Doc. N° 2347
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Bretanha-Brasil
Aproximações arqueológico-culturais: estudos de concepções mitraístas e hagio-historiografia Exercícios de leitura e interpretação na cripta de São Mélar
Lanmeur. Trabalhos da A.B.E. 2008
Cripta de S. Mélar, Lanmeur. Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo Devido ao significado de fenômenos sincretísticos no Brasil, que necessitam ser estudados e elucidados a partir de seus fundamentos e mecanismos, a Academia Brasil-Europa vem apoiando há décadas o desenvolvimento pesquisas específicas de base. Elas compreendem, entre outros aspectos, o estudo de estruturas de concepções mitológicas, de concepções do mundo da Antiguidade e dos mecanismos de cristianização de culturas nos primeiros séculos de nossa era. Em simpósios, publicações, cursos e seminários foram tratadas diferentes questões do universo sincretístico da Antiguidade tardia e dos primeiros séculos da era cristã. Uma particular consideração tem-se dado ao Mitraísmo como poderosa corrente que, vindo do Oriente, difundiu-se por vastas extensões da Europa e da África do Norte. Foi particularmente intensa em regiões extremas e isoladas do mundo antigo, em zonas de colonização e esteve presente sobretudo em círculos militares e de veteranos.
Não é de hoje que se procura encontrar nessa expressão religiosa a ponte entre concepções do antigo Oriente, da mitologia greco-romana e o Cristianismo. Com relação à Península Ibérica, sobretudo com a Lusitânia e a Galícia, um dos fins-da-terra do mundo antigo, tais questões foram tratadas em diversas ocasiões em empreendimentos da A.B.E.. (a respeito: A.A.Bispo, Antike und Christentum und die Traditio viva in der Musikkultur der Neuen Welt, Musices Aptatio 1989/90, Roma: CIMS 1996, 9ss.) Por ocasião do ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil, procurou-se, com base nos resultados de trabalhos anteriores, retomar a discussão de forma contextualizada em outra região de fim-de-mundo da Antiguidade, a Finisterre, na Bretanha. Os estudos mitraístas baseiam-se em fundos arqueológicos e, sobretudo, no testemunho dos mitreus, grutas ou construções subterrâneas com imagens e símbolos, onde se processavam os atos rituais. A literatura a respeito é considerável, e muitos autores procuraram interpretar significados e reconstruir estruturas de sinais que possibilitavam a harmonização concepções astrológicas, da filosofia natural e de diferentes tradições mitológicas. Os trabalhos realizados no âmbito da A.B.E., porém, demonstraram a existência de êrros de interpretação em várias dessas tentativas. A partir de perspectivas interdisciplinares, e com mais profunda consideração da lógica das reinterpretações cristãs, tornou-se possível chegar a reconstruções mais coerentes do sistema.
Questionamento
Seria possível, mesmo sem a certeza do testemunho arqueológico material, utilizar-se do sistema reconstruído na análise de tradições hagiográficas, em especial daquelas que surgem como lendárias? Há santos - e isso de forma particularmente evidente na Bretanha - que apresentam não poucas dificuldades de interpretação, mesmo para exegeses teológicas mais sensíveis a interpretações hermenêuticas e simbólicas. Pode-se aqui levantar a objeção de que esse procedimento muito se aproximaria daquele de alguns estudiosos do século XIX. Trata-se, porém, antes de um exercício de arqueologia cultural. Não só a arqueologia material deveria servir à elucidação de uma arqueologia cultural, mas também esta deveria chegar a um ponto de estar em condições de ser testada na prática e contribuir para o esclarecimento de questões até hoje obscuras ou insuficientemente elucidadas pela arqueologia material.
Cripta de São Mélar
Como a mais antiga construção sacral da Bretanha de língua bretã aponta-se em geral a cripta de S. Mélar, na igreja paroquial da pequena cidade de Lanmeur. A sua construção remonta, segundo alguns autores, ao século VI. Nela, segundo a tradição oral, localizava-se a tumba do mártir. A cripta impressiona sobretudo pela sua baixa altura e pelas colunas onamentadas. Tem um comprimento de 8,78 m e uma largura de 5,07 m. É dividida em 3 naves, separadas por duas filas de 4 colunas de pedra que, com os capiteis, apresentam uma altura e 1,30 ou 1,35 (66 de ca. 40 cm de diâmetro, 2 de 60 cm). Os capiteis têm 16 cm de altura.
A capela de S. Mélar não teria sido originalmente subterrânea. Ambas as paredes laterais possuem janelas estreitas, de apenas 20 a 25 cm, a parede ocidental 3 janelas e a oriental apenas uma pequena abertura quadrangular. Essas aberturas teriam servido à iluminação. As duas colunas mais largas apresentam na sua parte inferior ornamentos singulares e que, segundo alguns autores, seriam serpentes enroladas e que representariam um símbolo hindú (sic!). Outros dizem tratar-se de motivos de ornamentação de sarcófagos ou imitações de iluminuras. Também há a hipótese de se tratar de uma ornamentação vegetal, com frutos e folhas no término dos caules, o que não deixaria de ser admissível considerando-se o simbolismo da semente e dos frutos em concepções de morte, vida e ressurreição. Próxima à porta do Norte há um poço cuja água surge apenas por momentos, e ninguém sabe de onde vem e para onde corre. Alguns a consideram de origem druídica, outros como pia batismal.
São Mélar
São Mélar, praticamente desconhecido no Brasil, não considerado mesmo em léxicos hagiográficos de importância, é muito difundido no Departamento de Côtes d'Armor. É padroeiro de Lanmeur,de Meilars, de Locmélar (onde há um grande fragmento do braço do santo) e outros locais, como St Méloir des Ondes e St Méloir des Bois. Há imagens do santo em outras localidades da Bretanha: em Bringolo, Plouzelambre e Plusquellec. Segundo a tradição, Mélar foi filho de Miliau, homem virtuoso e piedoso, também santificado, rei da Domnonée, um domínio que abrangia as regiões atuais do Pays de Léon e Pays de Tréguier. O príncipe era um menino que muito se assemelhava ao pai, a sua imagem, um modêlo precoce de virtudes, de aparência serena e inocente. O rei Miliau possuia um irmão, Rivod, Conde de Cornouailles, homem violento, ambicioso, sedento de poder e que pretendia assumir o trono. Para isso, assassinou Miliau. Entretanto, tinha receio de ser suplantado pelo príncipe Mélar, ainda menino. Para matá-lo, subornou primeiramente os seus mestres para que lhe envenenassem a comida. Quando este, porém, fêz o sinal da cruz sobre os alimentos, o veneno tornou-se aparente. Mélar perdoou a seus inimigos.
Outros homens enviados por Rivod para assassinarem a criança ficaram tão impressionados com a sua inocência que não executaram as ordens e pediram compaixão para com o menino. Rivod, como ato de particular condescendência, ordenou-lhes que cortassem a mão direita e o pé esquerdo do rapaz. Assim, jamais poderia mais andar a cavalo ou empunhar uma arma. A mão postiça de prata e o pé de ferro que lhe deram, porém, não apenas se adaptaram orgânicamente ao corpo, mas sim também cresceram de forma maravilhosa juntamente com o resto do corpo. Perante os nobres reunidos em Carhaix, Rivot negou que tivesse dado ordens de mutilação do príncipe. A assembléia, porém, colocou Mélar sob a responsabilidade do bispo de Cornouailles e do Conde Kéryoltan. Na residência do bispo, em Quimper-Corentin, Mélar recebeu uma formação de cunho monacal. Rivot, porém, não desistiu do seu intento. Em troca da cabeça do príncipe, prometeu terras e outras vantagens ao Conde Kéryoltan. A mulher de Kéryoltan, Rarisia, condoída, possibilitou a fuga a Mélar. Este encontrou proteção junto ao Conde Budic, em castelo situado na região de Tréguier (talvez a atual aldeia Ru-Puelven). Ali, o jovem, em casa isolada, próxima à capela, passou a viver como eremita. Kéryoltan, seu filho Justin e dois outros cúmplices, procurando-o, convenceram-no a fazer um passeio a Lanmeur. Durante um almoço (ou quando dormia, após o almoço), Justin o decapita. Justin atirou-se pela janela e morreu. Budic ordenou que o corpo de Mélac fosse trazido para a capela de seu castelo. Dalí, foi enviado ao sepulcro da família em Lexobie (próxima a Lannion). No caminho, porém, os cavalos brancos que puxavam o cadafalso se negaram a seguir naquela direção. Enxergando no fato um sinal divino, ordenou-se que Mélar fosse ali enterrado, tendo o Arcebispo de Dol benzido o local. Monges enviados posteriormente a Lanmeur para a fundação do convento de Kernitron construíram uma capela subterrânea para o enterramento de Mélar. Acima da capela, erigiram uma igreja, consagrada a Mélar e a Samson. Ao redor do século IX, os monges de Kernitron, responsáveis pela cripta, parecem ter abandonado à região, então atacada pelos normandos. Talvez tivessem levado consigo as relíquias do santo, até então conservadas em sarcófago. Teriam sido transferidas em parte para a Abadia Redon, em parte para a de Léhon. Posteriormente, chegaram a Paris, sendo conservadas na igreja Saint Jacques du Haut-Pas e, dali, em fragmentos, a vários outros locais: Orléans, Meaux e até mesmo Amesbury, na Inglaterra.
Tentativas de interpretação
Na oposição entre o pai de Mélar e o seu violento irmão poder-se-ia ver expressão de um dualismo no sistema de concepções, uma força do bem e a do mal, o que tem sido apontado como característica básica do Mitraísmo. Mélar surge aqui como o filho, imagem do pai. Foi desde a sua infância asceta, um superador da carne. Tal qual Mitras, foi um "matador do boi" no sentido figurado do termo. Assim como Mithras é representado como no centro de campo de tensões marcado por Cautes e Cautepates, simbolizados por figuras empunhando respectivamente um facho ao alto e outro direcionando-o para baixo, também Mélar situa-se entre forças opostas, no caso Budic e Kéryoltan/Justin. Ter-se-ia aqui questões de personalização de elementos e relações com o ciclo do ano nas suas partes ascendente e descendente, com os equinócios e o segmento central desse período. A partir dos estudos realizados, poder-se ia aqui reconhecer vinculações com determinados signos zodiacais e meses do ano. Mélar seria, nesse conjunto de concepções, relacionado com a parte do ano caracterizada pelo verão na Europa, mais em particular com o signo de Câncer do Zodíaco. Ter-se-ia, aqui, um elo com o elemento água nessa sua posição cardinal. Explicar-se-ia, dessa forma, o significado simbólico da fonte de água que se encontra próxima à cripta de Mélar, e cuja água vem e vai, se que se saiba de onde e para onde. Mélar poderia ter sido a expressão cristã da antiga personalização mitológica da força elementar respectiva e que seria considerada a divindade tutelar desse segmento do ciclo anual. Como se sabe porém da mitologia - revelado e debatido em outros eventos da A.B.E. - essa divindade teria a sua origem - o seu "nascimento" - na parte do ano correspondente ao Capricórnio. Este signo, correspondente ao elemento terra na sua qualidade cardinal, caracterizando o início do inverno europeu, explica a simbologia da caverna, da gruta, da rocha onde ter-se-ia dado o nascimento de Mitras. Seria possível compreender, na sua coerência, o sentido simbólico da impressionante crípta de São Mélar e que tanto lembra antros mitraísticos conhecidos de outras regiões.
Já essas poucas menções - o sistema de concepções não pode ser aqui elucidado e foi tratado em eventos e publicações da A.B.E. - bastam para sugerir que aqui se revela uma orientação hermética do conjunto das concepções. Essa orientação surge como particularmente adequada à região geográfico-cultural, uma vez que representava o extremo Ocidente, o finis terrae. Também na Península Ibérica tem-se situação similar, o que já foi estudado com relação ao culto de Santiago de Compostela. O exercício de interpretação arqueológico-cultural levou a atenção, assim, a singulares similaridades de concepções, situações e expressões com o culto jacobeo, de tanto significado para a Península Ibérica e, mais tarde, para os Descobrimentos, expansão e cristianização do Novo Mundo. Se no mundo ibérico o paradigma humano central dessas concepções esteve vinculado com a Reconquista - e a Conquista , na Bretanha poderia ter estado vinculado com situações históricas semelhantes de cristianização ou recristianização, fato que poderia ser lido no elo da história de São Mélar com Samson e a fundação do mosteiro.
Muitas questões se levantam, porém, com relação a pormenores da estória e suas possíveis interpretações. Um deles diz respeito ao atributo do santo, ao braço e ao pé postiços que traz nas mãos e que indicam as mutilações de que foi vítima e ao fato de terem crescido miraculosamente com o seu corpo. Essa aparentemente estranha simbologia deve ser vista como indício do fato de ter sido Mélar cavaleiro por excelência, intrínseco por assim dizer à tipologia que encarna. O cavalo, que não aparece explicitamente na imagologia de Mélar, estaria assim nela subentendido. Também aqui ter-se-ia uma similaridade com o universo de imagens de Santiago e com as suas bases simbólicas da Antiguidade.
No decorrer desse exercício de leitura e de interpretação, os olhos do observador se abrem para os possíveis significados da ornamentação serpentuosa em colunas da cripta. Essa ornamentação, que surge como inigmática nas exegeses convencionais, revela também extraordinária similaridade com as representações mitraísticas que se conhecem da arqueologia material. Também na simbologia do Mitras que apunhala o boi surge uma serpente que procura alcançar ou pelo menos se relaciona com os seus testículos. O conjunto astro-simbólico dessas representações, e que surge explicitamente nas imagens, indica que aqui se trata de um jogo de oposições de forças, fatores da harmonia e da manutenção da dinâmica do ciclo anual, de fusão e da separação do todo, da individuação. O mediador - na Antiguidade Mitras, aqui possivelmente Mélar - poderia ser visto como personalização de um momento dessa dinâmica na qual ocorre o início de uma troca de direção, da ascendente à descendente, da fusionadora à sua oposta e complementar. Se os resultados desse exercício interpretativo puderem ser comprovados por outros estudos e outras reflexões, então São Mélar teria um significado muito mais profundo para a cultura da Bretanha e do Ocidente em geral do que a sua singular história pode sugerir. A superação, ou melhor, a diferenciação de aproximações crítico-históricas na exegese, e que levam a uma relativação do significado de estórias na hagiografia consideradas como inverídicas ou historicamente não fundamentadas surge como uma necessidade decorrente dos próprios estudos culturais, ou melhor, no caso, da arqueologia cultural. O caminho que essa abre é o oposto daquele muitas vezes seguidos por posições histórico-críticas: não tanto a historicidade de fatos e ocorrências, mas sim a estrutura imagológica e os mecanismos a ela inerentes podem abrir caminhos para a compreensão de concepções antropológicas e dos paradigmas modelares de conduta delas decorrentes.
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).