Multidisciplinaridade nos estudos culturais euro-brasileiros e cooperação interdisciplinar
Aproximações a questionamentos e a uma polêmica da atualidade e em reflexões auto-críticas
Pelos dez anos da morte de Niklas Luhmann (1927-1998) - Reflexões em Witten
Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no ciclo de estudos interdisciplinares pelos 40 anos da Sociedade Nova Difusão - hoje Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - e 10 anos de abertura do centro de estudos da Academia Brasil-Europa em Colonia, sob o patrocínio da Embaixada do Brasil na Alemanha.
Os estudos desenvolveram-se em excursões e retiros preparados pelos seminários "A aproximação científico-cultural na Musicologia: História, Métodos, Tendências, Projetos"(2005), "Conceitos de Diferença na Pesquisa da Música Popular", "Filosofia Intercultural" e "Música na Teoria da Arte" (2005) da Universidade de Colonia 2005 e A.B.E., sob a direção de A.A.Bispo.
Os trabalhos retomaram questões tratadas em seminários dedicados às relações entre Estética, Ética e Estudos Culturais realizados na Universidade de Bonn (2002-2004). Essas preocupações remontam, na tradição dos estudos euro-brasileiros, à cooperação interdisciplinar das disciplinas Estética e Etnomusicologia introduzidas na Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, em 1972.
Impulsos pioneiros de Décio Pignatari, em seminário sobre Arte e Comunicação realizado pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo, em 1968, de influência na orientação da sociedade então constituída, foram considerados à luz de novos desenvolvimentos no decorrer das décadas, salientando-se aqui o pensamento de Niklas Luhmann.
Eventos internacionais referentes ao Brasil e a relações bi-laterais entre países europeus e a América Latina, organizados por fundações de cunho político, por entidades governamentais e não-governamentais, por universidades e outras instâncias podem correr o risco, em geral, de insuficiente consideração de aspectos teórico-culturais.
A problemática e a polêmica em linhas gerais
Conferencistas são em geral convidados para eventos segundo seus elos pessoais, institucionais ou sua proximidade de orientação política, religiosa ou de pensamento com o ideário das diferentes organizações, representando áreas, correntes disciplinares e tradições de pensamento marcadas por disparidade e e até mesmo incompatibilidade.
A inserção dos estudos brasileiros no âmbito dos assim-chamados estudos regionais fomenta uma situação marcada por incoerência irrefletida, na qual uma pluralidade de disciplinas e áreas disciplinares, de correntes de pensamento e de contextos sócio-profissionais impossibilita ou pelo menos dificulta o desenvolvimento das reflexões.
As disciplinas representadas surgem por assim dizer uma ao lado da outra, sem interação mais profunda sob o aspecto metodológico, terminológico ou conceitual.
Nessa situação, na qual representantes de disciplinas específicas surgem sobretudo na sua qualidade de brasileiros ou de especialistas em assuntos brasileiros, jornalistas, economistas, políticos, médicos e técnicos se sentem competentes para tratar e elucidar expressões culturais consideradas como relevantes para a identidade dos complexos culturais envolvidos e para a cooperação internacional.
O resultado é a perpetuação de lugares comuns, de estereotipos, de concepções já há muito discutidas de forma diferenciada, de repetição de hipóteses e modêlos elucidativos superados.
As Ciências da Cultura podem ser as grandes perdedoras de eventos realizados com a boa intenção de fomentar o intercâmbio humano e científico internacional. Esses eventos podem até mesmo prejudicar o desenvolvimento dos estudos culturais mais aprofundados. Estudantes e pesquisadores europeus, que neles participam podem tornar-se multiplicadores de concepções insuficientemente refletidas.
„Inevitabilidade“ do pluridisciplinar
Uma situação de pluridisciplinaridade é, de fato inevitável na situação dos estudos e mesmo devido à natureza dos complexos considerados. O estabelecimento de elos entre as disciplinas representadas é, porém, em geral, deixado para o observador.
Aqui ter-se-ia a necessidade de interferência de teóricos culturais devidamente preparados com competência interdisciplinar, que auxiliem na construção de pontes e na manutenção da necessária profundidade diferenciadora no emprêgo de conceitos e na elucidação de fatos e expressões culturais.
Não se pode evitar, na situação atual, que se solicite às diversas disciplinas que ofereçam a sua contribuição singular a partir de seus próprios objetivos e finalidades, da sua história institucional, de suas perspectivas e procedimentos metodológicos. Sem essa cooperação multidisciplinar não seria possível traçar-se e oferecer panoramas gerais e perfís. Os representantes das diferentes áreas disciplinares ou esferas do saber podem oferecer a sua contribuição para a formação de uma espécie de mosaico como todo a ser considerado e analisado.
Certos complexos temáticos nem poderiam ser tratados de outra forma, ou seja, sem a contribuição das várias disciplinas com as suas distintas perspectivações. Entretanto, o uso de diferentes discursos e vocabulários exige sempre tentativas de aproximação e de compreensão recíproca para que o todo não se revele como de tal forma incoerente que impossibilite visões globais fundamentadas.
Quando se oferece um complexo temático geral a ser tratado sob aspectos particulares pelos representantes de diferentes áreas disciplinares ou esferas do saber, cria-se também aqui em geral uma moldura que possibilita a percepção de um quadro, de um todo.
São em geral elementos culturais que contribuem à configuração desse todo, imagens, símbolos, expressões visuais e sonoras identificadas com o país ou com determinadas regiões. Com isso, porém, contribui-se para a aceitação irrefletida desses elementos culturais.
Na pluralidade das disciplinas renuncia-se por um lado à criação de uma moldura conceitual única ou até mesmo a de escolha de estrategia coerente e refletida. Por outro lado, cria-se um quadro cultural que exprime de antemão uma certa síntese ou sugere uma integração de conhecimentos.
Insuficiência da multidisciplinaridade
Apesar da inevitabilidade da multidisciplinaridade nos estudos dedicados às relações Europa-Brasil, ela não é suficiente para o desenvolvimento satisfatório das pesquisas e reflexões. A experiência dos estudiosos particulares, as focalizações especializadas são necessárias, exigem, porém, a orientação teórico-cultural.
Aqui não se trata apenas de estudiosos com formação em várias disciplinas, representantes por assim dizer da multidisciplinaridade e, assim, adequados para a consecução adequada de projetos multidisciplinares. Tem-se a necessidade sobretudo de teórico-culturais de formação específica e de competência interdisciplinar, familiarizado também com esforços e tendências metadisciplinares.
Transdisciplinaridade e crossdisciplinarity
Um dos aspectos da discussão da multidisciplinaridade no âmbito dos estudos culturais em contextos internacionais diz respeito à transdisciplinaridade.
Este conceito, embora entendido com diferentes conotações, implica na transpassagem de limites e fronteiras disciplinares. Não deveria ser empregado no sentido negativo do termo, significando a transgressão indevida de áreas de competência e de especialização, mas sim o processo refletido metodologicamente e competente de superação de fronteiras.
Infelizmente, é no sentido negativo de transgressão indevida que se constata a atuação interdisciplinar nessa área de estudos.
Tentativas de transpasse de fronteiras disciplinares não servem apenas à aproximação de intelectuais ou ao diálogo supra-disciplinar. No seu aspecto mais profundo, deveria partir do pressuposto de que, sob determinados aspectos, as fronteiras existentes são artificiais ou inadequadas.
Sob o aspecto teórico e metodológico, o procedimento transdisciplinar deveria poder basear-se em princípios teóricos, conceituais e metodológicos mais abrangentes e aptos a serem aplicados nas diferentes disciplinas. Isso poderia ser visto, por exemplo, na aplicação de concepções teológicas, filosóficas e teóricas como caminho transdisciplinar, quando, por exemplo, se trata de concepções de fundamentação religiosa em várias disciplinas ou de determinados edifícios teóricos políticos e sociológicos.
Esse caminho já foi percorrido em vários sentidos em eventos da A.B.E. Tanto a consideração de concepções religiosas no sentido transdisciplinar marcou a realização de simpósios e de seminários e mostrou a sua produtividade na interpretação do sentido de expressões culturais transmitidas no contexto da história colonial e missionária. Tem-se procurado, por outro lado, de forma cada vez mais intensa, aplicar-se critérios éticos de respeito à vida na consideração transdisciplinar.
Deve-se considerar, nas reflexões dirigidas à transdisciplinaridade, também a produção de conhecimento não confinada a disciplinas. O saber pode assim também ser produzido por organizações que não se inserem no edifício universitário. Ter-se-ia assim uma produção por assim dizer horizontal de conhecimentos, através das disciplinas, e uma vertical, produzido por grupos e indivíduos. Transdisciplinaridade implicaria, nesse sentido, na interação de conhecimentos gerados pelas disciplinas e por processos não disciplinares.
Um outro aspecto que necessitaria ser considerado mais pormenorizada nos estudos culturais em complexos euro-brasileiros é o designado pelo termo crossdisciplinarity. Ter-se-ia aqui um procedimento que surge como muito mais freqüente do que normalmente se supõe. O cruzamento de elos disciplinares com o intuito de exposição de um tema, de uma expressão cultural ou de uma situação a partir de critérios e de termos de outro contexto é comum nos estudos culturais regionais e, em particular, nos estudos em contextos euro-brasileiros. Freqüentemente, constata-se por exemplo intuitos de consideração política da história literária ou artística através do emprêgo de concepções e argumentos da politologia, como exemplificados em números anteriores desta revista. Procedimentos de disciplinaridade cruzada podem ocorrer paralelamente e conjuntamente àqueles propriamente transdisciplinares e metadisciplinares. O aguçamento da capacidade de percepção dos diferentes intuitos e procedimentos deveria vir a constituir uma preocupação dos envolvidos.
Os debates deverão ter prosseguimento.
Anotações sumárias do discutido. Grupo Redatorial
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: https://brasil-europa.eu
A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.