Doc. N° 2348
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Bretanha-Brasil
Nossa Senhora Negra de Guincamp Notre Dame de Bon Secours
Guincamp. Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Guincamp Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo No âmbito do ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil, desenvolvido pela Academia Brasil-Europa em maio-junho de 2008, dedicou-se uma jornada de reflexões a uma questão de simbologia de particular relevância para o Brasil: o da representação de Maria em imagens negras. Não se pode esquecer que esse é o caso da própria padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Aparecida. Considerando-se a importância de Maria nas concepções antropológicas do Catolicismo, onde a Mãe do Redentor também é designada como mãe dos homens, compreende-se o extraordinário significado dessas representações para a identidade de populações que apresentam na sua formação contribuições africanas e indígenas. É compreensível, também, que a representação e a veneração de Maria em imagens com essa característica - assim como a de outros santos - tenham sido interpretadas inadequadamente sob um aspecto etnológico ou daquele de extensões culturais africanas.
A literatura cultural latinoamericana - sobretudo a referente ao Brasil e a Cuba - apresenta inúmeros exemplos de interpretações que, apesar de bem intencionadas, são errôneas e não podem ser justificadas e mantidas. Trazem consigo problemas teóricos de graves conseqüências, colocando obstáculos à compreensão adequada de edifícios conceituais e simbólicos. Para a discussão dessa questão no contexto euro-brasileiro, escolheu-se a igreja da Nossa Senhora Negra de Guincamp, a Notre Dame de Bon Secours, uma das mais veneradas imagens de Nossa Senhora negra na França. Trata-se de uma das mais importantes igrejas de peregrinação da Bretanha, de monumental arquitetura, datada de fins da Idade Média, visitada por milhares de pessoas por ocasião de sua festa e do seu pardon, a 27 de junho. Nessa ocasião, realizam-se também apresentações musicais, de danças e de tradições populares. É famosa pela sua procissão de velas e pelos seus fogos de artifício.
Também os habitantes de Guincamp indagam a razão da côr da venerada imagem. Podendo-se excluir qualquer influência africana direta, tem-se aventado a hipótese de se tratar de um escurecimento causado por velas, der ter sido causado pelo tipo de madeira utilizada ou por qualquer outra causa mais ou menos explicável pelo envelhecimento ou pela transformação do material. A explicação, porém, deve ser muito mais profunda. Tais hipóteses não poderiam explicar o número avultado de imagens negras de Maria em muitos países da Europa, algumas delas objeto de veneração em centros de romaria de projeção internacional. Citam-se aqui, como exemplos, os da Polonia, Tschenstochau, e os da Alemanha, tais como de Santa Maria da Kupfergasse, em Colonia.
Difusão de imagens negras na América Latina
Para o estudo da difusão de Nossa Senhora negra nos países do atual Mercosul, a principal imagem é a de Alttöttingen, na Baviera. A sua Schwarze Madonna, na capela octogonal, talvez do ano 700, constitui o mais importante alvo de peregrinações da Alemanha.
Sabe-se que foi o jesuíta P. A. Sepp (1655-1733) que, no século XVII, levou grande quantidade de imagens na sua viagem a Buenos Aires, já as destribuindo entre os africanos que subiram a bordo da nave que o transportava. No seu relato, salienta a influência que a cor negra das imagens bávaras tiveram sobre os africanos. "Só o negro recém-batizado deitou-se a morrer. Recebeu, pois, os santos Sacramentos, levei-lhe minha imagem de Nossa Senhora de Alt-Oettingen, que lhe deu extraordinário ânimo e que ele estreitou contra o peito e beijou. Aconselhei-o a que tivesse grande confiança nessa imagem sagrada da Mãe, que a ela se recomendasse que não abandona a ninguém quem a invoca. Quando então o pobre negro contemplou a imagem e notou que o rosto da Mãe de Deus e do Menino era preto e igual ao dele, oh, é indescritível a alegria e o consolo que lhe inundaram o rosto!" (Anton Sepp, Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos apostólicos, Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Ed. Univ. São Paulo 1980, 88-89) "Depois da ceia, dei instrução às mulheres dos negros, que também eram pretas, ensinando-lhes a doutrina cristã, contei-lhes exemplos e lhes mostrei Nossa Senhora de Alt-Oettingen, para a qual tomaram particular devoção. Beijavam e veneravam a imagem, como aquele negro doente acima citado. Cada uma dessas mulheres, pretas como carvão, queria uma imagem para si. Para satisfazê-las, dei-lhes outras, pequenas reproduções, que o Pe. Böhm e eu havíamos feito de argila, às centenas, quando estávamos em Sevilha e Cádiz. As mulheres veneravam essas imagens mais do que ouro e prata, porque até aí nunca haviam visto uma imagem de Nossa Senhora negra e semelhante a elas." (op. cit. pág. 89)
Imagem-modêlo e a tradição de Notre Dame de Bon Secours
A Notre Dame de Bon Secours de Guincamp dirige a atenção à tradição de Nossa Senhora do Socorro ou do Perpétuo Socorro e de sua difusão nas várias partes do mundo. Essa tradição vincula-se com uma questão de particular interesse para os estudos imagológicos, pois diz respeito a famoso ícone que, segundo a tradição, remonta a uma pintura do próprio evangelista Lucas. Esse ícone, em estilo bizantino, é venerado desde 1499 em Roma. Representa Nossa Senhora como Mãe de Deus, a Senhora das Dores, em ato de socorrer o seu Filho diante de uma visão que indica a futura Paixão. Essa visão é representada por S. Miguel com um vaso de vinagre, à esquerda, e S. Gabriel com a Cruz, à direita. A difusão maior dessa imagem pelo mundo é sobretudo obra dos Redentoristas, que a receberam de Pio IX, em 1866. O quadro original encontra-se na igreja de S. Afonso de Ligório, em Roma. Através dos Redentoristas, a veneração também foi amplamente difundida no Brasil. Nessa tradição, porém, a representação de Nossa Senhora não se relaciona necessariamente com o simbolismo da cor escura. A Notre Dame de Bon Secours de Guincamp prende-se a outro caminho de transmissão, também secular, e que teve as suas repercussões no Novo Mundo. A tradição de Notra Dame de Bon Secours francesa, particularmente venerada por marinheiros, é sobretudo mantida em Montreal. Foi ali introduzida por Marguerite Bourgeoys (1620 Troyes-1700 Montreal), a fundadora da Congrégation de Notre-Dame. Desde 1653 no Canadá, atuou como educadora, fundando escolas e missões. De uma segunda viagem à França, em 1672, trouxe uma pequena imagem de Notre Dame de Bon Secours e que até hoje é venerada. A capela, edificada em 1711, representa hoje um dos centros culturais e religiosos do Canadá. Assim como na França, a capela é forrada por pequenos navios oferecidos como ex votos de marinheiros que alcançaram graças.
Theotókos
A festa de Guincamp, a 27 de junho, é celebrada no mesmo dia da festa de S. Cirilo de Alexandria (330-342), bispo e doutor da Igreja. Presidiu o Concílio de Éfeso (431), quando foi proclamada Maria como Mãe de Deus. O Concílio realizou-se em época que se colocava em questão essa concepção pela difusão do movimento nestoriano. A doutrina do Concílio de Ephesos reforçou a da encarnação, formulada em Nicéia (325). A identidade do encarnado com o filho de Deus permitiu que Maria fosse designada como mãe de Deus. Pressuposto para essa concepção é a da conceição pelo Espírito Santo. A antiga tradição da representação negra de Maria pressupõe, para a sua compreensão, a consideração da estrutura tipológica do edifício de concepções relacionados com a conceição pelo Espírito Santo e que pressupõe uma união. Sobretudo os Cantares de Salomão oferecem aqui fundamentais subsídios para análises da linguagem simbólica. Trata-se da imagem da esposa: Eu sou morena, mas agradável, ó filhas de Jerusalem, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão (Cant. 1.5). Logo a seguir, tem-se a elucidação da côr escura: Não olheis para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim (...) (Cant. 1.6). Esse texto tem sido interpretado sobretudo no sentido místico, ou seja em função da segunda vinda de Cristo, em espírito, no presente, àquele que o ama. A alma amante, elevando-se às núpcias com o amado, a êle se une. Ela é assim sombreada pela luz por excelência, pelo fogo divino no sentido metafórico do termo.
A questão da côr escura de imagens de Maria leva, assim, à consideração de diferentes caminhos de transmissão de tradições locais européias ao continente americano e da maior ou menor presença da concepção mística na compreensão da linguagem simbólica. Uma orientação da espiritualidade sobretudo segundo o presente, a da alma que anela pela união com o amado, permite também que se compreenda projeções simbólicas ao passado, ou seja, ao mistério da primeira vinda, da encarnação.
Em todo o caso, apesar das necessárias diferenciações, devem ser refutadas elucidações simplistas que partem de hipóteses de cunho etnológico de extensões africanas. Também os estudos voltados aos elos com a antiga mitologia, embora fundamentais nos estudos da linguagem simbólica e dos edifícios de concepções, devem ser desenvolvidos com o necessário cuidado diferenciador. Se as concepções narradas mitologicamente da Antiguidade forem compreendidas no seu sentido mais profundo, então abrem-se de fato perspectivas para considerações interculturais. Também na Antiguidade não-bíblica conhecia-se a imagem da noiva terrena que se queimava quando surgia o noivo divino na sua real aparência. Este foi, segundo o mito, o caso de Semele, quando confrontada com a natureza ígnea, o fogo celestial de Zeus. Somente nesse nível mais profundo de interpretação é que a consideração dos elos entre as linguagens de imagens das diferentes culturas manifesta toda a sua potencialidade. Intenções polêmicas ou apologéticas no tratamento das chamadas "virgens negras" não correspondem à necessária seriedade dos estudos culturais.
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).