Doc. N° 2346
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Bretanha-Brasil
O canto dos cegos no Brasil e na Bretanha. Paradigma do cego bardo Reflexões pelo Pardon de Saint Hervé
Lanhourne. Trabalhos da A.B.E., 17 de junho de 2008
A.A.Bispo
Lahouarne Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos H. Hülskath O canto dos cegos no Nordeste do Brasil foi alvo já há décadas de um estudo de pesquisa de campo do Brasil: o de Martin Braunwieser, desenvolvido em 1938 no âmbito da Missão de estudos folclóricos do Departamento de Cultura de São Paulo (Cegos pedintes cantadores do Nordeste, Boletin Latino Americano de Música V/6, 1946, 323-325). Esse artigo, publicado no contexto de um volume de extraordinário significado para a história da reflexão musical brasileira, reunindo nomes dos mais representativos da época, destaca-se por ter o seu autor não escolhido algum tema que correspondesse mais de perto aos interesses intelectuais e político-culturais de momento, mas sim nele dando presença, de modo sensível, a um grupo humano particularmente marcado pela infelicidade e esquecido de uma vida intelectual que se orienta pela visão e pela palavra escrita.
O que impressa nos cegos pedintes é a expressão. Quem os ouviu, jamais esquece aqueles lamentos resignados, que ficam profundamente gravados no coração. (op.cit. 325)
O autor abre o seu texto salientando ter-se impressionado com o pauperismo, a mendicância e sobretudo com o número dos cegos pedintes no Nordeste brasileiro. Reconheceu, no decorrer das observações, que a impressão que eram de mais elevado número do que em outras regiões do Brasil era devido ao fato de poderem ser encontrados em diferentes cidades, pois eram cantadores viajantes que percorriam longas distâncias.
Em nenhuma região do país que percorri, encontrei tantos pobres cegos como no Nordeste brasileiro. Em muitos desses lugares - talvez por falta de organizações beneficientes que amparem e recolham os cegos - eles sejam obrigados a esmolar pelas ruas à procura da própria subsistência e daí eu ter tido a impressão de que essa dolorosa infelicidade humana seja mais frequente naquelas regiões de pauperismo. (...) Hoje estou convicto de que o fato de serem eles inteiramente livres nos seus movimentos, percorrendo léguas e léguas para estarem hoje numa festa popular e amanhã numa concorrida feira de afastado lugarejo do sertão, é que dá ao viajante a impressão duma quantidade maior do que noutras zonas. (op.cit. 323)
Menciona que os cantadores tendiam a criar estórias da própria existência e das razões da sua cegueira, narrativas que interrelacionavam experiências reais com interpretações: Na miséria em que vivem os pobres cegos, como consôlo da perda da visão, muitos deles constroem com o tempo uma espécie de história. (op.cit. 324)
O principal interesse do autor foi o de constatar qual seria a razão do canto no peditório dos cegos: Segundo informações dos próprios, duas são as razões principais por que pedem cantando, ao contrário da maioria dos pedintes que falam ou tocam. Sentem alguns, e o dizem de várias maneiras, que a voz cantada possui maior força de expressão do que a voz falada; outros (...) acham que cantando, podem chamar melhor a atenção dos que passam, tendo assim maiores possibilidades de alcançar o que pretendem. (loc.cit.)
Sendo dos caminhos mais evidentes para o estudo do sentido dos cantos de cegos pedintes a consideração do conteúdo de seus textos, o autor salientou que eram, na sua maior parte, de conteúdo religioso, vinculando-se sobretudo ao culto dos santos: O assunto dominante é o religioso (...). Para reforçar o pedido, os cegos não se esquecem de nenhum santo ou santa (...) (loc.cit.)
Hagiografia dos cegos cantantes nos estudos culturais
Os aspectos mencionados nessas observações de 70 anos atrás inserem o Brasil num complexo de questões culturais muito mais amplo. O cego cantador, conhecido de várias culturas e épocas, dirige a atenção a concepções de cunho fundamental do mundo e do homem. Um dos caminhos para uma aproximação a dimensões mais profundas do tema é aquele que considera os paradigmas humanos do cego cantador oferecidos pela hagiografia.
Um desses modêlos ainda particularmente venerados é o de Santo Hervé, relevante por estar estreitamente vinculado com a identidade cultural de uma região, a da Bretanha. Em contraste com muitas outras situações culturais onde se procura evitar o tema e silenciar aqueles que têm a infelicidade da cegueira, o grande santo cego da Bretanha está presente no culto e em diferentes formas de expressão popular.
Esse santo, pouco conhecidos em outras regiões do mundo é alvo de um Pardon, conjunto de práticas festivo-religiosas e que incluem uma procissão rural a uma fonte - na cidade de Lanhourne, no dia de sua festa, 17 de junho.
Estória de Santo Hervé
A história ou lenda de Santo Hervé está intimamente vinculada com a dos cegos cantadores e dos bardos viajantes de mais remotas origens. Conta que um dos mais famosos da Ilha da Bretanha, da época de sua Cristianização, era um de nome Hyvarnion. Este percorria toda a região, cantando por ocasião de feiras e mercados nos vários povoados. Pela expressividade de seu canto e pela sua profunda religiosidade, o seu renome alcançou os mais altos círculos sociais do distante Paris. Foi então convidado à Côrte de Childebert (495-558), um dos filhos de Clóvis e de Santa Clotilde e que, após a morte de seu pai, em 511, assumira a soberania de uma região que ia de Paris até a Somme, do litoral da Mancha até a Bretanha, incluindo Nantes e Angers. Entretanto, o bardo Hyvarnion não aceitou o tão honroso convite, procurando evitar o meio mundano da Côrte e suas glórias passageiras. Preferiu retirar-se do mundo e viver na longínqua Armorica, consagrando-se a Deus.
Entretanto, em sonho, recebeu a visita de um anjo que prenunciou o seu matrimônio, dizendo que seria vontade de Deus que se casasse com uma mulher que encontraria, Rivanone, e que o seu filho tornar-se-ia um grande servidor de Deus. Assim o foi, mas Hyvarnion arrependeu-se de ter contraído o casamento logo após tê-lo consumado. Decidindo-se retornar à vida contemplativa, ouviu de sua mulher a exclamação de que, se tivesse um filho, pediria a Deus que êle jamais visse a luz falsa e enganosa desse mundo. Hyvarnion, respondendo-lhe, afirmou que o seu filho, ainda que não visse a luz do mundo, pelo menos teria a visão dos esplendores celestiais. Assim, Hervé nasceu cego. Tinha, porém, a capacidade de ver outro mundo de luz, o espiritual. Como cego, desde cedo o seu universo foi marcado pelo mundo dos sons, pela memória e pela transmissão oral e cantada. Com apenas 7 anos já conhecia de cór os salmos e os sete hinos mais de uso na sua época. Confiado por sua mãe a um monge, a sua formação desenvolveu-se em ambiente contemplativo. Tornou-se um bardo como o seu pai, não cessando de cantar o que via, o mundo celestial, invisível aos demais homens. Foi, assim, o criador de um Canto do Paraíso. Perambulando pelo interior da Bretanha, era guiado por um discípulo de nome Guiharan. Era também acompanhado por um lobo, animal que se tornaria uma das características de sua imagem. Esse lobo teria devorado o burro que o levava, mas, a pedido de Hervé, assumira o seu papel. A seu redor formou-se uma comunidade itinerante. Ele e seus acompanhantes guiavam-se segundo o sol e, seguindo-o em direção ao Oriente alcançaram a localidade de Plouider, onde se estabeleceram. Esse local seria mais tarde designado como Lanhouarneau, ou seja, a ermida de Hervé.
Não chegando ao sacerdócio por ser cego, alcançou apenas o grau de exorcista. Planejou e construiu êle próprio a sua igreja. Três dias antes de sua morte, abrindo repentinamente os olhos, entoou um último canto, no qual dizia que via o céu aberto, os seus irmãos, os seus pais e os seus companheiros; coros de anjos revoavam tais como abelhas em campo de flores. Três dias após essa visão, chamou a sua sobrinha, Christina, uma órfã, pedindo-lhe que preparasse uma pedra para descansar a sua cabeça. Esta, obedecendo, pediu-lhe que, ao morrer, rogasse a Deus que a viesse buscar: tal como uma barca que segue a corrente queria morrer com Hervé. Assim aconteceu, e Christine expirou com êle junto a seus pés. Na hora de sua morte, os monges presentes ouviram os coros celestes entoando um hino. Este hino passou a ser cantado através dos séculos.
Relíquias de S. Hervé foram conservadas na capela do castelo de Brest a partir de 878. Num estojo de prata, foram entregues pelo Duque Geoffroy ao bispo de Nantes, em 1002. Geoffroy, filho do conde Conan I de Rennes, tornou-se o primeiro Duque da Bretanha. Morreu em 1008, no retorno de uma peregrinação a Roma. Assim a memória de Hervé relacionou-se estreitamente com a própria história política bretã. Somente à época da Revolução Francesa desapareceram as relíquias de Hervé da Catedral de Nantes.
Interpretações
A estória de Hervé, independentemente de sua veracidade histórica, pode ser analisada na sua estrutura e nas imagens simbólicas que insere. O significado transcendente dessa veneração regional bretã reside no fato de possibilitar a compreensão de fundamentos de concepções relativas ao canto dos cegos na tradição cristã. Dentre os diferentes aspectos, pode-se salientar que não se trata apenas da oposição tematizada entre uma vida mundana, orientada segundo os sentidos, sobretudo visuais das aparência e uma vida contemplativa, retirada, monacal. A dimensão mais profunda desse confronto de duas formas de existência diria respeito à própria concepção do mundo: em contraposição ao mundo captável pelos sentidos, visível, haveria um invisível, espiritual. Aquele que apenas enxerga este mundo das aparências seria o verdadeiro cego, e o cego que canta as realidades espirituais não seria verdadeiramente cego, pois enxergaria o mundo da verdadeira luz. O homem que teria fechado os olhos para este mundo tornar-se-ia cantor do mundo espiritual e este seria o mundo da luz angelical.
Tais concepções indicam a existência de um sistema de imagens de compreensão do mundo e do homem de remotas origens que podem ser estudadas sob diferentes perspectivas. Correspondeu a um antigo edifício de concepções e imagens do mundo e do homem cristianizado nos primeiros séculos da era cristã e transmitido por tradição oral, sobretudo talvez pelos próprios bardos cegos. Um indício de seus elos com antigas imagens é a figura do lobo e o seu singular papel de substituto do burro. O lobo, cujas conotações negativas são conhecidas da antiga mitologia e cuja imagem foi eternizada na linguagem das constelações e nas tradições, surge no contexto da estória de Hervé como positivamente transformado. Aparece claramente como uma imagem simbólica com caráter de tipo, que experimenta uma espécie de conversão. O tipo do lobo e a sua metamorfose podem ser analisados segundo diferentes contextos mitológicos e bíblicos. Um desses complexos seria o de seus elos simbólicos com Esaú, Edom e Roma, aqui com Marte, bastando essa menção para que se reconheça a amplidão das possibilidades que se oferecem para a interpretação fundamentada da estória de Hervé.
O motivo do cego que procura a luz, conduzido por um guia que o leva ao Sol, ao Oriente e ao alto é conhecido tanto da antiga mitologia como da tradição bíblica. Numa e noutra correspondia à figura de Orion. Entretanto, os estudos da tipologia em contexto bíblico devem remontar à Gênese, onde Lameque surge como cego e, segundo algumas interpretações, pela sua fala (Gn 4,23 ss.) como o primeiro cego cantador. Como pai de Jubal, ao lado de Jabal, Tubal-Caim e Naama, surge também como pai-tipo dos músicos itinerantes.
(...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).