Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/4 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2975




Análise de imagens da tradição humanística referente a Cabo Verde
As ilhas Hespéridas e as Gorgades na geografia simbólica da Antiguidade
nas suas relações com visões do mundo do homem
Do Tipo do mulher que chora na antiga cultura


Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Ao considerar-se as ilhas do Cabo Verde, a atenção é dirigida exclusivamente ou quase que exclusivamente a desenvolvimentos iniciados com as viagens dos Descobrimentos do século XV, a seus contextos, às suas consequências, a problemas resultantes e a expressões culturais que através deles se explicam.

A visão historiográfica é, assim, marcada por uma consciência de que aqui se trata de contextos a serem estudados somente a partir de suas primeiras fontes documentais de fins da Idade Média e início da Era Moderna.

Esse enfoque sugere que todo o passado anterior, sem indícios em fontes dessa época, seria ante-histórico, apto apenas a ser desvendado por indícios nos documentos ou por esforços especulativos.

Nesse sentido, porém, o Cabo Verde difere de um país como o Brasil, exigindo a consideração de outros aspectos na discussão historiográfica que vem sendo desenvolvida na atualidade dos estudos euro-brasileiros (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html).

As ilhas do Cabo Verde na Antiguidade e vigência transepocal de imagens

Por demais esquecido é o fato de que as ilhas do Cabo Verde foram conhecidas na Antiguidade. Antigos autores a elas se referem e que até mesmo oferecem dados quanto ao tempo de navegação necessário para alcançá-las da terra firme ou dali a outros arquipélagos.

Mesmo que não haja indícios de terem sido pisadas ou ainda menos povoadas, as ilhas faziam parte dos conhecimentos do mundo antigo, foram consideradas em textos e associadas com imagens e ocorrências de central significado na mitologia. Correspondendo à escrita dos céus estrelados, essas concepções e imagens atravessaram os séculos, uma vez que os mareantes se norteavam pelas constelações. (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Notre-Dame-de-la-Garde.html)

O Cabo Verde pertenceu assim ao repertório de saber do antigo mundo, não foi na verdade descoberto e sim redescoberto, e esse redescobrimento decorreu sob o pano de fundo de conhecimentos e imagens que, ainda que vagos, pertenciam a um edifício de vísão do mundo e do homem coerente, originado da observação do mundo natural do hemisfério norte e que tinha a sua correspondência na grafia do céu estrelado.


A designação do arquipélago nas suas referências mitológicas ainda se manteve na cartografia de épocas posteriores à época do seu novo descobrimento, mesmo em contexto cultural não-latino, como o exemplifica o Atlas Major de Joan Blaeus, publicado em Amsterdam, em 1662 (Blaeu der Grosse Atlas: Die Welt im 17. Jahrhundert, ed. John Goss, Londres: Studio 1990; Viena: Paul Neff 1990), onde é anotado como Cabo Verde olim Hesperides sive Gorgades.

O "mito hesperitano" sob a perspectiva literária e a perspectiva dos Estudos Culturais

Manuel Ferreira, no seu prefácio à reedição de Claridade, trata de um "mito hesperitano ou arsinário" como elemento endógeno, como parte desconhecida do subtexto cultural e literário da tradição literária caboverdiana, uma proposta que endereçou pela primeira vez ao Colóquio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, realizado em Paris, em 1984.

Os principais exemplos que oferece desse mito são o Jardim das Hespérides (1929) de Pedro Monteiro Cardoso, formado no antigo Seminário de São Nicolau, a "Atenas Caboverdiana", assim como poemas e versos de José Lopes. (Manuel Ferriera, "O fulgor e a esperança de uma nova idade", Claridade, Linda-a-Velha: África, Literatura, Arte e Cultura, 1986, XIX ss.)

Segundo a sua interpretação, esse fenômeno da literatura caboverdiana manifestaria uma uma instabilidade, uma insegurança dúplice quanto a sentimentos pátrios da época colonial, servindo para preencher com o mito uma espécie de vazio, de insatisfação histórica. O uso do mito hesperitano não teria sido naqueles autores "um divertimento de circunstância, mas sim algo que lhes preencheu muito das suas preocupações culturais e criativas" (pág. XLIV)

Essa proposta de interpretação, porém, em si literária, não esgota as possibilidades de análise da vigência de referências e imagens míticas no pensamento caboverdiano. Uma aproximação da perspectiva dos Estudos Culturais consideraria antes a permanência e transformações de antigas concepções e imagens na formação de cunho humanístico de caboverdianos e na linguagem de imagens de expressões culturais.

Tendo sido esse saber antigo cristianizado e referenciado segundo a história bíblica no decorrer dos séculos, determinou maneiras de ver e interpretação de sentidos de fatos e ocorrências vividas pelos novos descobridores, o que se manifesta da forma mais evidente na designação das ilhas segundo festas do ano religioso.

A consideração da inserção do arquipélago do Cabo Verde nesse edifício de concepções e imagens de remotas origens não tem apenas significado para estudos de obras de erudição ou de literatura. Elas continuaram a vigorar subliminarmente - como analisado em outros contextos - em expressões culturais do calendário festivo, na linguagem de imagens de tradições de festas de santos.

Essas expressões festivas do ciclo do ano religioso marcaram por séculos processos culturais e a formação daqueles que dali partiram como escravos ou imigrantes, exigindo, assim, com os pesos e as especificidades que ali obtiveram, serem consideradas nas suas dimensões demopsicológicas e determinadoras de identidade.

Uma leitura atenta dos exemplos citados por Manuel Ferreira indicam interações de narrativas míticas no pensamento de Pedro Cardoso e José Lopes, assim como interpretações das narrativas míticas que não podem ser corroboradas. Os versos desse último indicam de fato, como o autor considera, a a vigência da imagem da Atlântida, da qual teriam restado, após a submersão, as ilhas hesperitanas, o que representaria a história original das ilhas.

Nessa visão de José Lopes, constata-se a interação de duas correntes narrativas, a da Atlântida e aquela referente às Hespéridas. Nos versos de Pedro Cardoso, o mito das Hespéridas e apresentado em liberdade poética sem maior distinção daquela do jardim segundo elas designadas, sugerindo, assim, que o mesmo localizara-se nas ilhas. Cria-se, assim, uma situação dificilmente explicável de discordância entre concepções paradisíacas e a natureza das ilhas.

Referem lendas antigas
Que lá nos confins do mar
As Hespérides ficavam
E o seu formoso pomar

Paraíso de ventura
Que de encantos lá havia!
Era a terra mais donosa
Que a rosa do sol cobria

Atualidade da consideração de antigas imagens

A consideração da inserção do Cabo Verde no patrimônio cultural herdado da Antiguidade assume particular atualidade com a celebração de Marseille como Capital Européia da Cultura 2013.

Como considerado no ciclo de estudos preparatórios desenvolvido em 2012 (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Protis.html), Marseille assume particular significado para análises de fundamentos de processos culturais por remontar a uma fundação de gregos insulares no Ocidente e constituir porto de partida e de chegada de empreendimentos marítimos que ultrapassaram o Mediterrâneo e atigiram o Atlântico, tanto a norte como a sul (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Euthymenes.html).

Conotações negativas do oceano ocidental e de um sul em direção ao Tenebroso

O edifício de visão do mundo e do homem transmitido do Leste a Oeste, na linguagem de imagens gregas e posteriormente nas suas reinterpretações a partir das Escrituras e da história eclesiástica, correspondia a uma perspectivação geográfica determinada pela observação da natureza a partir de uma posição determinada.

Nessa visão do mundo, o oceano ocidental - o Atlântico - adquiria conotações negativas, uma vez que correspondia à noite no dia - onde o sol se punha - ou ao inverno no ciclo do ano do Hemisfério Norte. Compreende-se, assim, que idéias tenebrosas de monstros, abismos e perigos de toda a ordem não apenas eram resultado da experiência real de navegantes, mas sim de concepções geográficas derivadas do complexo da visão do mundo e do homem gravado nos céus.

Ponto de partida para a consideração das ilhas atlânticas nas suas inserções nesse edifício de imagens de remota proveniência é, assim, a conotação negativa do oceano ocidental a partir de uma visão referenciada pelo Leste.

Não se surpreende, assim, que as figuras mitológicas a serem consideradas revelem atributos sinistros, aterrorizantes ou tristes, criando uma esfera marcada pela lamentação, pelo choro, por sensações de reclusão, expulsão e abandono.

Ao mesmo tempo, porém, o próprio sistema que referencia a geografia com as observações do dia e do ano implica que da noite ressurge o dia, que do inverno inicie-se a primavera. Essas imagens sinistras relacionadas com o oceano ocidental possuem assim um potencial de expectativa, de saída ou de levantamento, de um vislumbre de porvir luminoso. É esse pano de fundo que permite uma aproximação interpretativa ao complexo mitológico relacionado com o Cabo Verde.

Outro aspecto a ser considerado de início é que tanto mais a sul, mais negativas se tornam as imagens. A esse fato deve-se dar atenção ao comparar-se as diferenças quanto a designações e correspondentes associações entre as Canárias e as ilhas mais a sul.

As primeiras, acima do Trópico de Câncer, eram chamadas de Afortunadas, as do Cabo Verde, entre o Trópico de Câncer e a linha do Equador eram as Gorgades. Ainda que por vezes também denominadas de Hespéridas, estas eram segundo a tradição localizadas ainda mais a sul, correspondendo pelo que tudo indica a ilhas do Golfo da Guiné, dizendo respeito neste caso antes a São Tomé e Príncipe.

A questão da localização das ilhas Hespéridas - ultra Gorgades

Como o Atlas de Jean Bleau testemunha, a designação do arquipélago de Cabo Verde como ilhas Hespéridas encontra-se em textos e documentos cartográficos através dos séculos e manteve-se viva na literatura. Essa denominação de ilhas Hespéridas referencia-se pelo "Jardim das Hespérides", não deve, porém ser confundidas com o próprio Jardim e também não podem ser identificadas sem maiores diferenciações com as próprias Gorgades.

As Etimologias de S. Isidoro de Sevilha como ponto de partida

O reconhecimento da necessidade de estudos mais diferenciados das Hespéridas e suas associações, revendo dados da pesquisa mitográfica sob o enfoque de sua localização e contextualizações caboverdianas levou a que a imagem fosse centro de reflexões e análises em seminários universitários realizados em cooperação com o programa de estudos dedicados ao Cabo Verde do ISMPS.

Um dos pontos de partida desses debates foi a obra enciclopédica Etimologias de Isidoro de Sevilha. (San Isidoro de Sevilla Etimologías II, 2a. ed., Madrid: Biblioteca de autores cristianos 1994)

As Gorgades, segundo os conhecimentos registrados por Isidoro, eram as ilhas do oceano defronte ao promontorio denominado de Hesperu Ceras (seu cornu). Que o conhecimento da existência dessas ilhas não era apenas derivado de um mito, mas sim resultado de conhecimentos práticos de navegantes, isso indica a sua menção de que se encontravam à distância de dois dias de navegação do continente. Isidoro parece basear-se aqui em Plinius o Velho (+70 A.C.), segundo o qual Xenophono de Lampsacus afirmara que as Gorgades estariam situadas há dois dias de viagem do Hesperu Ceras, ou seja, do promontório mais a Ocidente do continente africano, o Cabo Verde; de acordo com Plinius e Gaius Julius Solinos, durava ca. de 40 dias a viagem de Atlantis que, passando pela Gorgades, levava às ilhas das "Mulheres do Ocidente".

"Gorgades insulae Oceani obversae promontorio, quod vocatur Hesperu Ceras, quas incoluerunt Gorgones feminae aliti pernicitate, hirsuto et aspero corpore; et ex his insulae cognominatae. Distant autem a continenti terra bidui navigatione." (Etym. XIV, 6:9,  oc.cit. 192-194)

Essas palavras indicam que Isidoro procurou explicar a designação de Gorgones como se de fato as ilhas tivessem sido povoadas por mulheres Górgonas. Essa elucidação é característica para um autor eclesiástico que procura mostrar que as antigas crenças eram apenas ficções, fabulações derivadas de fatos reais.

Essas relações ambivalentes nas relações entre a imagem e a realidade - projeção de imagem em fato geográfico e povos ou suposição de real existência de um povo para a explicação de imagem - devem ser consideradas como válidas para todo o contexto no qual surgem as Górgonas.

O arquipélago relaciona-se não apenas com as Górgonas em si, mas sim com acontecimentos nas quais tomam parte no sistema de imagens da visão do mundo e do homem e que é marcado por um dinamismo interno, uma vez que tem correspondências com o mundo observado pelos sentidos e que se encontra sempre em movimento.

As características da linguagem visual transmitida pelas narrativas indicam tratar-se aqui de uma imagem correspondente a uma fase já posterior de um processo em andamento e de direcionamento descendente. Elas surgem com atributos que indicam complexas relações entre os elementos e com concepções de matéria.

Górgonas a partir da inimizade de Minerva/Athène na interpretação de Isidoro

Segundo as elucidações de Isidoro, a imagem da Gorgona (Medusa) pode ser compreendida em relação à sua inimiga, Athéne/Minerva, a "mulher". Nessa antinomia entre ambas manifesta-se o contraste entre a inteligência - que nasce do espírito, e este situa-se na cabeça - e as trevas do espírito da cabeça dura como pedra da mulher sem virtudes. Por essa razão, a deusa da sabedoria, na qual tem raíz a prudência, traz sôbre o  seu peito a cabeça da Gorgona, assim como os antigos imperadores no peitoral da armadura, tendo essa a função de salientar a sua própria sabedoria e virtude.

"In cuius pectore ideo caput Gorgonis fingitur, quod illic est omnis prudentia, quae confundit alios, et inperitos ac saxeos conprobat: quod et in antiquis Imperatorum statuis cernimus in medio pectore loricae, propter insinuandam sapientiam et virtutem." (Etymologiarum VIII, 11,73)

Em outro livro da sua obra, tratando do homem e seres fabulosos como imagens a partir de fatos reais, as Gorgonas teriam sido meretrizes, cujos cabelos eram serpentes e que transformam em pedra a quem as miravam; estavam dotadas de um só olho, comum a todas. Na realidade, se tratava segundo Isidoro de três irmãs de uma extraordinária formosura, e a menção a um único olho, significava essa unidade em beleza. A fascinação que dela desprendia era tão grande que deixava estarrecidos aqueles que as viam, o que é expresso no mito na imagem de uma conversão em pedras. 

"Gorgones quoque meretrices crinitas serpentibus, quae aspicientes convertebant in lapides, habentes unum oculum quem invicem utebantur. Fuerunt autem tres sorores unius pulchritudinis, quasi unius oculi, quae ita spectatores suos stupescere faciebant ut vertere eos putarentur in lapides." (Etymologiarum XI, 3,29)

A Górgona seria segundo Isidoro exemplos da mulher lúbrica, o que indicaria as serpentes na imagem. Nas suas explicações sôbre animais, define o termo anguis, genérico para todas as serpentes, pelo fato de retorcer-se e ondular, procedendo de forma angulosa e nunca direta. As Górgonas seriam lúbricas pois eram escorregadias, não podendo ser agarradas; eram falsas por deslizarem por lugares intrincados, nunca por caminhos abertos.

As elucidações abrem perspectivas para a leitura de outros aspectos de narrativas míticas relacionadas com a Górgona (ou Górgonas), em particular daquelas relacionadas com Perseus. Este, que desceu à longínqua região para cortar a cabeça da Górgona com recursos de Hermes/Mercúrio e Athene/Minerva, levou a que as suas irmãs amargamente chorassem a sua perda.

A compreensão única - ainda que tripartida - da mulher representada indica o lamento, o choro, a tristeza e a saudade que se relacionam com a imagem. Segundo os seus cantos de lamento foi que Athène criou com a flauta um nomos musical específico.

O aspecto crucial do mito reside no fato de que a decapitação da Medusa, mais do que uma morte, surge na realidade como um mistério: o do nascimento, do seu corpo, do cavalo ou dos cavalos áereos Pegasus e Chryseos.

Esses eram filhos de Poseidon/Netuno, que com ela se unira na forma de cavalo, uma vez que as Górgonas também possuiam atributos equestres. A elevação nos ares do cavalo aéreo do corpo sem cabeça da Medusa manifesta uma união que encontrava-se velada e pode ser interpretada segundo as elucidações de Isidoro quanto ao significado da cabeça como sede do espírito. Sendo filhos de Poseidon/Netuno, esses cavalos indicam na linguagem das imagens a sua origem no espírito que domina a água e a terra, e, assim, os vínculos com esse elemento. Eles se elevam às alturas, indicando a ascensão das águas aos altos dos céus na movimentação dos elementos e no ciclo do ano. Esse cavalo aéreo se transforma no veículo de Perseus na sua missão de salvar Andrômeda e, assim, reconduzir os seus pais Kepheus e Cassiopeia à dignidade real que haviam perdido.

O complexo representado pelo mito de Perseus no seu ato salvador de Andrômeda e de recondução de Kepheus e Cassiopeia à dignidade que haviam perdido marca na linguagem das constelações a parte ascendente do ano do hemisfério norte, onde também surgem as figuras dos dois cavalos alados. Essas figuras surgem na parte superior dos céus, acima da Eclíptica, representando anti-tipos, enquanto o tipo da Górgona deve ser localizado na parte inferior.

Na reinterpretação cristã dessa linguagem visual, essas constelações foram relacionadas com a salvação da alma do homem que a recuperação da sua posição que perdera com a queda de Adão e Eva, referenciando-as com justos e santos das Escrituras. Perseus é aqui interpretado como imagem com o Apóstolo Paulo e, portanto, com a conversão dos gentios.

A terra da Górgona como parte do Egito

Herodoto transmite a notícia de um nascimento de Perseus na África. Segundo êle, os egipcios negavam-se em geral a adotar costumes helênicos e de outros povos. Havia uma cidade, porém, Chemmis, na circunscrição tebana, não longe de Neapolis, na qual havia uma área quadrada sagrada a Perseus, o filho de Danae, rodeada de palmeiras. A entrada do santuário era grande, de pedra, ladeada por duas grantes estátuas. Dentro, num pátio cercado de moros, havia um templo com a imagem de Perseus. Os habitantes contavam que Perseus surgia frequentemente, também no interior do santuário, e um grande sapato que usara poder-se-ia ali por vezes ser visto. Quando aparecia, havia felicidade. Assim como os gregos, nessa cidade realizavam-se concursos esportivos com todos os tipos de lutas, com distribuição de prêmios. Os seus habitantes acreditavam que Perseus era de Chemmis, tindo dali emigrado à Grécia de navio. Quando desceu ao Egito para tomar a cabeça de Gorgo, veio a Chemmis, fazendo-se conhecer a todos os seus parentes. Já conhecia o nome da cidade, pois aprendera com a mãe, Foi êle que ordenara a realização dos jogos de combates. (Herodot, Hist. I-V, II, 91, trad. al. W. Mar, Munique, 1991, 165)

Esse registro de Herodoto tratando da descida de Perseus ao Egito para cortar a cabeça da Medusa, indica a localização da terra das Górgonas no Egito.

Esse motivo corresponde, assim, a imagens transmitidas pelas Escrituras de descida e saída do Egito, o que surge como terra de escravidão ao trabalho e riquezas. A terra das Górgonas surge, assim, relacionada com a esfera conotada negativamente tanto da mitologia quanto da tradição bíblica.

Os hespérios como termo genérico e as ilhas Hespéridas em geral

Para além do seu significado genérico relativo ao Ocidente, o que permite também que as ilhas do Cabo Verde fossem consideradas como ilhas das Hespérides, a localização mais específica dessas ilhas era mais a sul, ou seja, na região do golfo da Guiné, assim, entre outras, S. Tomé e Príncipe.

As elucidações de Isidoro indicam que as concepções explica-se a partir de uma concepção tripartida do homem e que é, ao mesmo tempo, fundamento de visões etnográficas e geográficas. Êle parte - como outros autores cristãos - da narrativa do Velho Testamento relativamente aos três filhos de Noé.

A descendência de Chus, um dos filhos de Cão, deram origem aos etíopes. Esses ter-se-iam expandido por várias regiões do globo. Partindo das margens do rio Indo, ter-se-iam sediado entre o Nilo e o Oceano, na zona meridional, na proximidade do sol.

Três teriam sido os povos que os compunham: os hespérios, os garamantes e os indos. Os espérios eram os do Ocidente, os garamantes, os de Trípolis, os indos, os do Oriente.

"Hi quondam ab Indo flumine consurgentes, iuxta Aegyptum inter Nilum et Oceanum, in meridie sub ipsa solis vicinitate insiderunt, quorum tres sunt populi: Hesperi, Garamantes et Indi. Hesperi sunt occidentis, Garamantes Tripolis, Indi orientis." (Etymologiarum IX, 128)

Essas palavras indicam, assim, que os hespérios eram considerados os homens de tez escura do Ocidente, incluidos porém na mesma categoria humana daqueles do Norte da África e da Índia. Na concepção tripartida do homem, correspondiam todos êles à parte inferior, tao homem terreno.

Os hespérios eram, nessa categorização, os ocidentais por excelência. A própria Espanha, inseria-se nessa categoria simbólico-antropológica, pois a Espanha era Espéria. Por essa razão, os hespérios seriam aqueles descendentes de Chus que povoavam regiões mais ocidentais, "próximas" à Espanha.

Hesperii vero sunt, qui circa Hispaniam conmorantur. Nam Hispania Hesperia (IX, 126)

As Hespéridas no sentido específico: as ilhas "ultra Gorgades"

No seu livro XIV, que trata da terra e de suas partes, Isidoro considera o termo no capítulo dedicado às ilhas.

De acordo com o seu intuito de explicar concepções antigas como ficções a paritr de fatos naturais e reais, as ilhas das Hespéridas assim se denominavam devido à cidade Hespéride que situara-se nos confins da Mauritania. 

Isidoro transmite também a informação de que essas ilhas se encontravam para além das Gorgadas, delas se diferenciando, o que nem sempre foi considerado em textos posteriores. Essa indicação parece provir de Plinio, que na sua História Natural utiliza-se do termo "ultra Gorgades" para localizar as Hespéridas (Nat. hist. 6,201, loc.cit.).

Se na sua acepção genérica os povos hespérios possuiam conotações negativas, compreensíveis devido a seus elos com o Ocidente, as imagens negativas intensificam-se em direção ao sul, em direção ao tenebroso.

No jardim das Hespéridas - segundo contavam as narrativas - havia um dragão que vigiava os pomos dourados. O dragão (Ladon) era, segundo as elucidações dos animais de Isidoro, a maior das serpentes e o maior de todos os animais que habitam a terra; saindo das cavernas, se levantava pelos ares e dáva origem a ciclões. Não tinha veneno, pois sempre matava asfixiando as suas vítimas (Etymologiarum XII, 4,4). Como a maior das serpentes, possuia assim as suas características ao maior grau: o de proceder de forma serpentuosa, escorregadia, lúbrica e falsa.

Procurando explicar as antigas imagens como fictícias, resultados de fatos naturais, Isidoro idenfica o dragão das Hespéridas com um estuário que existiria nessa região e que seria tão sinuoso pelas suas costas que aqueles que o contemplavam à distância nele viram a silhueta de uma serpente.

"Hesperidum insulae vocatae a civitate Hesperide, quae fuit in fines Mauretaniae. Sunt enim ultra Gorgadas sitae sub Athlanteum litus in intimos maris sinus; in quarum hortis fingunt fabulae draconem pervigilem aurea mala servantem. Fertur enim ibi e mari aestuarium adeo sinuosis lateribus tortuosum ut visentibus procul lapsus angueos imitetur." (Etymologiarum XIV, 6: 10, op.cit, 193ss.)

Elucidando assim racionalmente a imagem como lenda originada do mal-entendido de uma visão à distância de marinheiros, o texto indica associações do contorno da terra firme africana da região da Guiné com o dragão, figura tão negativa para um autor eclesiástico como Isidoro. A menção ao dragão que se encontrava junto à árvore de pomos dourados teria Isidoro encontrado em Virgilio (En.4,484 apud J.O. Reta u. M.A.M. Casquero, op.cit. obs.44, pag.194). Este, por sua vez, recorria a uma tradição muito mais antiga.

As Hespéridas - "as irmãs africanas" -  surgem assim com associações extremamente negativas. Segundo a tradição mitológica surgiam como filhas da Hespéria (Venus) ou da Nyx, ou seja da noite e, assim, associada à substância intelectual diabólica na tradição cristã. As Hespéridas surgiam como perigosas figuras aladas, lembrando às hárpias, demônios de vendavais. A árvore e as maçãs, nesse contexto, cultivadas pelas Hespéridas e guardadas pelo dragão não pode ter, assim, conotações positivas. Tinha sido um "presente" de Gaia pela união de Zeus e Hera.

Diferença entre imagens de Cabo Verde e das Canárias na antiga Geografia

Assim como as Gorgades diferenciavam-se das ilhas Hespéridas no sentido mais próprio do termo, e que indicam as ilhas mais a sul do Cabo Verde, com características ainda mais negativas, distinguiam-se daquelas mais a norte, a das Canárias, estas com conotações positivas.

Assim, como Isidoro de Sevilha compila, as Afortunadas (Canárias), situadas no oceano, à frente e à esquerda da Mauritânia, teriam sido assim designadas por produzirem todos os tipos de bens, sendo felizes e benditas pela abundância de seus frutos, pelas videiras que cresciam espontaneamente nos seus cumes. Ali o homem não precisava cultivar a terra ou trabalhar. Assim explicava Isidoro a crença dos antigos de que nelas ter-se-ia localizado o paraíso.

(...)



Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Análise de imagens da tradição humanística referente a Cabo Verde. As ilhas Hespéridas e as Gorgades na geografia simbólica da Antiguidade nas suas relações com visões do mundo do homem. Do Tipo do mulher que chora na antiga cultura". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/4 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Hesperidas-Gorgadas-Cabo-Verde.html



 











Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.