Doc. N° 2342
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
114 - 2008/4
Entre céu e terra: Mont Saint-Michel e as montanhas sagradas do mundo
Saint-Michel-au-Péril-de-la-Mer XIII Centenário do Mont Saint Michel
Mont Saint Michel. Trabalhos da A.B.E., maio-junho 2008
A.A.Bispo
Mont Saint-Michel Trabalhos da A.B.E. 2008. Fotos A.A.Bispo O ciclo de estudos Normândia-Bretanha-Brasil, realizado pela Academia Braisl-Europa em maio e junho de 2008, iniciou-se com uma revisita do Mont Saint-Michel por motivo do seu XIII Centenário. A exposição fotográfica ali apresentada, de título "Entre Terra e Céu", deu ensejo a reflexões que representaram uma introdução aos trabalhos. Pelos muros, escadarias e espaços da Abadia apresentaram-se fotos de montanhas sagradas de diversas partes do mundo, de templos em serras e de ritos e cerimônias realizados em lugares altos. Sobretudo regiões orientais, entre êles o Tibet, a China e a Índia, foram consideradas em expressivas imagens. Também montanhas de conotações religiosas de aborígenes australianos ou mesmo do Novo Mundo estiveram representadas. A exposição, mesmo sem ser de forma explícita, apontou para aspectos quase que universais relacionados com a montanha nas suas implicações simbólicas, sensibilizando o visitante a outra percepção do Mont Saint-Michael. Não deixou, assim, de ter uma conotação religioso-comparativa, questionável talvez sob o ponto de vista de determinadas correntes teológicas, mas sugestivas certamente para questionamentos culturais. No vasto espectro de montanhas, igrejas e templos considerados, o Brasil poderia ter estado representado com vários exemplos, desde o Monte Roraima às igrejas da Penha no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, de Monteserrate em Santos, além de muitos outras templos em cidades e bairros.
Esboço histórico
A história do Mont-Saint-Michel remonta ao início da história cristã da região. Em 966, sob o Duque Ricardo, os primeiros religiosos do local foram substituidos por beneditinos da Abadia de Fontenelle (hoe Saint Wandrille). Construíram uma igreja maior, com amplos arcos, mais tarde ainda mais ampliada. Tendo sido a igreja primitiva por assim dizer soterrada sob construções posteriores, existe até hoje sob a designação de Notre-Dame-sous-Terre. É importante salientar esse fato e essa denominação, pois aqui se encontra uma chave para a elucidação das questões relativas às alturas, infelizmente não suficientemente considerada na exposição. O mosteiro tornou-se um grande centro de peregrinação. Foi visitado, entre outros, por Carlos Magno, Guilherme o Conquistador e Luís - o Santo. Os reis da França, até Luís XI, procuravam pelo menos uma vez na vida peregrinar ao Mont Saint-Michel. Planos para um edifício ainda maior, de 80 metros de comprimento, remontam ao Abade Hildebert. Uma parte do edifício foi construída sobre a igreja carolíngia, agora transformada em cripta. Em 1103, a parede norte da nova igreja ruiu, arrastando consigo várias partes do conjunto, entre êles o convento, o abrigo dos pobres, o dormitório e o perambulatório. A reconstrução já mostra indícios do gótico. Sob o Abade Robert de Thorigny (1154-1186), o Mont Saint-Michel vivenciou uma fase de grande florescimento. Sendo o abade amigo do rei Henrique II Plantagenet da Inglaterra, de grande influência, as construções puderam prosseguir levando a um conjunto monumental de edifícios. O caráter geral permaneceu o de um burgo-fortaleza. Embora praticamente inexpugnável, a sua história foi marcada por tentativas de assédio e ocupação. Em 1203, Guy de Thouars e Felipe-Augusto, inimigos do Duque da Normândia, procuraram apoderar-se do Mont Saint-Michel, que se achava desde Guilherme o Conquistador nas mãos dos inglêses. Não o conseguindo, incendiaram a aldeia de pescadores que se encontrava a seu pé. As chamas alcançaram o mosteiro e destruíram algumas de suas partes. Uma nova fase de apogeu deu-se graças a doações de Felipe-Augusto. Construiu-se, na parte norte do rochedo, o edifício que recebeu o nome de La Merveille. Sob Richard Turstin surgiu o edifício da Oficialidade e a Procura.Nos anos seguintes, fortaleceu-se a dfesa com a construção de uma muralha. Na Guerra dos Cem Anos, o Mont Saint-Michel teve significado estratégico. A ilha próxima, Tombelaine, encontrava-se nas mãos dos inglêses. Após o contrato de Troyes, Robert Jolivet, abade, ofereceu os seus serviços ao rei da inglaterra, comandando exército inimigo contra a sua própria fortaleza. O Mont St. Michel situou-se no centro das beligerâncias entre a Inglaterra e a França. Em 1434, os inglêses atacaram-no no período da maré baixa; a subida da maré trouxe grandes baixas entre os atacantes que retornavam. Na batalha de Formigny, os franceses conquistaram toda a região litorânea, com a Ilha Tombelaine, sob o comando de Louis d'Estouteville. Seu irmão, Cardeal Guillaume, assumiu o cargo de abade. Planejou a edificação de uma igreja em estilo gótico. O coro, que desde então dá continuidade e fecha a nave românica levou 75 anos para ser construído.
Época dos beneditinos de Saint Maur e o Mont Libre
Fala-se de um período de decadência após o século XVI. Os abades titulares, nem sempre religiosos, por vezes nunca visitaram a ilha. A disciplina monacal sofreu. Para dar novo impulso espiritual à Abadia, ela foi confiada aos beneditinos de Saint-Maur. Com isso, passou a um círculo de religiosos de alta formação espiritual e cultural. Dessa época datam reformas que são consideradas como infelizes. Assim, em 1780, no lugar de partes românicas caídas, as lacunas foram fechadas com construções de estilo classicista. Na época da Revolução, os monges foram expulsos, e pilhagens destruíram o patrimônio material e a valiosa biblioteca. A ex-abadia foi transformada em prisão e o monte denominado de Mont Libre. Somente em 1863 a prisão foi extinta, podendo então os monges retornar. Desde 1874, encontra-se sob proteção patrimonial. No espírito do século XIX, construiu-se uma torre gótica com uma estátua do Arcanjo.
Entre Céu e Terra
Há dimensões mais profundas da temática exposta por meio de imagens na exposição de fotografias pelo Centenário do Mont Saint-Michel do que aquelas consideradas à primeira vista em constatações comparativas. Concepções relacionadas com lugares elevados na mitologia e na história das religiões já foram tratadas em publicações, inclusive em eventos da A.B.E. Somente a consideração dessas dimensões mais profundas é que permite a compreensão de uma concepção do mundo que não apenas tem a sua expressão concreta em igrejas sobre montanhas, mas sim também na própria hagiografia, mitologia e na linguagem visual de expressões culturais.
Atualidade
Esse debate é particularmente atual, uma vez que o Mont Saint-Michel está sendo alvo de uma das maiores e mais dispendiosas obras de engenharia da atualidade européia. O Mont Saint-Michel está perdendo cada vez mais a sua condição insular, pois o terreno em que se encontra está sendo cada vez mais aterrado pelas areias trazidas por rios e pela maré. Uma das razões desse fenômeno foi o atêrro feito há décadas para a construção de uma via que liga a terra firme ao monte e que impede o livre fluxo das marés. A grande obra de engenharia que está sendo realizada, e cujos resultados não são garantidos, baseia-se em questão mais cultural do que paisagística. Trata-se da recriação de uma posição natural que marcou a imagem do Mont Saint-Michel através dos séculos. Aqui, porém colocam-se questões relativas à justificação mais profunda dos argumentos, questões estas relacionadas com o tema sugerido na própria exposição sobre as montanhas sagradas do mundo. Na argumentação, esquece-se que havia, no local onde posteriormente o mar se expandiu, uma floresta, a floresta de Scissy, que cobria o interior e parte da baía. O Mont Tombe, mais tarde Mont Saint-Michel, salientava-se, ao lado do Mont Dol, como duas elevações no meio da floresta. Nessas elevações já os druídas teriam realizados os seus atos de culto. Com a romanização, construíram-se templos para os deuses do Império. Nos primórdios do Cristianismo, tais elevações foram procuradas por eremitas que, no Mont Tombe, construíram duas igrejas, dedicadas ao Protomártir, S. Estevão, e a Symphorianus. Foi apenas no decorrer dos séculos que o mar penetrou na floresta de Scissy, assumindo aos poucos o domínio da região, talvez definitivamente após uma inundação, no ano de 709. Foi a partir dessa época que o Mont Saint-Michael tornou-se uma ilha que se eleva a 92 metros sobre o nível do mar. Segundo a tradição, o próprio Arcanjo teria anunciado essa inundação. Em aparições ao bispo de Avranches, S. Aubert, teria aconselhado várias vezes que se edificasse uma igreja no cume do Mont Tombe. A construção foi possibilitada pelos duques da Normândia e alguns monges ali se estabeleceram. Não haveria, portanto, razão pela qual hoje se procura reconquistar a região para o mar, com grandes dispêndios, uma vez que teria sido anteriormente coberta de florestas e a sua cobertura pela água uma inundação. Há, porém, razões simbólico-religiosas que necessitam ser consideradas. Cumpre recordar, por exemplo, que houve uma troca na invocação, de Santo Estêvão a São Miguel. Como se tem discutido em publicações e eventos, tanto o Protomártir quanto o Arcanjo estão associados com as esferas mais elevadas do edifício de concepções, seja por ter sido Estevão o primeiro mártir a alcançar a posição alta perdida por Adão, seja por ser S. Miguel o condutor dos exércitos celestes e o guia do povo. Entre essas duas imagens há, porém, uma grande diferença. Nas associações com a concepção dos céus, Estêvão foi, em representações simbólicas, imaginado próximo ao polo superior do globo celestial, vinculado com a constelação de Cepheus. S. Miguel, por outro lado, também localizado nas regiões mais elevadas do globo celeste, foi simbolizado pela constelação da Ursa minor. Essas associações se encontram porém em relação com partes ascendentes e descendentes da Eclipse e, essas, com o ciclo do ano e suas estações. A verdadeira montanha simbólica por excelência é aquela que é alcançada das profundezas do inverno (do hemisfério norte) às alturas do verão (do hemisfério norte). Como foi rediscutido, a parte ascendente, corresponde ao período do ano que supera a região das águas e é caracterizado pela terra; a parte descendente, corresponden ao período que, descendo, leva novamente à cobertura das águas. Há, portanto uma coerência nas concepções, resultante do próprio edifício de concepções do mundo e que torna compreensível a mudança de invocações - de S. Estevão a S. Miguel. S. Miguel estaria, portanto, na ordem simbólica, estreitamente vinculado não apenas com as alturas mas sim também com o período marcado pela subida das águas. Essas elucidações já bastariam para indicar que há, na linguagem simbólica relacionada com as altitudes, substratos e fundamentos de cunho filosófico-natural. Dentre os elementos, é o fogo aquele que tem a tendência a subir, encontrando o seu lugar nas alturas. O mundo do fogo ou da luz espiritual é, segundo a tradição, aquele dos seres intelectuais, dos anjos. Compreende-se, assim, os elos simbólicos que unem o Arcanjo São Miguel, o líder dos exércitos celestiais, a esse elemento, na sua acepção espiritual, e às alturas. A verdadeira chave para a compreensão desse sistema de concepções relacionado com os elementos é, porém, a da própria concepção de matéria, a mãe dos elementos. É dela que se tira a concepção da terra, um de seus elementos e, portanto, dos montes, da parte sêca que se eleva sobre as águas. Entretanto, o antigo debate filosófico-natural salienta que a sua verdadeira natureza deve ser procurada no meio que une altos e baixos, céus e terra, na atmosfera, no ar, tal como alma do cosmos. Daquí chega-se à conclusão que a verdadeira chave para a compreensão do simbolismo tematizado pela exposição Entre Ceús e Terra reside na misteriosa e soterrada Notre-Dame-sous-Terre. Nas construções sacrais sob montes ter-se-ia, portanto, um substrato simbólico de fundamentação mariológica. (...)
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).