Doc. N° 2397
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
Europa-Argentina-Brasil
68: Das "raízes cravistas" do piano aos estudos culturais Estelinha Epstein e Rossini Tavares de Lima
Revendo 1968 na vida musical paulistana. Trabalhos da A.B.E. 2008 40 anos de fundação da sociedade Nova Difusão constituidora da Organização Brasil-Europa
Um dos concertos de 1968 que uniu de forma singular a questão da difusão cultural na esfera erudita com a da reflexão teórica sobre a cultura tradicional e popular foi o da pianista Estelinha Epstein, levado as efeito no dia 15 de Março, no Teatro Municipal de São Paulo. O programa constou da Fantasia em dó menor de Mozart, de uma Siciliana de anônimo do século XVI em transcrição de Respighi, da Sonata op. 53 (Aurora) de Beethoven, das Cenas Infantís de Schumann, do Andante spianato de Chopin, de duas obras de Liszt (Au bord d'une source e Ronde des lutins) e das Seis Cirandinhas, de Heitor Villa-Lobos. O programa, convencional na sua aparência, era singularmente acompanhado por comentários de Rossini Tavares de Lima, principal representante dos estudos de folclore em São Paulo. Para êle, Estelinha Epstein seria uma das mais categorizadas pianistas brasileiras, seja sob o aspecto técnico, da virtuosidade, ou sob o estético, daquele que traduziria uma "autêntica arte do piano". "Neste segundo aspecto, o mais importante para a projeção de um pianista, Estelinha filia-se ao grupo dos mensageiros de Apolo mais do que os de Dionisos, pelas linhas de beleza pura e equilíbrio de sua arte. Haja visto seu interesse, sempre renovado, pelos clássicos do cravo, dos quais se tornou a intérprete que buscamos e que nos dá o prazer da pureza de uma mensagem estética. Mas, ela não permanece nesse recanto em que pontificam os cravistas: também é capaz de se aventurar por outras regiões do mundo da música, a fim de nos trazer, na expressão de seu toque de virtuose exímia, o que há de melhor e bom no domínio dos românticos, impressionistas, e mesmo dos autores contemporâneos, inclusive os brasileiros." Rossini Tavares de Lima remontava-se nesses comentários a uma apresentação anterior de Estelinha Epstein, em 1960, quanto havia apresentado obras de Chopin. Sendo na época crítico de A Gazeta, havia comentado de forma particularmente positiva a sua interpretação da obra chopiniana: "É uma bela intérprete de Chopin. Serena, com ótima sonoridade e obtendo sem qualquer afetação ou exagêro, as nuances requeridas na execução (...) Mostrou que realmente é uma pianista de primeira qualidade, e o que é mais relevante, uma artista que pouco se preocupa com os meios exteriores da execução pianística, tão a gosto de alguns virtuoses. (...) Nunca se deixou envolver pelo clima romântico de Chopin de propaganda comercial e nos ofereceu, por isso, um Chopin autêntico, cuja arte tem raízes na mais pura tradição cravista." A argumentação de Rossini Tavares de Lima, nessas palavras surpreendentes para um estudioso de Folclore, podem ser explicadas pela tradição de pensamento decorrente de Mário de Andrade. Na aula inaugural desse pensador como professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, nos anos 40, como exposto em número anterior desta revista, o mentor e antecessor de Rossini Tavares de Lima salientara o significado cultural, político-cultural e a contemporaneidade de Chopin. A partir dessa tradição de pensamento, na qual o virtuosismo e o sentimentalismo de alguns pianistas eram criticados a favor de valores culturais e estéticos inerentes à obra e à relevância político-cultural do compositor em contextos internacionais, Rossini Tavares de Lima traça uma ponte entre uma época histórico-musical anterior ao Romantismo e o presente. Compreende-se, assim, o significado que vê no cunho cravista do pianismo de Estelinha Epstein. De forma singular, portanto, por caminhos inesperados, o estudioso da cultura demonstrava uma afinidade de concepções com músicos que, na década de 60, procuravam uma renovação da difusão cultural a partir da revalorização do passado remoto da assim-chamada "música antiga" e, ao mesmo tempo, da divulgação de obras contemporâneas, em particular daquelas relacionadas com o Folclore. Estelinha Epstein, nascida em Campinas, havia alcançado renome a partir da interpretação, ainda menina, de um concerto de Mozart nos teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro. A qualidade de seu toque e de sua interpretação eram devidas em grande parte a seu mentor, J. Kliass. A esse mestre remontavam não apenas aspectos técnicos como também concepções estéticas básicas de Estelinha Epstein. Com apenas 13 anos, com prêmio de Pensionato Artístico do Govêrno paulista, dirigira-se à Europa para prosseguir os seus estudos. Apresentara-se em recitais na França e na Alemanha. Ao retornar ao Brasil, realizou uma série de concertos pelo Norte do país. Em 1939, em excursão organizada pelo Govêrno, percorreu as mais mais importantes cidades brasileiras. Em 1950, realizou nova viagem à Europa, patrocinada pela Sociedade Musical Daniel. Apresentou-se em salas altamente prestigiadas, entre elas na Sala Gaveau, de Paris, no Estúdio Pulchire, em Den Haag, e na Sala Bach, de Amsterdam. Em fins daquele ano, executou um concerto no Teatro Odeon, em Buenos Aires, com tal sucesso que foi convidada para apresentar-se para a Associação Wagneriana. A partir desses concertos, os seus elos com a Argentina levaram-na a visitar várias vezes o país. Em 1951, apresentou-se em várias cidades argentinas como solista de concertos orquestrais e como recitalista. Em 1962, apresentou também na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Estelinha Epstein, possuindo um considerável círculo de discípulos, dedicava-se intensamente à divulgação de sua técnica e de suas concepções estéticas
O seu interesse pela literatura para cravo aproximou-a dos círculos que se dedicavam à música anterior ao Romantismo no Brasil, em especial daqueles inseridos no movimento Bach. Assim, em 1963, a Sociedade Bach de São Paulo promoveu um de seus recitais, com obras de Dandrieu, Rameau, Haendel, Daquin e Couperin. A crítica, na época, assim se manifestou: "Essa literatura é rica e muito completa no seu gênero, não obstante parecer limitada devido à falsa idéia que dela se faz. De modo geral, a música clássica, especialmente para cravo, é considerada graciosa e leve, despreocupada e superficial. Nada mais contrário à realidade estética e histórica. Essa literatura representa a expansão fecunda do tonalismo harmônico, por sua vez término da preparação operada pela Renascença e ao mesmo tempo admirável antecipação do espírito romântico (...)." Essas palavras, de Caldeira Filho, professor de História da Música, indicam como a atenção à música antiga e a oportunidade de sua difusão já era própria de uma geração mais antiga de historiadores e até mesmo de folcloristas. A diferença entre as opiniões dessa geração e dos representantes mais jovens de então, com relação à assim-chamada música antiga deve ser procurada portanto em nível outro àquele da mera consideração de um período histórico-musical pouco considerado na prática convencional.
A.A. Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).