Doc. N° 2391
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
Áustria-Brasil
68: Difusão austro-brasileira e cultura caipira Lydia Alimonda, Theodoro Nogueira e Coral Paulistano
Revendo 1968 na vida musical paulistana. Trabalhos da A.B.E. 2008 40 anos de fundação da sociedade Nova Difusão constituidora da Organização Brasil-Europa
O que tem a ver a Áustria com a cultura caipira? O que tem a ver uma nação cuja imagem é tão marcada pela música erudita, pelo Clássico nas suas múltiplas acepções e pelo cosmopolitismo na sua história cultural com a música de viola, com o popular de tradição sertaneja e interiorana, nas suas diversas conotações de provincialismo? Esta questão, que seria discutida de forma diferenciada e sob diversos e aspectos em publicações e em eventos da A.B.E., entre eles sobretudo no Colóquio Internacional de 1998, e no Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, de 2002, foi levantada já em 1968 no âmbito do debate sobre a Difusão Cultural. A questão surgia já então como de especial relevância interdisciplinar, pois exigia o diálogo de estudiosos de áreas voltadas à história da música, até então quase que exclusivamente dirigida à música erudita ocidental, e aqueles do folclore.
As reflexões foram motivadas por um concerto que assumiu uma relevância singular quanto ao relacionamento entre as esferas eruditas e populares da cultura. Tratava-se do programa levado a efeito no dia 2 de agosto de 1968 no Teatro Municipal de São Paulo pelo Coral Paulisto, sob a direção de Tullio Colacioppo, com a participação da Orquestra de Câmara Municipal. O programa constou, na primeira parte, da Cantata n° 131 sobre o Salmo 130, em português, de J. S. Bach, tendo como solistas Dante Perini (baixo) e Elias Moreira da Silva (tenor). Na segunda parte, apresentou-se o Concertino para piano e coro (1958) de Teodoro Nogueira, tendo como solista Lydia Alimonda. Essa pianista receberia, naquele ano de de 1968, o prêmio de Melhor Solista do ano pela Associação Paulista de Críticos Teatrais.
Lydia Alimonda
Lydia Alimonda, como o seu irmão, o pianista e compositor Heitor Alimonda, era conhecida não apenas pelas suas qualidades de intérprete mas também pelo seu trabalho de difusão cultural no Brasil e na Europa. Como coordenadora da seção cultural do Consulado Geral da Áustria realizava intenso trabalho de divulgação de valores musicais austríacos, um trabalho pelo qual seria posteriormente condecorada com a Cruz de Honra de Artes e Ciências da Áustria. Com o Duo Alimonda - criado em 1959 com a sua irmã, Altéia Alimonda -, e a participação do violoncelista Calisto Corazza, executara, entre muitas outras obras, os trios de F. Schubert, inserindo-se assim em tradição cultural de profundo significado para a identidade austríaca, sempre tão marcada pelas "Schubertiadas". Esse vínculo da artista com o mundo centro-europeu de língua alemã tinha antigas raízes. Após ter recebido formação na escola do professor e compositor Agostino Cantù (1878-1943), em São Paulo, e ter-se aperfeiçoado nos Estados Unidos, estudara música de câmara em Zurique, com Paul Grümmer ,e, em Viena, piano com o internacionalmente renomado Bruno Seidlhofer. Aqui recebera formação que a qualificou como profunda conhecedora da obra dos autores vienenses, assim como da cultura e da mentalidade austríacas. Ao mesmo tempo, dedicou-se à divulgação da música brasileira em concertos radiofônicos na Suíça (Beromünster) e na Alemanha (Stuttgart) nos anos posteriores à Segunda Guerra. Já nos concertos realizados na época constata-se uma particular atenção dada pela artista a obras que representavam um diálogo com a cultura popular tradicional do continente americano. Não apenas executou obras de H. Villa-Lobos e Camargo Guarnieri mas também, em notável empreendimento, a Rapsódia negra, de John Powell. Aliás, também o seu irmão possuía um particular vínculo com a cultura musical de outros países americanos, tendo atuado como professor no Paraguai. Para os observadores de iniciativas e de esforços de difusão cultural, porém, o que surgia como mais surpreendente não era a consideração de obras de compositores brasileiros já consagrados da estética nacionalista, mas sim o fato de a artista ter gravado os 20 Cantos Caipiras de Ascendino Theodoro Nogueira (Chantecler), uma vez que ligava o seu nome aqui aos esforços de um compositor que procurava valorizar uma esfera cultural e sócio-cultural ainda estigmatizada. A abertura da artista para o mundo da cultura caipira poderia talvez ser procurado na sua própria origem interiorana, uma vez que nasceu na cidade de Araraquara. Aliás, a cidade de Araraquara desempenhou papel significativo na história da música paulista do século XX.
Ascendino Theodoro Nogueira
Embora nascido em Santa Rita do Passa Quatro, em 1913, onde iniciou-se na prática musical, Ascendino Theodoro Nogueira viveu e desenvolveu-se musicalmente em Araraquara, onde, em 1939, apresentou em público as suas primeiras composições. Deu prosseguimento ao estudo de violino com o mesmo professor de Altéia Alimonda, Torquato Amore. Estudou composição com Camargo Guarnieri. Correspondendo à sua origem e formação, Theodoro Nogueira tornava-se conhecido como um pioneiro na valorização da viola como instrumento a ser integrado na prática erudita. Se o instrumento já havia sido há muito objeto da atenção de pesquisadores no âmbito dos estudos de folclore, a sua nobilitação, ou melhor, a sua de-marginalização na criação artística ligou-se ao nome de Theodoro Nogueira. Havia, entre outras obras, composto um Concertino, para canto e piano, em 1958, além de Improvisos para violão (1958/9). O compositor entrara também para a história recente da música sacra no Brasil, uma vez que, em decorrência dos impulsos que partiram do Concílio Vaticano II, compusera uma missa com texto em português, para coro a 4 vozes, duas flautas, dois violoncelos e uma viola caipira, obra que significativamente seria executada posteriormente na abertura do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira (1981).
O papel pioneiro de Theodoro Nogueira no estudo técnico-musical da viola caipira, de sua prática de execução e de sua integração no repertório erudito foi salientado no programa do concerto de 1968. Lembrava-se que havia escrito o citado Concertino, os 7 Prelúdios para esse instrumento, já então gravados (Chantecler), e a missa com viola caipira.
O Concertino para piano e coro, executado por Lydia Alimonda, era apresentado como primeira obra do gênero. O programa incluiu um comentário descritivo da obra. "I. Com um fragmento de um tema do folclore mineiro ("Cê vai na cidade também vou") inicia-se o primeiro tempo, exposto em oitavas pelos tenores e baixos, respondendo o piano com novo tema. Surge um movimento rítmico formado por elementos do tema que o piano expôs. O Coro aparece com o tema alargado e o piano começa variando o tema já apresentado pelo Coro. Com os versos: "Quem me déra ser um tucano araçari/Pra entrá no peito e nunca mais saí./Os teus olhos são estrela, no ar ele relampeia, /Em qualquer parte que ande, os teus olhos me capeia (...)" são desenvolvidos os temas do Coro e do Piano. Na reexposição, o coro e o piano continuam variando os temas até a coda. II. No segundo tempo o piano faz uma introdução de 12 compassos. Este movimento é todo cantado em africano. Em solo pelo soprano é exposto um tema de folclore da Bahia. (...) Logo respondido pelo piano. Este tema é novamente apresentado pelo tenor, e, desenvolvido pelo piano. Aparece um pedal pelos baixos: "O negro enfeitiçado não quer trabalhar e canta com a boca no chão" (...) O tema aparece com imitações, contraponteado pelo piano e repetindo o pedal nos baixos. III. No terceiro tempo o piano e sopranos apresentam um tema de folclore pernambucano (Baiana bunita). É construido uma frase apresentada pelos sopranos, e transformada a 4 vozes com movimentos harpejados pelo piano. A reexposição é apresentada pelo coro que continua em diálogo com o piano. A mesma frase aparece formando uma imitação com o piano, surgindo a coda com o tema variado."
Tullio Colacioppo e o Coral Paulistano
Seria incorreto não se salientar que o concerto em questão, de tão considerável significado cultural, realizou-se sob o signo do Coral Paulistano.
Esse grupo coral era ao mesmo tempo símbolo e expressão de uma concepção de difusão cultural específica e que levava aos anos trinta, a tendências estéticas e culturais marcadas por nomes como Mário de Andrade, Camargo Guarnieri e, sobretudo, Martin Braunwieser. Também aqui havia elos com tradições centro-européias, em particular austríacas e sul-alemãs da prática dos Corais Populares (Volkschöre) e do cultivo de obras em língua vernácula.
O regente do Coral Paulistano nessa apresentação, em substituição ao regente-titular, Miguel Arqueróns, era Tullio Colacioppo. Havia recebido uma formação com professores de relêvo da esfera mais tradicionais da vida musical paulistana, tais como João Sepe e Antonio Romeu, alguns deles relacionados com círculos italianos, como Sisto Mecchetti. Na Europa, aperfeiçoara-se em cursos realizados na Itália, França, Suíça e Espanha, estudando composição com Petrassi e regência com F. Previtalli. Regera Madame Butterfly no prestigiado Teatro San Carlo, em Nápoles. Era, na época, professor catedrático de matérias teóricas e regência no Curso Superior de Música do Colégio Sagrado Coração de Jesus, diretor do Conservatório Municipal de Arte do Município de Guarulhos, do Conservatório Musical de Santana e professor de Canto Coral no Curso Normal do Instituto de Educação e Escola Normal Estadual "Conselheiro Crispiniano".
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).