Doc. N° 2389
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
68: Margem esquerda e "o grito de guerra contra a cultura dirigida" "Vietnãs na Cultura e Biafras na Miséria" Centro Estudantil de Teatro Amador e João Cabral de Melo Neto
Revendo 1968. Trabalhos da A.B.E. 2008 40 anos de fundação da sociedade Nova Difusão constituidora da Organização Brasil-Europa
Os vários textos deste número e da edição anterior desta revista, revendo o ano de 1968, procuram considerar diversos aspectos da vida e da discussão cultural no Brasil, em especial de São Paulo. O objetivo é oferecer, na retrospectiva, uma visão mais ampla do complexo de iniciativas culturais da época e das concepções a elas subjacentes. Uma análise dos anseios e das tendências que se ligam internacionalmente ao ano de 1968, para ser aprofundada e diferenciada, exige também a consideração de empreendimentos, grupos e personalidades que não necessariamente se vinculam ao que em geral se associa com a "geração de 68" e que é conotada com uma atitude política e político-cultural de esquerda. Os jovens que estavam envolvidos nos anseios críticos e renovadores da época, e que procuravam refletir sobre os problemas culturais e sociais, confrontavam-se com correntes e tendências de pensamento e de ação - conscientes ou inconscientes - que apenas em análise retrospectiva surgem como inseridas em complexos de natureza política. A consideração ampla do espectro do ano de 1968 sob o aspecto da Difusão Cultural não pode, porém, deixar de lembrar prioritariamente de iniciativas estudantís explicitamente político-culturais da época e que mais correspondem à imagem da geração de 1968 e de seus anseios hoje debatidos. A 27 de outubro de 1968 fundava-se a Sociedade Nova Difusão com concerto no auditório do Colégio Maria Imaculada, situado à Avenida Paulista, em São Paulo. Nessa sessão inaugural, salientou-se que um dos objetivos da entidade seria o de promover o estudo e a pesquisa de problemas músico-culturais, procurando estabelecer e propagar uma visão dinâmica e crítica do panorama cultural. Para isso seria necessário observar analiticamente o que acontecia e o que se vivenciava, o que significava uma atitude de contínua auto-observação.
"Margem Esquerda"
Um exemplo para o exercício dessa atitude preconizada de observação de processos nos quais muitos dos jovens se inseriam oferecia a apresentação levada a efeito naquele mesmo Auditório do Centro Estudantil de Teatro Amador, sob o patrocínio do Grêmio Estudantil do Colégio Maria Imaculada. Esse Centro apresentava, quase que paradoxalmente em local associado com o ambiente social da Avenida Paulista e dos bairros adjacentes, uma peça de título "Margem Esquerda" , baseado em textos de João Cabral de Melo Neto, em adaptação e direção de Walter Soares Mendes. Do elenco particivam Ana Lucia Rosseto Rocha, Regina Lico, Cecilia Mattos, Cleide Rita Silverio de Almeida, Ana Lucia de Barros Andrade, Rui Germano Melcher, Flavio Gaddini Spiz e Julio Cesar Callado. Os sub-textos eram de Walter Soares Mendes e Rui Germano Melcher, as músicas de responsabilidade de Ana Lucia Barros de Andrade. O programa da apresentação deixava claro a inserção política da iniciativa no quadro internacional e nacional: "ainda os ianques não foram embora, a dita dura ainda não veio abaixo e a única liberdade que conseguimos foi o direito de falar em liberdade..."
Nordeste e Biafra: irmãos da desgraça
Com o título "Nordeste e Biafra: irmãos comuns da desgraça...", Walter Soares Mendes publicou no programa da apresentação um texto que surge, hoje, como documento altamente significativo, até mesmo emblemático para a geração estudantil de 68:
"Nós pensávamos numa peça que traduzisse a vontade de rompimento conosco mesmo. Mesmo que fôssemos caracterizados de cemitérios gerais, onde a carne humana deveria ser devorada. Através de uma eficácia política devorando todas as correntes esquemáticas e mitológicas deste país..." Procurando sistematizar o mais possível a sua argumentação e o escopo do grupo, Walter Soares Mendes fazia a sua exposição segundo cinco parágrafos. No primeiro parágrafo, salientava que "Margem Esquerda" não tinha problemas de formas, abusando de todos os recursos físicos, expressivos, ginásticos e estéticos: "Todo esse rompimento passa a ser um quadro que ilumina tôda a consciência possível do nosso tempo, da nossa realidade, da nossa verdade, da nossa não-liberdade anti-conivente de expressões". No segundo parágrafo, salientava expressamente que essa proposição estética possuia uma orientação política clara, oposta ao status quo do sistema político brasileiro da época, com palavras hoje surpreendentes na sua coragem:
"Estamos tentando mostrar ao Touro-Descansado- do Planalto, cara a cara tôda a miséria no seu estado original. Onde as bestas-feras das esferas políticas através de tantos oportunismos, de tanta castração e recalque procuram esconder tôda a miséria de um povo..." No terceiro parágrafo, o diretor de "Margem Esquerda" salientava a responsabilidade individual de todos em tomar posição. A peça colocava em seus personagens tôdas as responsabilidades de seus atos, procurava proporcionar a cada um dos espectadores a escolha de optarem ou pela necessidade de uma iniciativa individual de "começar a atirar sua pedra contra o absurdo brasileiro" ou de "continuarem cangaceiros". O grupo distanciava-se expressamente do "Teatro Folclórico", em cuja eficácia já não se acreditava. A "Margem Esquerda" tinha a intenção não apenas de atingir determinadas classes sociais. Com a sua "representação cruel e grossa" tentava atingir "tôda a grossura apática" em que se vivia. No quarto parágrafo, o diretor manifestava a expectativa de que "Margem Esquerda" pudesse vir a ser "uma abertura de vários Vietnãs no campo da cultura", pois já se vivia "várias Biafras de fome e misérias". Poderia vir a ser um "grito de guerra contra a cultura dirigida". Essa cultura dirigida seria "a cultura do consumo fácil, pois com o consumo não só se vende o produto, mas também se compra a consciência do consumidor". O texto terminava, no seu quinto parágrafo, com um apelo ao espectador, instigando-o à participação e ao engajamento:
"Você, que passa matando o seu tempo, não fique imóvel. Olhe pelo menos para o lado e verá uma platéia morta e adormecida. Se perceber que o tempo passa matando você, verá que estará dentro da senda tortuosa da existência, e verá também que estará na Margem esquerda, pois você também é terra." O programa incluia frases que manifestavam a opinião de seus protagonistas. Ana Lúcia de Barros Andrade salientava tratar-se de um grito de protesto contra a atual situação dos irmãos nordestinos. Cleiderita Silveiro de Almeida via em "Margem Esquerda" sobretudo o intento de despertar consciências adormecidas. A mensagem poderia ser encarada como política, social ou moral, caberia porém ao espectador julgá-la e aplicá-la onde achasse que melhor se ajustasse. Regina Lico, lembrando que tudo seria interligado na realidade e nas várias opções de vida, pronunciava um alerta ao espectador: "Não fique mistificando um mundo onde a história não passa de um prolongamento da história das grandes desgraças...". Rui Germano Melchert tornava explícito e pessoal o caráter desmistificatório do projeto. Os seus participantes não pretendiam apenas denunciar a fome, a sêca e a pobreza: "Nós não só denunciamos situações. Nos denunciamos também a consciência. Nós denunciamos você...". Júlio Cesar Callado, colocando novamente o Nordeste no centro das atenções, salienta o paradoxo e a ambivalência do amor à terra na situação de pobreza do nordestino: "O amor é a terra odiosa. O amor é o ódio amoroso. O Nordeste brasileiro é a terra prometida a viver na desgraça...". Também Flávio Gaddini-Spina acentua o elo da peça com o Nordeste: "Margem Esquerda" seria uma amostra da vida do Nordeste. Esta vida seria determinada pela fome, pela miséria, pela ignorância e pelo amor. A peça corporificava tudo isso em forma de poema, representando a verdade dolorosa. Embora poema não matasse, mas atingisse, tentava-se ali matar entre aspas, ou seja, no sentido figurado do termo. Cecilia Mattos expunha a sua decisão de "ir até a última conseqüência...:" Nesse sentido, em expressão de muitos sentidos, exclamava: "Nordestino, viva, pois você vaga pelo chão da morte; Nordestino, morra, pois viverá entre os vivos vagando na terra...". Finalizando essa série de curtos depoimentos, Ana Lúcia Rosseto Rocha mencionava o aspecto plural, multifacetado da complexa realidade, mas ao mesmo tempo a necessidade de tomada de posição para a ação política e de definição da meta de ação. Ao mesmo tempo, ampliava o vínculo com o Nordeste das manifestações antecedentes. Não se trataria de um lamento ou de um hino ao Nordestino na sua luta. Tratar-se-ia de uma mensagem que dizia respeito também às grandes cidades, em especial à São Paulo. "Uma meta, muitas realidades. A explosão da necessidade do verde; verde na alma e na própria terra em que caminhamos. Não é um canto à luta do nordestino. É a realidade inclusive para as cidades que mais crescem no mundo. Não interessa áreas geográficas. Não interessa as particularidades, mas sim a própria mensagem. Podemos estar na margem direita ou esquerda, mas devemos nos definir. Eu escolhi a verdade crua da "Margem Esquerda" ."
"Margem Esquerda" e Nova Difusão
No âmbito das reflexões do grupo Nova Difusão, então estruturado, a atenção dirigiu-se sobretudo às múltiplas concepções teórico-culturais que se manifestavam nos textos dessa iniciativa. Como alguns de seus membros estavam inseridos nas discussões que então se desenvolviam em círculos de estudos de folclore e de cultura popular, em particular no Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo, empenhados em renovar conceitos e métodos da disciplina, notava-se a conotação negativa que se dava ao "teatro folclórico", que vinha de encontro às críticas de Rossini Tavares de Lima quanto ao "folclore-espetáculo". Notava-se também a afinidade nos anseios de extensão das observações analítico-críticas de processos culturais às situações urbanas e metropolitanas. Por outro lado, porém, salientava-se a posição diferenciada da Nova Difusão quanto a um direcionamento mais acentuado da atenção ao edifício teórico-cultural que fornecia os fundamentos para as ações. Um dos conceitos aqui discutidos era o da "cultura dirigida", base para a intenção de se desenvolver uma "guerra" à mesma. Esse conceito também fazia parte do edifício teórico dos folcloristas, onde surgia em contraste à de uma esfera da cultura não-dirigida, informal ou espontânea (na formulação de representantes da Associação Brasileira de Folclore). Nesse edifício conceitual inseria-se também a visão negativa de uma esfera cultural designada como popularesca ou de consumo. Também a crítica à cultura de consumo era exposta manifestadamente nos textos de "Margem Esquerda" . Levantava-se, porém, sob o aspecto da Nova Difusão, se essas divisões de esferas culturais não seriam inadequadas e aptas a serem revistas, sobretudo quando a atenção fosse dirigida a processos culturais urbanos e metropolitanos.
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).