Doc. N° 2388
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
68: O "muito antigo", o contemporâneo e o popular "Mestres Cantores" e "barber-shop-music"
Revendo 1968 na vida musical paulistana. Trabalhos da A.B.E. 2008 40 anos de fundação da sociedade Nova Difusão constituidora da Organização Brasil-Europa
Dentre os mais notáveis acontecimentos de cunho renovador da vida musical de São Paulo do ano de 1968 pode-se mencionar o concerto realizado para a Sociedade de Cultura Artística, a 16 de Maio, do quarteto vocal que se denominava de Mestres Cantores. A designação não era expressão de exagerada auto-consciência de valor de seus componentes. Era uma tradução da expressão Meistersänger, trazendo em si sugestões de uma prática medieval. Havia na escolha do termo certamente expressão de uma certa ironia,o que correspondia a um espírito reinante em determinados círculos intelectuais e artísticos da época.
O quarteto fora criado em 1966. A sua composição indicava a afinidade de formação de seus membros e a corrente de concepções estéticas e de orientação cultural em que se inseriam. Após 40 anos, percebe-se mais diferenciadamente tendências e expressões da época no panorama amplo do desenvolvimento do pensamento, da criação artística e das concepções de difusão cultural no Brasil. O quarteto era constituído por Henrique Gregori (contra-tenor), Diogo Pacheco (tenor), Samuel Kerr (barítono) e Paulo Herculano (baixo). Salientava-se expressamente que a formação musical dos cantores era devida, basicamente, a Hans Joachim Koelreutter, nascido em Freiburg im Breisgau (1915), quando este havia dirigido a Escola Livre de Música, posteriormente denominados de Seminários de Música Pró-Arte. Com essa menção, indicava-se o papel renovador exercido por esse professor e compositor alemão, que havia chegado ao Brasil em 1937. Havia criado já em 1939 o movimento "Música Viva", no ano seguinte a revista "Música Viva", e fundara, em 1952, a Escola Livre de Música de São Paulo. Em 1954, criara a Escola de Música da Bahia, integrada posteriorimente à Universidade. Dirigira essa instituição até 1962. De Munique, onde esteve à frente do trabalho internacional do Instituto Goethe (1963/64), transferira-se para a Índia, em 1966, onde ainda se encontrava como diretor da escola de música que fundara em Nova Delhi.
Do Ars Nova aos Mestres Cantores
O fundador dos Mestres Cantores, Diogo Pacheco, estudara matérias téoricas e regência com Koellreutter, a partir de 1952, após ter sido cantor do Coral Paulistano (1945) e professor do SENAI (1950). Tornou-se regente de corais e alcançou renome pelas suas iniciativas causadoras de sensações. Foi, em 1954, um dos fundadores do Movimento Ars Nova, inicialmente um quarteto vocal; ao movimento pertenceram, entre outros, Klaus-Dieter Wolff, Dilza de Freitas Borges e Willis de Castro. O Ars Nova (Madrigal Ars Nova, Quarteto Ars Nova) dedicava-se à revelação de uma música nova, compreendida no caso como a "muito antiga" e a contemporânea, ou seja, aquela de um repertório não considerado na vida musical convencional. Tratava-se, assim, de um movimento com escopo de renovação de cânones que guiavam a prática de difusão cultural. Diogo Pacheco participara dos cursos de Tanglewood, Massachusetts, com apoio do Berkshire Music Center e do Departamento de Estado dos EUA (1959). Em 1964, viajara por países europeus a convite do Ministério das Relações Exteriores para proferir conferências a respeito da música brasileira. Atuava como crítico musical do Jornal da Tarde, como colunista de O Estado, sendo responsável pelos Concertos das Segundas-Feiras no Teatro Anchieta, do SESI. Particular sensação na imprensa e no público havia alcançado o movimento que iniciara no sentido de uma popularização da música erudita. Esse movimento teve características peculiares, que superavam intuitos de uma simples difusão da música erudita a um público mais amplo. Tratava-se de aproximações e interferências diversas entre esferas do popular e do erudito, por um lado realizadas pela integração de intérpretes populares (por ex. Elisete Cardoso e Alaíde Costa) na execução de obras de compositores eruditos, ou de apresentações de música popular "em estilo clássico", introduzindo a música popular em círculos e ambientes conotados como de elite. Um desses casos foi um concerto com música da "Jovem Guarda", levado a efeito sob o patrocínio da tradicional Sociedade de Cultura Artística. Samuel Kerr, organista, cravista e regente, professor dos Seminários Pró-Arte, cursara o Meadow Brook School of Music, nos USA, aperfeiçoando-se em regência com Robert Shaw. Atuava como professor de órgão e cravo nos Cursos Internacionais de Curitiba, desde 1965. Dirigia vários conjuntos em São Paulo, entre eles o Coro da Terceira Igreja Presbiteriana e o Coro da Associação Cristã de Moços. Era regente da Cantoria Ars Sacra, do Coral da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, à frente do qual havia sido por duas vezes premiado no Primeiro Festival Latino-Americano da Canção Universitária, em Santiago do Chile, em 1967. Paulo Herculano, também professor de matérias teóricas e instrumentos (cravo, piano, órgão) e canto nos Seminários de Música Pró-Arte, era estreitamente vinculado aos movimentos de vanguarda e um dos mais destacados representantes da renovação da vida musical e cultural. Ao mesmo tempo, fora um dos fundadores do conjunto Musikantiga, ensemble pioneiro sob muitos aspectos da prática de instrumentos musicais antigos no Brasil e que alcançara excepcional ressonância no país. Distinguia-se pelo fato de atuar como compositor de trilhas sonoras para cinema e teatro, assim como como autor de orquestrações e arranjos. Tinha sido diretor musical da peça Marat Sade, um marco na história teatral paulistana dos anos 60. A atuação de Paulo Herculano, em visão retrospectiva, surge como de excepcional significado no processo de transformação cultural e de mentalidades, de uma ação refletida e consciente, informada culturalmente e engajada em processos emancipadores. Está merecendo uma consideração muito mais justa e aprofundada por parte daqueles que se dedicam aos estudos da história cultural recente do Brasil. Henrique Gregori havia estudado regência coral com Koellreutter, matérias teóricas com Damiano Cozella, viola com Johannes Oelzner, violino com Lola Benda, canto com Hilde Gimmek e Sonia Horn. Fora violinista e regente da Sinfônica da Universidade da Bahia. Regera o Coral do Maranhão, o Madrigal Renascentista de Belo Horizonte alternadamente com Isaac Karabtchewsky e o Conjunto Coral de Câmara de São Paulo. Desenvolveu os seus estudos com Friz Harlan na Escola Superior de Música de Freiburg, ou seja, na cidade onde havia nascido H. J. Koellreutter.
Programa e concepções
O programa constou, na sua primeira parte, além de Canto Gregoriano, de peças de William Cornish, Thomas Morley, Michael Este, Valentin Haussmann, Nicolaus Rosthius, Claudin de Sermisy, Clement Jannequin e Claude Le Jeune. Na segunda parte, os cantores apresentaram peças de Claudio Monteverdi, Adam de La Halle e Juan del Encina. A terceira parte, dedicada a autores brasileiros, eruditos e populares, incluiu canções de Camargo Guarnieri e peças de Sérgio E. Marcos Vale, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, Dorival Caymi, Lamartine Babo e Ary Barroso (arranjos de Damiano Cozzella), além de canções de Barber-shop para quarteto, wash-board e banjo, harmonizadas por Richard J. Neumann. Da constituição do programa percebe-se claramente as concepções principais que orientavam o intuito renovador do grupo. O peso era dado à divulgação de obras do repertório medieval e renascentista. Tratava-se, aqui, de um labor de cunho de difusão renovadora através da ampliação de cânones que orientavam tradicionalmente a vida musical de concertos do Brasil. Não representava um intuito novo, uma vez que já havia há décadas esforços e até mesmo instituições voltadas ao repertório não-romântico e anterior ao clássico, tais como a Sociedade Bach de São Paulo. Representava, porém uma renovação sutil dentro do movimento de música antiga, uma vez que se dedicava decididamente a obras ainda mais antigas, da Idade Média e do Renascimento, dentro de concepções diversas de prática de execução. Talvez poder-se-ia dizer que diferenciava-se nesse sentido pela inserção cultural diversa que propunha desse repertório com relação a esforços inseridos em outras correntes, por exemplo daquelas do movimento Bach. Essa distinção fica clara com o confronto que o programa faz desse repertório europeu mais remoto com canções de Camargo Guarnieri e peças populares reelaboradas segundo critérios "eruditos". Com essa aproximação transepocal e de esferas do erudito e do popular constata-se que o interesse primordial no repertório antigo apresentado diz respeito à detectação, nele, de um diálogo ou de uma interferência entre o Erudito e o Popular, o que se processava também na música brasileira da época. Esse intuito demonstrava também uma sensibilidade pela História Social da Música. Segundo o programa, expressamente, os arranjos de música popular, realizados por Damiano Cozzella, representavam o intento de abrir a esfera da música erudita à música popular. As quatro peças, de nomes muito conhecidos na música popular, tinham sido tratadas polifônicamente, tendo o arranjador procurado não prejudicar a simplicidade melódica e a inteligibilidade do texto. O leitor poderia aqui perceber claramente o elo sugerido com técnicas do repertório mais antigo executado, onde também melodias populares de fins da Idade Média e da Renascença haviam recebido tratamento a várias vozes.
Barber-shop
Uma particular atenção merece, porém, a parte que finalizou o programa e que foi dedicada a canções de barber-shop. O vínculo aqui criado com uma tradição norte-americana, manifestada na própria expressão utilizada, apesar de aparentemente surpreendente, denotava uma linha coerente de concepções. As três canções deveriam chamar a atenção para o fenômeno da música de barbeiros.
A consideração do fenômeno segundo a tradição norte-americana poderia talvez ser explicada pelos contatos de componentes do quarteto com o ambiente musical dos Estados Unidos. Entretanto, a prática musical dos barbeiros despertava, na época, também a atenção de pesquisadores brasileiros da música popular.
José Ramos Tinhorão ("Música de barbeiros, estudo com bibliografia", Música Popular: Um tema em debate, Rio de Janeiro: Saga 1966, 107 ss.), iniciara um estudo a respeito com as seguintes palavras: "Os meninos dos conjuntos de bossa nova vão me desculpar, mas êles todos não passam de descendentes da música de barbeiros. Eu explico. Embora esses modernos entusiastas americanizados (...) não saibam, (...) o que o grupo está fazendo é - nada mais, nada menos - do que repetir uma novidade velha de 200 anos." Entre a argumentação desse pesquisador, porém, e aquelas do programa dos "Mestres Cantores" havia discrepâncias. J. Ramos Tinhorão concluía o seu estudo de forma crítica: "Longo caminho de ascensão social que explica, afinal de contas, a perda de substância cada vez maior do ritimo original, em favor de uma harmonização internacionalista, que não deixa de constituir uma moderna incapacidade de renovar (...)" (op. cit. 114). O programa, porém salientava a habilidade dos barbeiros de Nova Iorque na prática do violão e o fato de que as expressões "barber-shop music" e "barber-shop harmony" designavam, de modo genérico, qualquer harmonização coral simples de melodias populares, cantadas em festas ou reuniões. Apesar da afinidade sugestiva de idéias, de um direcionamento da atenção ao fenômeno dos músicos barbeiros no seu significado social e da permanência ou retomada de uma prática sob o aspecto de uma ascensão social, constatava-se uma sensível diferença entre as idéias de José Ramos Tinhorão e o teor do concerto dos "Mestres Cantores". Essas diferenças tinham conotações político-culturais. Tinha-se de um lado um pesquisador preocupado com a perda de uma autenticidade e por uma norteamericanização da cultura tradicional brasileira e, de outro, de músicos que assumiam declaradamente, por assim dizer, o papel criticado de "harmonizadores internacionalistas". A concepção social de interpretação do desenvolvimento histórico-musical manifestava-se nos instrumentos empregados para o acompanhamento das execuções vocais. Ao lado do banjo e da tábua da tradição norte-americana surgiam flautas-doce, o Krumhorn, o Pommern e outros instrumentos da música medieval e renascentista. Os executantes desses últimos instrumentos, Abel Vargas, Bernardo de Toledo Piza, Mechtild Weyer e José Carlos de Azevedo Leme, também vinculados com a Escola Livre de Música Pró-Arte, formariam posteriormente o núcleo básico do conjunto que viria a substituir a lacuna deixada pelo fim do Musikantiga e ao qual o autor dessas linhas se integraria a seguir. Entretanto, sob o ponto de vista do movimento então recém-fundado da Nova Difusão, esse concerto, apesar de toda a proximidade de concepções e propósitos com aqueles discutidos, não deixava de apresentar diferenças de posições. Essas questões diziam respeito, em primeiro lugar, ao debate teórico-cultural. No âmbito dos estudos culturais, tais como desenvolvidos no Museu de Artes e Técnicas Populares, procurava-se uma superação de determinadas conceituais de folclore, modificando-se conceitos que o vinculavam à tradição. Por outro lado, mantinha-se a distinção em esferas culturais, distinguindo-se o objeto do folclore de uma cultura popular e comercial designada pejorativamente como popularesca.
No âmbito dos pesquisadores da Nova Difusão empenhados no repensar da disciplina, procurava-se substituir essa orientação segundo esferas pelo direcionamento segundo processos, capacitando o estudioso a analisar e a participar de movimentos de superação de barreiras sociais e culturais. Estudiosos da música popular, área então incipiente, partiam - como no caso pioneiro citado -, de concepções de cunho nacional ou nacionalista, de autenticidade e de tradição em parte ainda mais acentuadas do que a de folcloristas conservadores.
O concerto dos Mestres Cantores relacionava-se de modo ainda mais complexo com essas questões já em si quase que paradoxais de orientação dos estudos culturais. Vinha de encontro, em parte, ao intuito da Nova Difusão de visão processual e de superação de barreiras sócio-culturas e de esferas disciplinares. Inseria-se porém numa concepção de Difusão Cultural que, apesar de todo o impulso renovador, mantinha as características basicas do mecanismo difusivo. Sentia-se aqui o risco de que se tratasse de uma renovação do próprio sistema, representando apenas a sua afirmação e continuidade. O intento de popularização da prática erudita poderia até mesmo representar uma apropriação de esferas conotadas como populares. O risco de mal-entendidos e de esforços contrários aos intencionados era muito alto. Em todo o caso, sentia-se a necessidade de que a concepção, a visão sócio-histórico-musical da proposta e sobretudo a sua prática passassem a ser observadas com mais cuidado. O mais instigante, para a Nova Difusão, era o de observar a observação daqueles protagonistas de movimentos de renovação da difusão cultural, no caso daquela dos "Mestres Cantores".
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).