 1629. Sob o govêrno de Nuno Álvares Botelho, foi nomeado primeiro piloto de uma expedição a Málaca, formada por 30 navios. Nesse empreendimento, os portugueses conseguiram combater os aliados dos holandeses, reconquistar a fortaleza de Xifera e obter vitória em batalha naval. No retorno à Goa, pelo seu procedimento, foi nomeado de Piloto Maior das Índias e cosmógrafo real. Foi autor de Tabulae Maritimae, um documento de grande significado da história da navegação, conservado hoje no Museu Britânico (Ms. Sloan 197). Permaneceu seis anos a serviço do Vice-Rei da Índia. Dos empreendimentos em que tomou parte, salientou-se a esquadra de 28 navios que dirigiu ao Zanzibar para a libertação de portugueses. De 1631 datam as suas relações com um carmelita descalço francês, o P. Philippe de La Très Sainte Trinité, proveniente de Avignon. Sob a sua influência, introduziu-se no universo carmelita. tomou o hábito em 1634 e passou a viver no Carmelo, onde estudou latim e filosofia. No dia de Natal de 1636 fêz a sua profissão de fé, e a 24 de agosto de 1638 tornou-se sacerdote. Tomou o nome religioso de Dionísio da Natividade. A transformação radical da existência de Pierre Berthelot, de marujo de pesca de bacalhau a piloto envolvido em atividades comerciais e guerreiras e a religioso dedicado à vida contemplativa, ascética e mística não foi apenas resultado da influência do seu compatriota carmelita. A sua formação religioso-cultural em Honfleur o preparara para esse abandono da vida até então agitada que tivera.
Martírio em Achem
Em 1638, o Vice-Rei português, visando concluir a paz com o soberano de Achem, um sultanato na Sumatra, preparou uma embaixada a ser ali enviada, encarregando Francisco de Souza Castro, antigo governador de Málaca para organizá-la. Este, que conhecia Berthelot, conseguiu, após conseguir a anuência das autoridades religiosas de Goa, que o carmelita nela tomasse parte como um dos principais conhecedores da região e da língua. O carmelita-piloto dirigiu as três galeras dessa expedicão. Com êle viajou Tomás Rodrigues da Cunha (Lisouros/Paredes de Coura 1598-1638), que havia entrado para o Carmelo Teresiano no convento de Goa alguns anos anos. Também Tomás Rodrigues da Cunha experimentara uma mudança total na sua vida. Nascido em família abastada, embarcara com apenas 19 anos para a Índia, servido como soldado, cabo de esquadra e capitão de Meliapor. Após entrar para a Ordem dos Carmelitas Descalços de Goa, fora enviado para uma casa dessa ordem em Tatta (Paquistão), onde fêz os votos e recebeu o nome de Redento da Cruz. Logo após terem abandonado Goa, a embaixada foi atacada por dois navios holandeses. Nesse combate, Berthelot foi ferido. Chegaram a Achem no dia 25 de outubro. O soberano local, que havia sido influenciado pelos holandeses, persuadido de que a embaixada era enganosa e de que os portugueses vinham com intenções inimigas, receberam aparentemente com honras os recém-chegados para, em terra, aprisioná-los. Durante um mês foram mal-tratados e colocados ao uso de poderosos locais para trabalhos forçados e degradantes. O objetivo, nessa época de expansão do Islamismo, era a de forçá-los à conversão. Berthelot, que atuava como intérprete, aconselhou até o fim os seus companheiros a não aceitarem as propostas vantajosas de uma conversão e a não terem receio das ameaças. Assim, todos os seus companheiros foram mortos a golpes de lanças e flechadas. No próprio martírio, exortava a seus companheiros à coragem. Os soldados, impressionados, recusaram-se a matá-lo. O soberano de Achem mandou então que viessem elefantes, que o pisotearam. Ainda não morto, foi um cristão convertido ao Islamismo que lhe deu o golpe mortal. Morreu em 29de novembro de 1638.
Segundo o P. Philippe, que deixou dados biográficos sobre o carmelita, vários milagres ocorreram após a sua morte. Assim, após ser enterrado, o seu corpo reapareceu no mesmo local do martírio. Por fim, o soberano de Achem mandou que o seu corpo, com lastros, fosse jogado ao mar.
Contextos cristão-islâmicos
A história de Dionísio da Natividade - e de Redento da Cruz - insere-se sobretudo na história cultural da tensão entre o Cristianismo e o Islamismo em contextos globais. As circunstâncias do martírio demonstram a profunda convicção dos carmelitas de que uma conversão ao Islamismo seria pior do que o próprio suplício. A hagio-historiografia toca aqui portanto em complexo cultural sensível nas circunstâncias atuais. Torna-se necessário, portanto estudos mais aprofundados que, para além de contextualizar historicamente os fatos, promova a análise de estruturas intrínsecas à própria cultura que possibilite o entendimento de significados de imagens e reduza potencialidades de conclusões e acentos questionáveis. O conflito com o Islão não era apenas uma questão local da região, mas sim pertencia à história dos Carmelitas. A existência dos eremitas no Monte Carmelo, dando prosseguimento à tradição antigo-testamentária de Elias e seus discípulos, já datava dos primeiros séculos cristãos. À época das cruzadas, o Carmelo vivenciou um florescimento. Com o perigo islâmico, muitos monges retornaram à Europa, fundando conventos em Chipre, Sicília, na França e na Inglaterra. Adaptações a situações européias levaram a modificações da vida eremítica e a uma aproximação às ordens medicantes. Certos afrouxamentos da disciplina interna não foram aceitas posteriormente pelos carmelitas descalços. No decorrer da Idade Média, vários carmelitas se destacaram como professores, atuando na fundação de universidades. Salientaram-se também no combate a movimentos considerados heréticos. A intensidade da devoção mariana dos carmelitas levaram a que fossem designados como Irmãos de Nossa Senhora. O final da Idade Média foi caracterizado por tendências ao relaxamento da disciplina e a movimentos de sua revitalização. À época da Reformação, bispos de várias cidades européias eram carmelitas. Entretanto, a Reformação representou uma grande ameaça à ordem, e muitas províncias foram extintas. Sob a atuação de N. Ausdet (1523-62) e G. B. Rubeo (1562-78), os Carmelitas conseguiram recuperar-se, sobretudo na Espanha e em Portugal. De grande significado foram as reformas de Santa Teresa de Ávila e de S. João da Cruz no século XVI. No início do século XVII, desenvolveu-se também o trabalho missionário, sobretudo no Oriente, na Pérsia, na Síria, na costa do Malabar e na China. É sob esse pano de fundo que a vida e a conversão de Pierre Berthelot deve ser considerada. A sua entrada no Carmelo ocorreu no âmbito de uma revitalização da Ordem, do apogeu da mística ibérica e da ação missionária carmelita. O conflito com o Islão impregnava a própria história da Ordem e marcara a sua memória histórica no Ocidente. O combate à Reformação estava também profundamente vinculado à auto-consciência carmelitana. Com a formação que obtivera em Honfleur, e com a experiência existencial que tivera dos conflitos no Oriente, o encontro com o Carmelo parece ter representado para Pierre Berthelot o reconhecimento de significados profundos por detrás de suas concretizações históricas. Tornar-se-ia necessário, aqui, que, em estudos posteriores, se aprofundassem as bases dessas estruturas conflitivas, e isso leva a estudos tipológicos do Velho Testamento, sobretudo aqueles relacionados com Elias. (...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).