Doc. N° 2373
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
115 - 2008/5
Alemanha-Brasil
Ballett de Stuttgart e Márcia Haydée 1968 na História Contemporânea das Relações Interculturais Questões de difusão cultural refletida
pelos 40 anos de fundação da Sociedade Nova Difusão entidade constituidora da Organização Brasil-Europa
Trabalhos da A.B.E. 2008
A.A.Bispo
Do programa do Teatro Municipal de São Paulo, 31 de julho de 1968 Em 1968, a dança, em particular o ballett t clássico, fazia parte dos múltiplos anseios de renovação e de atualização das estruturas e dos mecanismos de difusão cultural entre universitários e jovens profissionais. Poucas esferas da cultura surgiam como tão vinculadas com uma cultura de características burguesas e pequeno-burguesas do que a do ballett t clássico, sentida como estreita, passadista, estagnada no seu desenvolvimento, formalista e sem sentido sócio-cultural. Criticava-se uma quase a-historicidade da compreensão do Clássico que se manifestava nessa forma de expressão, assim como o seu anacronismo, uma vez que se prendia a uma tradição romântica. Criticava-se sobretudo a sua não-inserção na história cultural do Brasil e a sua não-participação no debate cultural. O ballett t clássico levava, assim, a um certo distanciamento irônico e até mesmo sarcástico por parte de círculos jovens que se empenhavam por uma difusão cultural refletida e uma observação participante refletida. Compreendia-se a crise por que passavam as escolas de ballett e o ensino de ballett em geral, e não se via justificativa social e cultural para o fomento desse tipo de prática artística. Colocava-se em questão o sentido de esforços para a propagação dessa esfera da cultura e o rejuvenescimento do público numa sociedade que se transformava pela dinâmica de seus diferentes grupos sociais, culturais e étnicos na era da comunicação. Por outro lado, reconhecia-se o significado extraordinário da dança nas suas múltiplas formas de expressão na história cultural e na atualidade de então, inclusive a do ballett t clássico, se este fosse contextualizado histórico-culturalmente e praticado de forma refletida. Um dos caminhos procurados era o da aproximação do debate relativo à dança com aquele concernente ao teatro, à música e às artes visuais. Procurava-se dirigir a atenção aqui não apenas ao significado da dança na história da música e do teatro, com o estudo de obras relevantes da história cultural contemporânea. De um ponto de vista mais abstrato, refletia-se sobre o movimento e expressão corporal e de gesto. Como na esfera musical - e também da arquitetura -, o relativar de valores transmitidos pela cultura considerada erudita da época levava à consideração de expressões até então pouco valorizadas, por exemplo o da dança histórica, em particular da Renascença e do Barroco, assim como o da dança social e de salão. A dança passava, assim, a ser considerada sob uma perspectiva cultural e histórico-cultural, procurando-se, entre outros aspectos, reconsiderar formas da dança social do passado do Brasil. Também aqui surgia como necessário um distanciamento no tratamento dessas formas de expressão, estabelecendo-se um diálogo com o presente e evitando-se historicismos, o que levava à experimentação de formas alternativas de apresentação, visuais e de encenação. Nesse contexto de reflexões, não sem ambivalências e paradoxias, o contacto com iniciativas de outros centros culturais do mundo surgia como particularmente significativa. A observação do que era discutido e realizado em outros países dava margens a um tratamento do complexo de questões levantadas sob outras perspectivas e contribuía para uma melhor definição de próprios pontos de vista.
Uma ocasião de excepcional importância nesse contexto deu-se com a da visita do Ballett de Stuttgart, em 1968, em particular por nele se apresentar uma bailarina brasileira, cuja carreira internacional era já bastante conhecida: Marcia Haydée.
União dos povos e o "Humano individual e imediato"
A visita do Ballet do Teatro Estadual de Württemberg foi um dos grandes acontecimentos de 1968 sob o aspecto das relações culturais Alemanha-Brasil. O evento, em São Paulo, foi patrocinado pelo Departamento de Cultura do Município e pela Empresa Viggiani. A tournée foi acompanhada por palavras do Cônsul Geral da Alemanha, Dr. Gert Weiz. Nelas, o representante alemão salientava o renome do Ballet, que se estendia muito além das fronteiras da Alemanha, e o significado da sua apresentação no Teatro Municipal de São Paulo: "A arte e em alto grau a dança, unem os povos do mundo, porque são expressão do humano sumamente individual e imediato." O evento foi anunciado sob o título "Marcia Haydée no Ballet de Stuttgart", colocando em relêvo a bailarina brasileira. Desde 1961 era bailarina do Teatro de Estado de Wuerttemberg. Já havia-se apresentado em vários países, entre outros no Canadá, na Inglaterra, na Áustria e na Suíça. O programa de 31 de julho de 1968 constou de 4 obras: Quatro Imagens, Opus 1, A interrogação e Jogo de Cartas, respectivamente com música de M. Ravel, A. von Webern, A. Zimmerman e I. Strawinsky. A coreografia ficou a cargo de John Cranko. A diretora do Ballet era Anne Woolliams, a instalação técnica de Herbert Grohmann e a inspeção de Gerde Praast. A primeira obra apresentada, de título Quatro imagens (Perolas são os seus olhos...de A Tormenta, de Shakespeare) baseou-se na obra de Maurice Ravel (Pavane por um menino morto, Introdução allegro, Alvorado do gracioso, Um navio no oceano). Os bailarinos foram Egon Madsen (O príncipe), Gudrun Lechner (A princesa), Christa Schwerdtfeger e corpo de baile (Côrte), Trudi Campbell, Anne Thomas, Veronica Esterhuizen, Susanne Hanke, Helene Bury, Leigh-Ann Griffiths (sereias), Truman Finney, Jan Stripling, Bernd Berg, e John Neumeier (marinheiros ébrios), Dieter Ammann, Peter Marcus, Istvan Merczog, David Sutherland (bobos da Côrte). Marcia Haydée desempenhou o papel da "bruxa do mar". A obra Opus 1, sobre a Passacaglia opus 1 de Webern, foi dançada por Birgit Keil e Richard Cragun, com a participação de Gudrun Lechner, Helene Bury, Marianne Krause, Veronica Esterhuizen, Bärbel Beckmann, Christa Schwerdtfeger, Peter Marcus, John Neumeier, Urf Esser, Ulrich Behrisch, Gray Veredon e Dieter Ammann. A Interrogação, sobre a Sonata para Cello de Bernd Alois Zimmermann, contou com o desempenho de Marcia Haydée, John Neumeier e Irene Scheneider, além de outros membros do corpo de baile. Por fim, o ponto alto da apresentação, esperado com grande atenção pelos jovens interessados em questões culturais, o Jogo de poker em três rodadas de Igor Strawinsky, com cenários e costumes de Dorothee Zippel, contou com o desempenho de Egon Madsen (Coringa), Birgit Keil (Rainha de copas), Urf Esser, Ulrich Behrisch (Dois dez), Edward Dutton, David Sutherland (Dois setes), Bernd Berg, Peter Marcus, Jan Stripling, John Neumeier, Truman Finney (Suite de copas), Marianne Kruuse (Dois de ouro), Edda Kara (Dez de espada), Dieter Ammann (Valete de Espada), Gray Veredon (Rei de espada) e Gudrun Lechner (As de Espada). Além de Márcia Haydée, particular atenção foi dada ao desempenho de Egon Madsen e a Richard Cragun. Madsen, dinamarquês, antigo membro do Skandinaviske Ballett, atuava como Haydée desde 1961 em Stuttgart. Cragun, da California, também atuava desde 1962 em Stuttgart, após ter estudado no Canadá e na Inglaterra. Birgt Keil, de Stuttgart, era uma ex-aluna da Escola de Ballett do Teatro de Estado de Württemberg, e que também estudara em Londres. Percebia-se, assim, apesar da internacionalidade, fortes elos que uniam os membros do Ballett culturalmente entre si, pois sempre se constatava a menção da escola de Londres. Também Marcia Haydée, filha de uma familia de médico de Niterói, que desde a infância desejara dedicar-se à dança, saíra com 15 anos do Brasil para estudar no Royal Ballet Scholl em Londres. Posteriormente, tivera a oportunidade de desenvolver a sua personalidade artística na Compagnie des Marquis de Cuevas, um conjunto de ballett t particular de Paris, altamente renomado. Com a morte do marquês e a extinção da companhia, candidatou-se em Stuttgart, cujo diretor de ballett t, na época, era o americano John Cranko. Este foi aquele que descobriu o potencial de Marcia Haydée, fazendo-a primeira bailarina. Já em dezembro de 1962 apresentava-se no principal papel de Romeo e Julieta, de John Cranko, uma reelaboração, sob a sua influência, de obra criada alguns anos antes para o Scala de Milão e que solidificaria o renome internacional do próprio Cranko. Richard Cragun e Egon Madsen. Programa do Teatro Municipal de São Paulo, 1968 Sob uma perspectiva cultural, a arte de Haydée e de outros membros do Ballett de Stuttgart talvez pudesse ser considerada em função de uma situação dos seus protagonistas no Exterior, fora do país natal, por assim dizer de imigração, inseridos no campo de tensões criado por fatores antagônicos, entre eles motivos pessoais de saudades e nostalgia, de questões de identidade cultural, e de ideais universais, antes abstratos do Ballett. Talvez se elucide assim certas características de dramaticidade em projetos da companhia. Agora, na sua presença no Brasil, Haydée trazia consigo essa experiência e vivência do Exterior, com todas as suas conotações psicológicas. A sua atuação e a sua personalidade surgiam como particularmente instigantes no âmbito de reflexões que procuravam um enfoque teórico-cultural refletido para com o Ballett. John Cranko e Marcia Haydée haviam-se tornado os principais protagonistas do excepcional desenvolvimento que o Ballett de Stuttgart experimentava na década de 60. Questões de difusão cultural aqui se impunham de forma inusitada: arte européia no continente americano que agora revertia e levava a seu extraordinário desenvolvimento na própria Europa. Esse processo intercultural havia transformado, a partir de 1961, um Ballett convencional de uma cidade média centro-européia numa das mais renomadas companhias clássicas do mundo. O grupo de Stuttgart representava, assim, a possibilidade de um diálogo inspirado e inspirador entre o clássico e tradicional e a dança e coreografia da Modernidade. Dava um exemplo, assim, da renovação que também era aspirada no Brasil.
Desenvolvimentos posteriores
Na ocasião não se podia saber que Madsen, Cragun e Haydée teriam as suas vidas e suas carreiras estreitamente vinculadas por décadas, e nem que Cranko faleceria após alguns anos (1973). Também não se poderia supor que o americano Richard Cragun, nascido em Sacramento, Califórnia, em 1944, e que trazia experiências internacionais da sua formação no Banff School of Fine Arts. do Canadá, do Royal Ballet School e daquela com Vera Volkova, em Kopenhagen, viria a dirigir, muito mais tarde, a companhia de Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (até 2005). Cragun constituiu, com Marcia Haydée, um dos grandes pares da história contemporânea da dança. O outro bailarino que esteve no centro das atenções em São Paulo, o dinamarquês Egon Madsen, nascido em 1942, também permaneceria em estreita relação de trabalho com Haydée. Trazia consigo uma cultura escandinava da dança, onde recebera a sua formação e onde atuara desde a infância no ballett infantil de Aarhus, no teatro de pantomima do Tivoli, e no Ballett Escandinavo. Também êle tivera o início de suas atividades em Stuttgart, em 1961, recomendado pelo bailarino dinamarquês Erik Bruhn, entre outros. Já em 1963 tornara-se solista. Os papéis de Mercutio em Romeu e Julieta e do Joker no Jeu de Cartes, o de Albrecht em Giselle e o do Príncipe Siegfried em Lago dos Cisnes fundamentaram o seu renome. Mais tarde tornar-se-ia um dos principais protagonistas do cultivo de um repertório contemporâneo. Além de Marcia Haydée, iria atuar com as mais famosas bailarinas do mundo, tais como Margot Fonteyn, Eva Evcokimova, Gelsey Kirkland e Lynn Seymour. Somente em 1981 abandonaria o Ballet de Stuttgart, tornando-se diretor do Ballett de Frankfurt, do Ballett Real da Suécia e do Ballet do Teatro Communale de Florença. Marcia Haydée o traria novamente a Stuttgart, em 1990, tornando-se mestre e mais tarde vice-diretor, antes die passar para o Ballett de Leipzig e do Nederlands Dans Theater III. Quem poderia imaginar, em 1968, esse desenvolvimento conjunto, através de décadas do grupo internacional de Stuttgart e do papel que Marcia Haydée deveria nele desempenhar? (...)
Nova Difusão. 40 anos de fundação: 1968-2008
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).