Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
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Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/6 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico
Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2977
Nossa Senhora do Rosário de Ribeira Grande
De confraria do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa à África e ao Brasil
Monumento da história cultural de africanos cristianizados
Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses
Uma das poucas construções históricas não de todo arruinadas de Ribeira Grande, a "cidade velha", antiga capital de Santiago, é a de Nossa Senhora do Rosário.
Edificada em 1495, cinco anos portanto antes do Descobrimento do Brasil, adquire um particular significado na história da arquitetura da expansão portuguesa.
Situando-se sôbre uma elevação sôbre rua Carrera, é considerada por alguns como a mais antiga igreja colonial do mundo e a rua que a ela conduz, a rua Banana, como a primeira rua de urbanização portuguesa nos trópicos.
Essas duas afirmações, porém, dificilmente podem ser corroboradas, sobretudo a primeira, uma vez que já outras igrejas já haviam sido levantadas anteriormente em ilhas atlânticas alcançadas pelos europeus, como no caso das Canárias. Também aqui os assentamentos nas ilhas, que levaram a conflitos, assimilações e escravizações de nativos, foram acompanhados por atividades missionárias e representaram ações coloniais.
Esse fato, porém, não minimiza o significado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Ribeira Grande. Essa sua importância pode apenas ser avaliada nas suas reais dimensões considerando-se o significado da devoção ao Rosário e do papel que desempenhou no processo de transformação cultural de povos atingidos pelos cristãos pela conversão e catequese.
Apróximação à apreciação do significo da igreja a partir da prática do Rosário
Os estudos que vêm sendo desenvolvidos em outros contextos e regiões contribuem para compreender o sentido da prática do Rosário no contexto geral do intenso culto mariano em particular na cultura portuguesa e da função da Igreja do Rosário de Ribeira Grande no contexto caboverdiano.(Veja e.o.https://revista.brasil-europa.eu/135/Cultura-luso-siamesa.html; https://revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Rosario.html; https://revista.brasil-europa.eu/136/Medievalismo-no-Pacifico.html)
A Igreja do Rosário de Ribeira Grande testemunha, pelas suas remotas origens, a força da devoção mariana no Cabo Verde já nos primórdios de sua história. Esse significado do culto a Maria nessas ilhas atlânticas alcançadas em meados do século XV explica-se de início pela intensidade da devoção e práticas marianas entre os homens de mar que se lançavam aos perigos do Oceano em direção às distantes terras.
Antes de abandonar os seus portos, dirigiam-se às igrejas para cantar o Salve, louvando Maria e pedindo a sua proteção, como se sabe de vários registros referentes àqueles que partiam para outros continentes.
Essa intensidade do marianismo entre marinheiros - assim como as suas expressões - exige para ser compreendida não apenas a consideração de seus fundamentos teológicos como também de concepções e imagens de remotas origens transmitidas pela tradição e de práticas religiosas fomentadas pelos religiosos, em particular também nas suas ações de missão interna em círculos mais modestos da população.
Esses marinheiros, homens simples do povo, provindos do mar ou das regiões rurais, eram portadores de tradições e encontravam-se êles próprios inseridos em processos interno-missionários postos em vigência pelas ordens voltadas ao povo, entre outros a dos pregadores: os Dominicanos.
A Irmandade de Nossa Sra. do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa e o culto na África
O rei português da época, D. João II° (1455-1495) - o "Príncipe Perfeito", tinha devoção por Nossa Sra. do Rosário e promoveu o seu culto e a irmandade respectiva na qual se organizam os africanos que viviam em Portugal - a confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que tinha a sua sede no mosteiro de São Domingos de Lisboa (Veja https://revista.brasil-europa.eu/140/Memorial-da-Tolerancia.html).
Essa irmandade de escravos e libertos já cristianizados tomaram a si o seu fomento entre os africanos da Mina e da Guiné. Um Alvará dado aos mordomos e confrades da confraria, a 14 de Julho de 1496, permitiu a irmandade mandar e dar círios e recolher esmolas nas caravelas que iam à Mina e aos rios da Guiné. Esse Alvará seria confirmado posteriormente por D. Sebastião em 19 de Junho de 1574. As esmolas recolhidas nas naves deviam ser entregues ao capitão da caravela perante o seu escrivão, anotadas em livre e entregues novamente aos mordomos e confrades perante o respectivo escrivão. O capitão deveria ter conhecimento do uso dado ao dinheiro recolhido. (Portugaliae Monumenta Africana II, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, CNCDP, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Doc 152, págs. 260-261).
Condições naturais e sociais do culto do Rosário em Ribeira Grande
As expressões do culto mariano eram - e são - marcadas por referências e associações com o mundo natural, em particular com as águas, elevações e luz. Práticas festivas marianas realizavam-se há séculos sobretudo junto a fontes, rios e em praias junto ao mar, igrejas situam-se frequentemente em locais elevados, colinas e montanhas, de ondem fiéis podiam descortinar paisagens cortadas por rios correndo ao mar.
Essas constatações podem ser consideradas nas suas equivalências a concepções marianas, marcadas que são por um movimento ascensional, o da primeira dos mortais a ser elevada aos céus na sua Assunção. As alturas dessas elevações naturais - correspondendo às alturas das quais a Assunta dos céus vem em socorro aqueles que se encontram em viagem pelos mares da vida - os cristãos sentiam-se em esfera protegida, elevados dos perigos das águas.
A ilha de Santiago foi, no passado remoto do século XV e início do XVI, mais do que qualquer outra povoada e cultivada pelas condições favoráveis possibilitadas pelas suas muitas ribeiras.
Dentre as suas ribeiras, sobressaia-se a de Ribeira Grande, a maior delas, como a sua denominação indica. Como local de praia e porto na sua confluência de rio e mar, conhecido pela profusão de peixes e tartarugas habitado por pescadores e frequentado por marinheiros.
A igreja situa-se não distante da praia e ao lado ribeira, no início da elevação do terreno aos pés dos montes que rodeiam a pequena baía. A localização da igreja não se caracteriza porém apenas pela sua proximidade da ribeira e da sua situação elevada, mas sim também pelo fato de encontrar-se do outro lado do rio relativamente à área central, marcada esta pelo pelourinho. Ela situa-se assim do lado oposto àquele que teve, no passado, na Misericórdia um de seus mais representativos edifícios. Contrapõe, também, à catedral posteriormente levantada e situada em posição muito mais elevada.
Essa disposição urbana indica estar a Igreja do Rosário do lado de fora do núcleo urbano mais central, períférica na sua situação "fora de muros" e, ainda que em elevação, em nível inferior. Essa posição na ordenação de espaços pode ser explicada pela função da Igreja do Rosário e a posição social de seus fiéis.
Justamente nessa função da igreja do Rosário reside também o principal significado do monumento arquitetônico caboverdiano. Se os africanos que eram levados a Portugal organizavam-se no Rosário em Lisboa, essa igreja de Ribeira Grande parece ter sido a primeira para os escravos africanos fora da Europa.
Esse papel de extraordinário significado da igreja do Rosário na criação de sentimentos de comunidade - e solidificação de identidade cristã - entre escravos provenientes de diferentes regiões do continente explica-se pelo emprêgo já de secular tradição da prática do Rosário para fins de espiritualização de fiéis, sobretudo daqueles marcados por uma vida de trabalho e com preocupações e aflições.
A oração repetida de fórmulas oracionais e cantos, em particular nas ladainhas, contribuia a uma elevação de ânimos, de mente e de alma, ao alcance de uma paz interior. Na linguagem teológica, os fiéis eram elevados a uma esfera de Maria, participando interiormente de uma situação acima do mundo de atribulações, simbolicamente daquele onde tudo flui, das águas com as suas correntezas e tormentas.
Que a linguagem figurada transmitida pelas orações marianas, em particular nas ladainhas, tiveram influência no universo cultural dos africanos de Ribeira Grande, isso pode ser deduzido da própria arquitetura da igreja.
Leitura da igreja a partir de concepções do Rosário
Assim como em outras regiões atingidas pelos portugueses, a igreja do Rosário apresenta traços de fortificação que não podem ser explicados nem por necessidades construtivas nem por exigências estratégicas.
Se as poucas e pequenas janelas, se os muros de apoio laterais ainda poderiam ser entendidos como resultados de insuficientes possibilidades técnico-construtivas, a torre lateral do Rosário não pode ser assim explicada com características que sugerem um burgo nas suas dimensões e formas.
Assim como a posterior igreja do Rosário em Goa com a sua fortificada torre central de entrada (Veja https://revista.brasil-europa.eu/131/Goa-Rosario.html) a torre lateral da igreja de Ribeira Grande indica antes a vigência de imagens tipológicas de Maria como "Torre de David" e outras associações similares. Neste sentido, o próprio adro da igreja de Ribeira Grande poderia ser entendido como "horto fechado" da linguagem de imagens.
Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Nossa Senhora do Rosário de Ribeira Grande. De confraria do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa à África e ao Brasil. Monumento da história cultural de africanos cristianizados". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/6 (2013:2). https://revista.brasil-europa.eu/142/Ribeira-Grande-Rosario.html