Portugueses no Mar do Sul. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

A história cultural dos países descobertos e colonizados pelos europeus é estreitamente relacionada com as viagens de descobrimento e exploração. Esse é o caso do Brasil, onde não se pode estudar os primeiros anos de sua história sem a consideração da viagem de Pedro Álvares Cabral e daquelas que a seguiram. Também os séculos posteriores, em particular sob o aspecto das pesquisas científicas e das observações culturais realizadas por viajantes estrangeiros no Brasil, exigem para o seu estudo a consideração dos empreendimentos marítimos europeus, agora sobretudo de países não-ibéricos, em particular da Grã-Bretanha. Os estudos culturais dos países encontrados e investigados pelos europeus necessitam, assim, considerar os antecedentes e pressupostos dos empreendimentos marítimos que determinaram a sua história, os seus objetivos e inserções em contextos políticos, comerciais e religiosos, assim como as possibilidades técnicas e o estado de conhecimentos das respectivas épocas.

Por parte das nações de onde partiram as viagens de descobrimento e, posteriormente, aquelas de exploração, a consideração da própria história naval e da epopéia marítima em que se envolveram representa importante parte dos estudos da própria cultura. A memória dos grandes feitos desempenhou e desempenha papel significativo na consciência histórica de várias nações européias, desempenhando papel relevante em questões de identidade nacional. Torna-se compreensível, assim, que nesses países os estudos marítimos e da história da navegação tenham-se desenvolvido de forma particular e que possuam instituições especializadas, museus, arquivos, programas de pesquisas e órgãos de publicação dedicados à história dos descobrimentos e a ramos afins dos conhecimentos, da cartografia e de uma ciência dos mares em geral. Este é o caso de Portugal, que ocupa uma posição de extraordinária relevância nesses estudos e para o qual as grandes viagens de Descobrimento de seus navegadores do passado marcaram de forma particularmente profunda a história cultural da nação, a sua imagem, a sua simbólica e mesmo reflexões filosófico-culturais.

Pelas próprias circunstâncias da inauguração de seu período histórico, o Brasil insere-se primordialmente no contexto das navegações portuguesas. Os estudos da náutica e da história dos Descobrimentos desenvolvidos em Portugal surgem naturalmente como principais referências, determinando cooperações e intensificando perspectivações próprias do contexto respectivo. Apenas gradativamente passa-se a considerar as relações do Brasil com a história naval de países europeus não-ibéricos, entre êles da França e da Grã-Bretanha, com os seus centros de estudos, as suas bibliotecas, as suas exposições e publicações.

Uma situação distinta é aquela do Pacífico. Na grande maioria dos países dessa esfera do globo a história dos Descobrimentos é relacionada sobretudo com as viagens de navegação de países não-ibéricos. As referências aqui são encontradas na história náutica de outros países, sobretudo da França e da Grã-Bretanha, com as suas respectivas focalizações. Os nomes aqui rememorados são outros daqueles mais conhecidos dos estudos luso-brasileiros. Portugueses e brasileiros se surpreendem quando deparam com nomes celebrados de vultos de navegantes que nunca ou pouco ouviram falar, com uma história de feitos marítimos que apresentam outras valorações, e nas quais os grandes nomes que conhecem ocupam apenas posições marginais ou são silenciados. Essa situação é compreensível, uma vez que a história colonial da região do Pacífico, em especial da Polinésia, iniciou-se quase que três séculos após aquela do continente americano. Desenrolou-se em outra fase da história européia e suas repercussões globais, quando o equilíbrio de poderes internos na Europa era outro, quando a liderança na exploração dos mares passara à França e à Inglaterra. O Brasil e a Polinésia tiveram o início de sua história colonia em diferentes fases da história das navegações européias e inserem-se assim em outros contextos, possuindo diferentes referências.

O desenvolvimento de estudos culturais em contextos globais exige, porém, que se superem limitações determinadas por visões nacionais, também na história náutica, ou melhor, essas perspectivas e delimitações devem passar a ser vistas como objeto de considerações da própria história cultural. Se o Brasil não pode esquecer os empreendimentos navais franceses, como aqueles do projeto da "França Antártica", nem inglêses do século XIX, entre outros, os estudos do Pacífico não podem silenciar a respeito dos feitos ibéricos, em particular portugueses nessa esfera do globo. A consideração mútua desses feitos que não pertenceram à história determinada pela respectiva potência colonial que predominou representa um passo na superação dos condicionamentos histórico-culturais que delimitam os estudos das navegações.

Pedro Fernandes de Queirós (1555-1614)

Pedro Fernandes de Queirós (também Pedro Fernández de Quirós), que chegou a ser cognominado de Colombo da Austrália (Otto Kübler-Sütterlin, Kolumbus Australiens: Das Wagnis des Pedro Fernandes de Queiros, Freiburg: Karl Alber 1956), é o principal vulto que pode fazer recuar a história dos descobrimentos oceânicos e aproximá-la de um contexto em que se inserem as regiões do Atlântico e os países sul-americanos. Os feitos de Pedro Fernandes de Queirós decorreram à época da União Pessoal de Portugal e Espanha, sendo compreensível, assim, que o seu nome possa ser inserido na história das navegações espanholas e nas portuguesas.

Embora português, tomou parte da segunda expedição de Alvaro de Mendana de Neyras, que em 1595 partiu do Peru em direção das ilhas Marquesas e das Salomões, então denominadas de ilhas de Santa Cruz. Com o falecimento de Mendana de Neyras, assumindo a liderança da expedição, retornou ao Peru pelas Filipinas.

Em 1605, Pedro Fernandes de Queirós partiu novamente do Peru em direção ao sul do Pacífico, na nave San Pedrico, comandada por Luiz Vaéz de Torres. Esse empreendimento,  realizado por ordem do Vice-Rei do Peru, levou ao descobrimento de uma série de ilhas (Tuamotu).

No início de 1606, a 10 de fevereiro, descobriu-se a ilha que passou a ser designada por Conversion de San Pablo, mais um testemunho da prática de designação de terras segundo festas do calendário religioso (festa de São Paulo a 25 de janeiro). A identificação dessa ilha de São Paulo levantou questões entre os pesquisadores. Supôs tratar-se do Taití, chegando-se, porém, à conclusão que deveria ter sido antes a ilha Anaa. Seja como for, tratando-se aqui também de uma ilha pertencente à atual Polinésia Francesa, recua-se o seu descobrimento e valoriza-se a prioridade das viagens ibéricas e latino-americanas  num contexto hoje marcado sobretudo pelos nomes de Bougainville e Cook.

A Pedro Fernandes de Queirós caberia ainda um outro ato pioneiro: o de ter constatado a amabilidade e a beleza do polinésio, precedendo assim como observador aqueles que levariam à difusão, na Europa, da imagem paradisíaca da região, em particular do Taiti. Essa constatação de Queirós pode ser testemunhada no fato de ter designado uma das ilhas descobertas pelo nome de  "Gente Hermosa", que até hoje não pode ser identificada com segurança, possivelmente Rakahanga ou Olosenga.

Significado sob a perspectiva católica

Pedro Fernandes de Queirós estava também à procura do suposto continente do sul, marcado nos mapas como terra australis incognita, como o faria também James Cook décadas depois. Supôs tê-lo encontrado na ilha que denomionou de La Austrialia del Espiritu Santo, alcançada a 3 de maio de 1606, o atual Vanuatu, onde chegou a fundar uma colonia, designada como Nova Jerusalem.

Por essa razão, cabe a êle, de fato, a designação da Austrália, em geral atribuída a Matthew Flinders. Essa prioridade foi defendida por alguns estudiosos australianos, sendo compreensível que sobretudo os católicos da Austrália tenham procurado salientar o fato de ser o nome do país não apenas resultante de uma concepção geográfica, mas sim religiosa, relacionada com Pentecostes. Um dos maiores defensores dessa tese foi o Cardeal Francis Moran, Arcebispo de Sydney (1884-1911). A valorização de Queirós desempenhou papel singular na história cultural sob a perspectiva católica da Austrália, dando origem a expressões literárias, entre elas o poema "Captain Quirós", de James McAuley (1917-1976). Essa valorização de Queirós possibilitava fundamentar historicamente a precedência do Catolicismo na história da Austrália, dando raízes mais antigas à missão católica na cristianização do Pacífico e relativando a sua evangelização sobretudo pelo Protestantismo europeu.

Queiróz retornou em 1606 ao Peru, em 1607 a Madrid. De volta ao continente americano, faleceu em 1614 no Panamá.

Dimensões mais amplas dos estudos da navegação

As questões aqui tratadas demonstram os estreitos vínculos da história das navegações que levaram aos descobrimentos com a história da colonização e da cristianização. A superação de contextos coloniais que condicionam a história cultural nos seus elos recíprocos com a história náutica não bastam, porém, para superar delimitações decorrentes de uma perspectiva centralizada nos Descobrimentos europeus. O próprio desenvolvimento da pesquisa da história das navegações tem despertado a atenção de forma crescente ao fato de que não apenas os europeus dominaram os mares, realizaram grandes descobertas e criaram rêdes de contatos e comércio, mas sim também, entre outros, e há muito, chineses e árabes. Para os países que tiveram a sua história colonial determinada pela chegada dos europeus, a conscientização de que os povos que neles habitavam e que foram transformados culturalmente pelo contato já possuíam conhecimentos e práticas de navegação, em muitos casos altamente desenvolvidos, assume um papel relevante na reorientação da própria história cultural. Considerar a história da náutica no seu todo, sob enfoques ao mesmo tempo sistemáticos e contextualizados, permite inserir a história das navegações européias, com todas as suas consequências, em contexto mais amplo, relativando-a sob vários aspectos, submetendo-a outro sistema referencial. Grave empecilho para o desenvolvimento desses estudos, porém, é o da divisão disciplinar assimilada da Europa. Também nos países extra-europeus, o estudo das técnicas de navegação dos povos que ali já viviam antes da chegada dos europeus cai antes na área da etnologia, sendo os estudos históricos e histórico-culturais antes marcados pelos feitos dos Descobrimentos. Há, portanto, um problema teórico-científico que necessita ser discutido e solucionado, e que torna-se evidente de forma particularmente sensível a partir da história náutica.

Para o universo insular da Polinésia, a consideração do alto desenvolvimento da arte e da técnica do navegar em tempos anteriores à chegada dos europeus impõe-se de forma especial. Somente esse elevado nível da navegação pode explicar a difusão humana e os contatos a longa distância, e esse nível foi também constatado pelos marinheiros europeus. Hoje, salienta-se até mesmo que sob muitos aspectos os barcos dos polinésios superavam aqueles dos europeus nas soluções técnicas que apresentavam para as condições locais, seja na forma das velas, seja no uso do corpo duplo. Em museus e centros culturais, as embarcações polinésias são, assim, apresentadas ao lado de afamadas naves que participaram dos grandes feitos das descobertas e da colonização européia.

Exemplo: Museu marítimo de Bora Bora

A consideração conjunta da arte da navegação das populações nativas e da história da navegação européia parece difundir-se na consciência dos polinésios e dos europeus que se integraram na região. Um testemunho dessa tendência é o Museu marítimo de Bora-Bora, um pequeno museu particular, modestamente instalado, que apresenta uma considerável coleção de modêlos de embarcações locais e navios históricos. A apresentação paralela dos modêlos, ainda que sem maiores pretensões científicas, dirige a atenção do observador ao cotejo de soluções técnicas, a estruturas e formas, a aspectos sistemáticos, enfim. Independentemente de debates sobre a necessidade de cooperação interdisciplinar de enfoques etnológicos e históricos, a transformação de perspectivas parece estar ocorrendo de forma por assim dizer espontânea, no âmbito de iniciativas de amadores e com função lúdica.

Exemplo: Reconstrução de embarcações em Maui


A constatação das qualidades técnicas das embarcações polinésias e até mesmo a sua superioridade com relação às ocidentais, pelo menos para as condições locais, leva a esforços de reconstruções. Digno de nota é que tais reconstruções não são feitas tanto com interesse museal ou como expressão de um tradicionalismo cultural, mas sim para o emprêgo em viagens, competições esportivas e para fins turísticos. Exemplos excepcionais dessas reconstruções podem ser encontrados em Maui, no Hawaii. Constroem-se aqui embarcações polinésias de grandes dimensões e com extraordinário cuidado artesanal com base tanto em registros históricos deixados pelos observadores do passado como em conhecimentos obtidos da observação empírica de tradições.

Exemplo: Centro Cultural Polinésio, Oahu

Um outro tipo de questões levanta-se a partir dos modêlos de embarcações expostos no Centro Cultural Polinésio do Hawai. À primeira vista, a apresentação dos barcos, em vitrines, sugere práticas museológicas conhecidas de tradicionais museus marítimos e etnológicos. Percebe-se logo, porém, que os modêlos são utilizados no âmbito de uma concepção geral da exposição marcada por intuitos de recreação. Elementos culturais da Polinésia são apresentados de forma a serem conhecidos em atmosfera de diversão. O objetivo dessa concepção evidencia-se em filme que se apresenta aos visitantes: as viagens marítimas dos polinésios, que os levaram a formar a população de tantas ilhas e alcançar regiões distantes, inclusive a a alcançar as costas sul-americanas, como é sugerido, são inseridas numa concepção mais ampla de conotação antropológica: a de uma expansão inerente ao homem que leva à ocupação da terra e que seria derivada da união do homem e da mulher (!). Torna-se claro, aqui, que as navegações dos polinésios, apesar de todas as sugestões etnológicas, são interpretadas a partir de uma doutrina baseada no casamento e na familia dos Mórmons. Sob o ponto de vista dos estudos culturais, tem-se assim uma situação singular. Sabe-se, que no passado, os europeus, com base em antigas concepções e imagens, utilizaram-se do símbolo do navio, sobretudo na tensão tipológica arca/barca da igreja. Esse antigo simbolismo encontra, na Polinésia, não apenas o seu emprêgo no âmbito dos esforços de acomodação cultural ou "inculturação" do Catolicismo, mas também uma reinterpretação com base em edifício de concepções centralizado em noções de eternidade do casamento.

Impulsos para o Brasil

O desenvolvimento dos estudos náuticos e suas aplicações na Polinésia oferece possibilidades de cotejos e pode oferecer impulsos para o Brasil. Ainda que expressões e técnicas tradicionais de navegação tenham sido consideradas por pesquisadores culturais e expostas em museus e exposições de folclore, ainda que sobretudo a jangada haja sido há muito levada em consideração para fins esportistas, pode-se constatar um direcionamento da atenção sobretudo à história da navegação relacionada com os descobrimentos e as viagens de exploração. A consideração e a valorização da navegação indígena, sobretudo, parece estar muito aquém àquela da Polinésia. Seria compreensível se as embarcações indígenas não apresentassem qualidades técnicas comparáveis àquelas de um mundo insular como o polinésio. Entretanto, um país de grandes rios, de todo um universo fluvial, em particular no Amazonas, exigiu sempre o domínio das águas e das correntezas.

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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.)."Navegações na história cultural e história cultural das navegações. Do descobrimento português do Mar do Sul e suas dimensões". Revista Brasil-Europa 125/13 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Portugueses_no_Pacifico.html


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/13 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2600


©


Navegações na história cultural e história cultural das navegações
Do descobrimento português do Mar do Sul e suas dimensões




Do programa da Academia Brasil-Europa Atlântico-Pacífico de atualização dos estudos culturais transatlânticos e interamericanos
Ciclo de estudos na Polinésia Francesa e no Hawai, 2010
sob a direção de A.A.Bispo

 
































  1. Museu Naval de Bora Bora (8), Centro Cultural da Polinésia, Hawai (8).
    Titulo e texto: barca em Maui.
    Fotos Hülskath 2010©

 

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