Doc. N° 2343
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Bretanha-Portugal-Brasil
Questões de Direito e Justiça nas relações histórico-culturais Santo Ivo na Bretanha, Portugal e Brasil
Tréguier. Trabalhos da A.B.E., 2008
A.A.Bispo
Mausoléu a S. Ivo. Catedral de Tréguier Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo No âmbito do ciclo de estudos "Normândia-Bretanha-Brasil" da Academia Brasil-Europa, levado a efeito em maio e junho de 2008, dedicou-se atenção particular à questão do Direito e da Justiça na história cultural em contextos internacionais. Desde o início da história das relações entre essas regiões européias e o Brasil levantaram-se questões que dizem respeito ao Direito e à Justiça. Com a divisão do globo a ser descoberto entre a Espanha e Portugal através do Tratado de Tordesillas, legitimado pelo Sumo Pontífice, a França não poderia estar de acordo. Segundo o seu ponto de vista, um direito de posso de somente poderia ser justificado por situações de fato, através de relações comerciais com os nativos das respectivas regiões ou através de conquistas militares. Essa diferença de posições marcaria a história das relações internacionais e da cultura em contextos globais. Repercutiu naturalmente nas regiões extra-européias, inclusive no Brasil, uma vez que os indígenas envolvidos tiveram que tomar partido ou foram inseridos nessas diversas esferas de influência diferentemente legitimadas. Seria uma tarefa para estudos histórico-culturais analisar qual a posição que se empresta aos grupos indígenas na historiografia e na etnohistoriografia que, no século XVI, estiveram do lado dos franceses. Questões internas de Direito e justiça na própria França repercutiram também nas tentativas de estabelecimento de colonias. Injustiçados, desprivilegiados e empobrecidos foram levados à emigração. Sobretudo as perseguições de cristãos reformados ou simpatizantes da Reforma, sujeitos confiscações de bens e ameaçados de vida desempenharam papel decisivo na tentativa de criação de uma França Antártica na Guanabara. Se essa tentativa não vingou, foram também problemas de injustiças e deslealdades co-responsáveis, ao lado de transplantações de conflitos confessionais com diferentes noções do legítimo e do justo. A história dos séculos XVII e XVIII foi marcada pela ação de piratas e corsários. Em complexos de interesse de difícil análise para o historiador, o ataque a navios, a apropriação de víveres e equipamentos, a destruição de cidades e regiões, o terror dos mares através dos séculos foi tolerada e legitimada pelas diferentes nações com base em concepções de justiça e de direito de guerra. Os protagonistas desses atos de pirataria foram considerados como criminosos pelas vítimas ou merecedores de nobilitação pelos países a quem serviram.
Também no século XIX questões de injustiça e justiça marcaram as relações. Intelectuais e artistas caídos no ostracismo por desenvolvimentos políticos na tão conturbada história francesa, sentindo-se injustiçados, procuraram novas esferas de ação e novas possibilidades de vida no Novo Mundo.
Mesmo o descobrimento da cultura tradicional, do patrimônio popular, o desenvolvimento da ciência etnográfica e antropológica, do folclore, o direcionamento da atenção dos estudiosos para os valores das camadas mais simples da população, para o qual a Bretanha com as suas tradições foi de tão grande relevância, não foram isentos de conotações sócio-políticas vinculadas com noções de Direito e justiça.
Os estudos culturais nas relações Normândia-Bretanha-Brasil confrontam-se, assim, nas várias épocas da história, com problemas sociais, com camponeses de regiões rurais e particularmente isoladas da França, com marinheiros de cidades portuárias obrigados a ganhar a vida em empreendimentos riscantes de pesca e exploração de regiões distantes, com insatisfeitos e marginalizados. Uma das questões que se levantam nesse tipo de considerações é a do reflexo dessas situações de injustiça, experiências de empobrecimento e de marginalização de habitantes de regiões retrógradas e isoladas da Europa nos países colonizados.
Yves Hélory de Kermartin (1253-1303)
A Bretanha possui, nas tradições populares, ali mais longamente e intensamente mantidas do que em outras regiões da França, numerosas imagens que poderiam ser analisadas sob o ponto de vista desse complexo temático. Pobres e injustiçados procuraram auxílio supranatural, sobretudo através de seus numerosos santos. Não se pode esquecer que o próprio padroeiro da Bretanha, Santo Ivo, é venerado como protetor dos advogados, dos juízes, dos tabeliães e do Direito em situações de injustiças sociais.
Yves Hélory nasceu a 17 de outubro de 1253, em Minihy-Tréguier. Proveniente de uma família muito religiosa, cresceu no ambiente cultural bretão tradicionalmente católico. Estudou teologia em Paris e direito canônico em Orleans. Exerceu cargos em Rennes e em Tréguier. Tornando-se sacerdote (ca. de 1284), foi pároco de Trédrez e. a partir de ca. 1292, em Louannec. Alcançou o seu renome em vida por atuar como advogado dos pobres, de órfãos e viúvas, cujos direitos defendeu em tribunais da Bretanha e até mesmo em Paris. A sua história salienta a oposição que fêz para com Felipe o Belo, defendendo os direitos da Igreja e da Bretanha perante a política de tributação imposta pelo rei. Por ter colocado os seus serviços e os seus bens a serviço dos pobres que, por falta de recursos achavam-se impossibilitados de defender os seus próprios direitos, é visto por alguns como sendo o inaugurador do serviço de assistência judiciária aos desamparados. Retirou-se para a propriedade de seu pai ao redor de 1297/98, em Kermartin. Conta-se que a sua dedicação aos pobres foi tão intensa que passou a viver como eles, compartilhando a sua vida na forma de vestir e de comer e transmitindo-lhes conhecimentos de escrita e leitura. Em 1347, foi santificado por Clemens VI.
O culto de Ivo de Tréguier, proclamado santo apenas após 44 anos de sua morte, ocorrida a 19 de maio de 1303, difundiu-se rapidamente por toda a Bretanha e outras regiões da Europa. À época dos Descobrimentos era venerado não só na França, mas também na Alemanha e na Península Ibérica.
Santo Ivo e o mundo de língua portuguesa
Através de Santo Ivo, a questão do Direito aos desamparados e sem posses na sua contextualização bretã tornou-se presente até a atualidade no mundo de língua portuguesa. Por ocasião das festas a êle dedicadas, em Tréguier, concorrem milhares de pessoas de todas as partes do mundo, sobretudo representantes de associações de advogados, juízes e tabeliães. O seu mausoléu, que substituiu um mais antigo, construído por Joan V, Duque da Bretanha, e destruído na época revolucionária, é um monumento neogótico representativo da restauração católica de fins do século XIX. Até hoje é rodeado de inscrições em lápides que manifestam o agradecimento daqueles que procuraram a sua intercessão. Também representantes da classe de Portugal e do Brasil ali demonstram o seu vínculo com o modêlo de comportamento e de ética corporificado pelo santo. Como protetor de ordens de advogados em várias regiões do mundo, Ivo é lembrado também em irmandades e sociedades que se dedicam à possibilitação de defesa jurídica a pessoas sem posses. Sobretudo na França, na Bélgica, em Portugal e no Brasil tem-se conhecimento da ação dessas entidades. A Ordem dos Advogados de Portugal reconheceu-o como patrono dos advogados portugueses em 1992. O dia 19 de maio, data de sua festa, é considerado Dia do Advogado. A imagem de São Ivo comprova a sua presença na memória cultural de várias comunidades, seja no Porto, ou na Madeira, em Câmara dos Lobos, onde é levada em procissões. Uma dessas imagens pode ser vista no altar da Igreja de S. Pedro de Palmela. No Brasil, no século XVIII, o Aleijadinho trabalhou na encarnação de uma imagem do santo para a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis em Ouro Prêto. Essa veneração de Santo Ivo no período colonial brasileiro correspondeu pelo que tudo indica um florescimento de seu culto na Europa. Na Áustria superior, em Berg, perto de Rohrbach, há um oratório dedicado a Santo Ivo próximo à capela de Maria Trost, um centro de romarias. De épocas mais recentes, basta lembrar da igreja de Santo Ivo, no Largo da Batalha, em São Paulo, para demonstrar a vigência de sua memória até mesmo em contextos metropolitanos.
"Santo justiceiro"
Sob o ponto de vista dos estudos culturais, cumpre lembrar que com Santo Ivo se vinculam também concepções que surgem aparentemente como singulares. Sendo protetor dos injustiçados, surge também como justiceiro. Já Ernest Renan, conhecedor das formas de veneração de Santo Ivo de sua cidade natal, Tréguier, mencionou, na então muito divulgada Revue des Deux Mondes, a 15 de março de 1876, que os camponêses da região também a êle pediam a consecução de atos de justiça. Junto a seu túmulo na catedral, os fiéis a êle solicitavam até mesmo a morte daqueles que lhes haviam cometido injustiças. Acreditavam que a morte ocorreria no prazo de um ano (Tu étais juste de ton vivant, montre que tu l'es encore, cit. in E. Reclus, Nouvelle Géographie Universelle II: La France, Paris: Hachette 1870, 618). Levanta-se naturalmente a questão do tipo de religiosidade que corresponda a tais concepções justiceiras, à primeira vista inconcebíveis em contexto cultural tão profundamente cristão. Os pesquisadores culturais conhecem concepções similares no Brasil, onde santos surgem também com características ambivalentes. Por falta de conhecimento mais aprofundado das características de edifícios de concepções e imagens medievais, antropólogos culturais, etnólogos e africanistas têm explicado tal ambivalência como testemunho de extensões religiosas africanas. Este não é, porém, necessariamente o caso. Como os estudos de hagio-historiografia têm demonstrado, o sistema de ordenação de imagens do edifício cosmológico e simbólico-antropológico herdado da Antiguidade e cristianizado nos primeiros séculos da era cristã incluia implicitamente a possibilidade de ambivalências pela natureza tipológica/anti-tipológica do conjunto. Santo Ivo teria sido aqui vinculado a um dos paradigmas já existentes desse edifício de concepções e de imagens. A identificação desse paradigma seria até mesmo possível com base nos conhecimentos já existentes do sistema. Embora podendo-se compreender as razões culturais que justificam a compreensão do tipo de Santo Ivo como justiceiro, isso não significa, naturalmente, que tal entendimento corresponda aos princípios éticos e religiosos do Cristianismo.
(...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).