Doc. N° 2398
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
Tema em debate
1968 na História Contemporânea das Relações Interculturais II Revendo 1968 na vida musical paulistana
Trabalhos da A.B.E. 2008 40 anos de fundação da sociedade Nova Difusão constituidora da Organização Brasil-Europa
O presente número da revista BRASIL-EUROPA/Correspondência Euro-Brasileira, encerrando o ano de 2008, é dedicado sobretudo aos trabalhos desenvolvidos pela passagem dos 40 anos de fundação e registro da sociedade Nova Difusão, em São Paulo, fundamento da Organização Brasil-Europa.
Dando assim continuidade a tema já considerado na última edição, a atenção dirigiu-se a eventos realizados no ano de 1968 em São Paulo. Realizou-se, nesse sentido, um levantamento dos arquivos da instituição. Num ciclo de estudos, escolheram-se documentos de apresentações teatrais e concertos realizados em São Paulo que de uma forma ou outra estiveram relacionados com o debate sobre a difusão cultural de fins da década de sessenta. O objetivo desse ciclo não foi apenas o de rememorar acontecimentos e melhor compreender o contexto geral no qual se inseriram os anseios que levaram à fundação da entidade. A atualidade das discussões relativas ao ano de 68 e da geração de 68 na história cultural contemporânea torna oportuna a consideração mais pormenorizada da vida cultural desse ano em uma metrópole fora da Europa e dos Estados Unidos.
Por outro lado, porém, o principal interesse de revisitar o ano de 1968 com base nos documentos arquivados foi o de reconsiderar tendências de pensamento e de prática, concepções relativas à difusão cultural e de estratégias de renovação de repertórios e de conquista de novos públicos.
Os trabalhos voltados a 1968 salientam em geral o aspecto político-ideológico de movimentos renovadores que procuraram combater estruturas, situações e formas de expressão convencionais. Como salientado no caderno anterior dessa revista, essa visão dos acontecimentos de 68 é parcial, e as próprias expressões e fatos de cunho revolucionário e de protesto não podem ser entendidas sem a sua inserção em contexto cultural mais amplo e multifacetado. Ânsias de mudança e procura de inovações faziam-se sentir em diferentes esferas culturais e com diferentes conotações político-culturais. No sentido do que mais comumente se compreende como expressão de 68 se comenta, neste número, a peça teatral "Margem Esquerda" do Centro Estudantil de Teatro de São Paulo, levada à cena no mesmo local que seria dada a inauguração da Nova Difusão.
O concerto do grupo coral - também universitário - que marcou a inauguração da Nova Difusão, porém, pertencia a outra corrente de pensamento e de prática, e na qual concepções relacionadas com a difusão cultural e renovação de cânones e conteúdos também desempenhavam importante papel. Apenas em visão retrospectiva, com o cotejo de diferentes grupos e da formação de seus protagonistas é que se delineia, aos poucos, contextos que permitem detectar afinidades e reconhecer diferenças entre os vários grupos da época. Também torna-se possível traçar um histórico dessas concepções, relacionando-se com personalidades que souberam criar multiplicadores. Nessa perspectiva mais ampla e profunda historicamente percebe-se o quanto não era tão nova a intenção de superar-se fronteiras entre a música erudita e popular, a de reunir obras do passado mais remoto - anterior ao repertório romântico e clássico que dominavam na vida musical - com obras brasileiras baseadas no folclore e até mesmo com arranjos de música popular. Essa concepção aproximava a prática da música antiga com a de uma música popular elaborada por arranjadores de formação tecnicamente qualificada. Houve até mesmo tentativas de se fundamentar tais concepções através de interpretações e análises da história social da música, unindo técnicas e expressões da Idade Média e da Renascença com a música popular, passando pela tradição de uma música de barbeiros, como expressamente formulado em concerto do quarteto "Mestres Cantores". Dentro de tendências afins que dirigiam a atenção ao popular em processos históricos, havia também diferenças. Tentava-se a interferência de esferas e a superação de barreiras de gêneros e classes com a integração de intérpretes populares em concertos eruditos, ou a apresentação de obras populares em arranjos orquestrais segundo "estilos" eruditos. Constata-se, a posteriori, tendências ao abandono de um certo pejo contra procedimentos abertamente sensacionalistas em círculos eruditos. Houve, paralelamente, críticos e artistas que recusavam-se a seguir essas tendências, que negavam a sua eficácia ou se inseriam em outras correntes de pensamento e de ação. Também as suas concepções e práticas tinham o cunho da preocupação por uma necessária renovação de público. Defendiam porém o princípio da excelência como o mais adequado para a conquista do público e a renovação da vida musical. Artistas de qualidade internacionalmente reconhecida deveriam ser convidados para concertos e recitais, e músicos estrangeiros deveriam ser contratados para as orquestras brasileiras. Deveriam impulsionar a competitividade com os músicos nacionais, servir de modêlos e tornarem-se formadores de novas gerações. O que em parte aconteceu, acarretando uma singular internacionalização da vida musical das grandes cidades brasileiras de fins dos anos 60. Concursos e prêmios de estímulo para jovens músicos, iniciativas múltiplas de conquista de estudantes como ouvintes e cantores determinaram movimentos tais como a Juventude Musical e aqueles da expansão coral. Em visão retrospectiva, percebe-se que até mesmo concepções, práticas e iniciativas que surgiam então como exclusivamente culturais inseriam-se em contextos políticos ou político-culturais. Aqui surge como significativo até mesmo a escolha de programas apresentados por intérpretes de renome internacional, seja uma Guiomar Novaes ou um Isaac Stern.
Os anseios pela renovação, com ou sem mudança de atitudes, com ou sem tentativas de aproximação entre o popular e o clássico eram resultados também de situações críticas. Sintomas de crise percebia-se por exemplo no ensino musical, no qual o sistema estabelecido dos conservatórios era abalado e levava a esforços quase que desesperados de seus dirigentes para a dinamização da vida estudantil. Sentia-se também uma exigência de renovação na ópera, uma vez que o público sobretudo formado por imigrantes italianos do passado envelhecera. Vários outros aspectos desse campo de tensões entre a tradição e a renovação da vida musical paulista de 1968 foram discutidos e são relatados nesta edição da revista. Muitos deles tornam-se perceptíveis apenas à distância de 40 anos. Muitos deles, porém foram já observados na época. Essa foi a peculiaridade do movimento Nova Difusão: a de perceber a vigência de complexos mecanismos de difusão cultural, mais ou menos conscientes pelos seus protagonistas, e a de que o próprio observador estava neles inserido. A análise desses processos exigia, portanto, auto-observação e observação não de fenômenos, mas sim das concepções representadas pelos protagonistas culturais. Nessa prática de observação, percebeu-se, já na época, os elos internacionais, os complexos de rêdes de contatos e de pensamento que atravessavam fronteiras. Muitas das concepções que surgiam tanto como expressões de uma nova mentalidade remontavam a ensino de professores europeus radicados no Brasil, outras de intérpretes que haviam estudado na Europa, outras de pianistas e regentes que atuavam nos Estados Unidos, outras de determinados grupos de imigrantes. As próprias iniciativas para a difusão de música contemporânea possuiam freqüentemente conotações bi-laterais e serviam à divulgação recíproca de obras e compositores desconhecidos. Se, porém, a auto-observação e a observação de concepções e correntes de pensamento dos agentes e protagonistas da difusão cultural é o que era reconhecido como de fundamental importância para o círculo da Nova Difusão, então esse procedimento deveria ser aplicado também à análise das relações entre a Europa, os Estados Unidos e o Brasil. E aqui se compreende a razão pela qual a então fundada sociedade Nova Difusão constituiu as bases da organização Brasil-Europa. Pela passagem dos 40 anos dessa fundação, procurou-se, em sessões realizadas no decorrer do ano de 2008, cotejar os resultados dos debates de então com desenvolvimentos do pensamento teórico europeu das décadas seguintes. Próximas edições deverão incluir alguns relatos desses trabalhos.
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui notas e citações bibliográficas. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição (acesso acima).