Doc. N° 2380
Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica © 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova série by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados - ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
116 - 2008/6
O Discurso Latino Clássico e Humanístico
A Linha de Pesquisa de Estudos Latinos da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Leonardo Ferreira Kaltner
Este texto, que é uma homenagem ao Prof. Carlos Antônio Kalil Tannus, é resultado de uma comunicação apresentada pelo autor na VIII Jornada de Estudos Clássicos do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nela brevemente apresentamos um dos temas de nossa Linha de Pesquisa o latim humanístico renascentista, integrante da Linha de Pesquisa: O Discurso Latino Clássico e Humanístico do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ. Nosso tema de pesquisa, nesta instituição, é o latim dos humanistas, a Literatura Novilatina da Renascença.
Antes de apresentar a tradição do latim humanístico, faremos uma breve introdução sobre a tradição de estudos clássicos e sua constituição, como se deu a sobrevivência dos textos de Roma até os dias de hoje, como foram mantidos no período medieval e reorganizados na Renascença, para, finalmente, mostrar um exemplo de texto humanístico.
A fase clássica da Literatura Latina vai do ano de 81 a.C., a época de Cícero, até 68 d. C., a época dos imperadores júlio-claudianos (Cf. CARDOSO, 2003, p.213). Este período de pouco mais de cem anos foi a aurea aetas de Roma, o século de ouro da latinidade, em que a expressão da língua atingiu sua maior complexidade, tanto na prosa quanto na poesia, como é consenso entre os especialistas. Esta foi a época de Cícero, Vergílio, Horácio, Ovídio e Sêneca, dentre outros.
Todos os autores latinos posteriores, de 68 d.C. até o V século d.C., seguiram os passos do século de ouro de Roma, expandindo a latinidade, até que em 410 d.C. Roma é saqueada pelos visigodos, sob o comando do Rei Alarico, iniciando-se o processo de desagregação do Império.
Com a queda de Roma e as invasões bárbaras, do século V d.C. em diante, somente o cristianismo pôde manter a unidade da civilização latina. O latim na Idade Média, antes falado no Império, começa a se dialetar na línguas românicas, como o Português, o Francês e o Espanhol, por exemplo, enquanto, neste mesmo período, os Mosteiros mantêm cópias dos textos clássicos, feitas e refeitas à mão, sendo recopiadas ao longo dos séculos. Estas cópias são os Manucritos medievais, que preservaram os textos latinos da queda do Império até à atualidade, por mais de mil e quinhentos anos.
Em 800 d.C., Carlos Magno é coroado imperador do Sacro Império Romano, pelo Papa Leão III, assim, houve mais uma vez a tentaiva do resgate da latinidade, e quase todos os textos medievais escritos em latim eram ligados nesta época ao cristianismo tematicamente, razão pela qual se chama de Latim Cristão a tradição deste período.
O Prof. Sílvio Elia foi o introdutor do estudo de Latim Cristão, o latim medieval, em nossa Pós-Gradução, tendo como continuador de seu trabalho o Prof. Edison Lourenço Molinari.
Praticamente, todos os manuscritos que possuímos dos autores clássicos são da Idade Média, os mais antigos manuscritos da Eneida não se aproximam da época em que a obra foi escrita, sendo o lapso de tempo maior do que mil anos em alguns casos. Não restou nenhuma edição feita por Vergílio da Eneida, logo, para o estudo dos textos clássicos, a Idade Média é a principal fonte do século de ouro de Roma, cerca de quinhentos anos depois da época de Augusto.
Todavia, nem sempre os manuscritos que nos restam estão completos, pelo lapso de tempo e pelas condições técnicas, em alguns faltam páginas, trechos ou são ilegíveis. Há mais um elemento complicador: a mesma obra aparece com passagens diferentes em alguns manuscritos, são as variantes.
A Eneida, por exemplo, no manuscrito conhecido como Vergilius Vaticanus, fonte mais antiga do poema, de 400 d.C., difere sensivelmente do manuscrito conhecido como Vergilius Romanus, do século V d.C., e este por sua vez difere do manuscrito Vergilius Augusteus, do acervo da Biblioteca do Vaticano, disponíveis aos pesquisadores.
A comparação dos manuscritos medievais inicia-se na Renascença, nos séculos XV e XVI, a fim de se atingir o melhor texto possível dos autores clássicos, a partir da comparação das fontes manuscritas que nos restam e dos testemunhos de vários autores. Após a criação da Imprensa por Gutemberg, surgem os primeiros livros e os clássicos começam a ser editados por toda a Europa. Data também da Renascença a composição de dicionários de grego e latim, nas línguas modernas, e gramáticas, com técnicas muito próximas das que utilizamos hoje em dia.
As edições atuais dos clássicos, sejam francesas, inglesas ou alemães, todas se baseiam em princípios e técnicas de crítica textual oriundas de certa forma da Renascença, desde à comparação dos manuscritos medievais, até a forma de organização de dicionários de grego e latim, embora alguns acertos como a ortografia e a escolha de variantes ainda sejam recentes, havendo muito por se fazer.
Durante a Renascença, o latim passou a ser uma língua universal, tendo o mesmo papel que o inglês possui atualmente, o estudo de Letras Clássicas, também chamado de Humanidades, studia humanitatis como diria Cícero, estava disseminado pelas principais Universidades da Europa, sendo o latim a língua em que eram ministrados os cursos para milhares de alunos de diversas áreas.
Muitas obras foram publicadas em latim nesta época sobre os mais diversos assuntos, inclusive obras literárias, ao mesmo tempo o latim era desde século XV a língua do direito internacional e da diplomacia, também a língua da ciência, de todas as áreas, enfim, que representavam o desenvolvimento da civilização renascentista.
O Prof. Américo Ramalho foi o introdutor do estudo da Literatura Novilatina da Renascença em nosso Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da UFRJ. Vindo da Universidade de Coimbra, trouxe a tradição de autores desta, e teve como continuador de seu trabalho o Prof. Carlos Antônio Kalil Tannus, que foi nosso Titular até junho deste ano, quando nos deixou.
Dos autores que o Prof. Américo Ramalho pesquisa na Universidade de Coimbra, o mais importante, historicamente, é sem sombra de dúvidas o humanista italiano Cataldo Parísio Sículo, introdutor da tradição humanística em Portugal em 1485 na Corte de D. João II.
Cataldo Parísio Sículo legou-nos várias obras, dentre elas dois volumes de cartas e discursos proferidos em latim, entitulado o conjunto de Epistolae et orationes quaedam, impressos ambos os volumes pelo tipógrafo Valentim Fernandes em 1510 e 1513 respectivamente.
Nesses discursos temos uma amostragem do que seria a utilização do latim na vida pública da corte, desde cartas exigindo a reparação a Portugal por navios portugueses capturados por piratas ingleses, a discursos de núpcias e funerais dos príncipes.
Faremos a leitura do elogio no exórdio de um discurso proferido por Cataldo, por ocasião da chegada da Princesa Isabel, filha dos reis de Espanha, à cidade de Évora, em seguida apresentaremos a tradução.
Oratio habita a Cataldo in aduentu Helisabet principis Portugaliae, ante ianuam urbis Eburae.
Ecce lux mundi tandem apparuit, ecce lux mundi tandem effulsit, ecce lux mundi tandem aduenit, quae longo tempore non sine maximo omnium gentium dolore latuit. Quae lux adeo clara, adeo splendida, adeo potens est ut omne oculorum meorum acumen intuenti mihi suis radiis eripiat, auditum minuat, linguam dicenti torpere, mentem omnem prorsus faciat hebescere. Quid dicam, quid agam, quo me uertam, nescio. Nunc nunc uellem, clarissima lux, licere oratoribus quid poetis licet: in principio operum numen aliquod inuocare. Ego enim non unius, aut Phoebi aut Calliopes, sed omnium deorum auxilium implorarem. In his paucissimis quae ciuitatis Eburae nomine celsitudini tuae expositurus uenio. Immo (ut christiane loquar) ad Deum ipsum, omnium rerum conditorem, quem trinum et unum credimus, confugerem. Quinetiam tanta est nunc mentis meae trepidatio, tanta animi caligo, tanta confusio ex claritatis tuae aspectu meis uisceribus exorta ut salua pace nullorum deorum, nullarum dearum memor exstam, sed tantummodo numinis tui incredibilem uigorem pauidus, stupidus, trepidus, territus, et uix pedibus me sustinens mecum ipse contemplor, quandoquidem formosissimi corporis figuram prae immenso splendore (ut desidero) intueri nequeo. Terrent etiam me animi tui inumerae uirtutes, quarum (ut publica fama est) quae magis excellat in te difficile est iudicare. Et certe licet non nihil paratus premeditatusque ad dicendum ueneram, uiso tamen tanti sideris fulgore, statim quid dicendum proposueram, e memoria excidit quid cum perdiderim, me quoque hoc dedecore perditum esse animaduerto.
(Eis que a luz do mundo enfim apareceu, eis que a luz do mundo enfim refulgiu, eis que a luz do mundo enfim aproximou-se, ela que por muito tempo se escondeu, não sem a dor máxima de todos os povos, luz que é a tal ponto clara, a tal ponto esplêndida, a tal ponto potente que toda a acuidade de meus olhos arranca, com seus raios, a mim que a contemplo, diminui minha audição, faz entorpecer a língua, a mim que discurso, faz, em verdade, enfraquecer-se absolutamente toda a minha mente. O que direi, o que farei, para onde me virarei, não sei. Agora mesmo, ó ilustríssima luz, eu desejaria que fosse permitido aos oradores o que é permitido aos poetas: invocar alguma divindade no início de suas obras. Com efeito, eu mesmo não imploraria o auxílio de uma só divindade, do deus Febo ou da musa Calíope, mas o auxílio de todos os deuses, nestas palvras tão breves, que venho expor, a vossa majestade, em nome da cidade de Évora. De outro modo, para falar de maneira critã, eu me refugiaria junto ao próprio Deus, criador de todas as coisas, que cremos ser trino e uno. De que forma é tão grande a trepidação de minha mente agora, tão grande a neblina de meu espírito, tão grande a confusão nascida da percepção de tua claridade em minhas entranhas que, sem dúvida, não me lembrarei de nenhum deus, nem de nenhuma deusa, mas tão somente contemplo eu mesmo, comigo, apavorado, estarrecido, trepidante, atemorizado, e mal me sustendando em meus pés, o incrível vigor de tua divindade, porque não posso perceber o aspecto deste formosíssimo corpo, como desejo, diante deste imenso esplendor. Também aterrorizam-me as inúmeras virtudes de teu espírito, das quais, como já é notório, qual mais se sobressai em ti é difícil de julgar. E certamente, embora eu viesse preparado e premeditado para discursar algo, visto, entretanto o brilho de tão grande estrela, aqui de pé, o que me propusera para discursar escapou-me da memória, quando perdi-me, percebo ter me perdido nesta indignidade).
O exórdio deste discurso de Cataldo caracteriza-se por ser um elogio, mostra-se sobretudo como uma legítima peça de oratória, que literariamente nos mostra uma experiência religiosa, epifânica, sentida na presença da princesa, tratada como um numen, uma divindade. Esta lux clarissima que ofusca o orador, que invoca Febo e Calíope, mostra o brilho da nobreza absolutista da Renascença.
Este discurso possui uma longa continuação, e como era prática na época, seu autor, ao recitá-lo, deveria fazer de memória, e ainda que esteja em latim, todos que possuíssem algum grau de instrução na cidade de Évora poderiam facilmente entendê-lo, como era costume na Renascença.
Os esforços de Cataldo Parísio Sículo, que era funcionário da corte de D. João II, renderam em Portugal, pois no reinado de D. João III, em 1537, a Universidade de Coimbra, depois de uma reforma, pôde iniciar um novo ciclo de formação profissional, igualando-se a outras Universidades.
Em 1548, é fundado o Real Colégio das Artes de Coimbra, um Colégio que preparava alunos para a Universidade. No ano de sua fundação, o Colégio contava com mais de três mil alunos que estudavam várias disciplinas em latim, das quatro da manhã às oito da noite. No Real Colégio das Artes de Coimbra, até no recreio os adolescentes deveriam se comunicar em latim.
Em 1548, ano de fundação deste Colégio, temos a chegada de José de Anchieta a Coimbra, o jovem vindo das Ilhas Canárias acompanhava seu irmão mais velho que iria estudar na Universidade. José de Anchieta matriculou-se no Colégio de Coimbra e iniciou seu curso de Letras e Filosofia, preparatório para a Universidade.
Ingressou, em seguida, em 1551 para a Companhia de Jesus como Irmão, e em 1553, para curar um problema de saúde, foi enviado a um lugar misterioso e novo que os portugeses incluíram em suas rotas comerciais. Em 1553 José de Anchieta chegava ao Brasil, com dezenove anos de idade, desembarcando na Baía de Todos os Santos.
Nossa pesquisa é sobre a obra novilatina de Anchieta e a tradição de estudos clássicos no Brasil, sendo orientada pelo Prof. Doutor Edison Lourenço Molinari, e tem por tema a análise da latinização do Brasil quinhentista no discurso épico anchietano, e a crítica textual das fontes do corpus novilatino de Anchieta. Pesquisamos as fontes dos textos anchietanos, como a editio princeps de 1563 e o Manuscrito de Algorta, do século XVII ou XVIII. Em linhas gerais, este é o trabalho atualmente desenvolvido em nossa Pós-Graduação.
BIBLIOGRAFIA
CARDOSO, Zélia de Almeida. A Literatura Latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RAMALHO, Américo da Costa (editor). Epistolae et Orationes. Edição fac-símile, a cargo de Américo da Costa Ramalho, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1988.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Garnier, 2000.
TANNUS, Carlos Antônio Kalil. Um poeta latino do séc. XVI: Antônio de Cabedo. Tese de doutoramento em Língua e literatura latina apresentada à coordenação do curso de pós-graduação da faculdade de letras da UFRJ. Rio de Janeiro: 1988, 238fls, mimeo..