Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©




Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©



Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©





Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©


Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©



Lueneburg 1974. Foto A.A.Bispo. ©

















Lüneburg 1974
Fotos.A.A.Bispo. ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 147/3 (2014:1)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3058





Sob o signo de Bach
início das interações entre o Brasil e a Europa em 1974
na
Johanneskantorei de Lüneburg



Débito e Crédito - 1974-2014. Época de balanços e reajustes.
Revendo inícios de interações euro-brasileiras na procura de esclarecimentos em situações complexas de heranças culturais

 


O programa de atividades iniciado em 1974 com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) e que lançou os fundamentos para o trabalho de décadas relacionado com o Brasil não pode ser considerado apenas em seus aspectos isolados, mesmo que alguns deles tenham passado a dominar preocupações em determinados anos.


Houve, de fato, no decorrer das décadas mudanças de pêsos nas atenções, e por esse motivo surge como necessário recordar momentos decisivos nos impulsos e nas iniciativas dos primeiros anos. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/147/Revendo_Brasil-Europa_1974-2014.html)


O programa de atividades, apesar da diversidade dos complexos temáticos e das áreas culturais que incluia, era motivo por um pensamento central, e este tinha uma orientação definida há anos: o de renovação das disciplinas relacionadas com os estudos culturais, em particular com a música através de um direcionamento das atenções a processos e a analises do edifício cultural na sua estrutura e dinâmica interna. Essas preocupações levaram à fundação de uma sociedade com esse escopo em 1968 e criação de um Centro de Pesquisas em Musicologia.


Um dos aspectos da vida musical que demonstrava a necessidade de ser considerado mais refletidamente era o renovado interesse pela assim-chamada música antiga no Brasil em meados da década de sessenta e início de 70.


Esse interesse, que relacionava a música antiga e intentos de cultivo de obras, difusão cultural e de renovação de repertórios, denotava diferentes características segundo os grupos que o promoviam, tanto quanto às suas concepções, estilos de apresentação, repertório e público alcançado. (Veja)


Esse revivificado interesse pela assim-chamada música antiga era aquele da vida musical que mais se relacionava com a pesquisa musical, seja pela necessidade de levantamento de repertórios, de estudos de prática de execução histórica, de aquisição e estudo de instrumentos antigos, e ao mesmo tempo com questões de difusão e ensino. É compreensível, assim, que os anelos de formação adequada de musicólogos brasileiros em grandes centros do Exterior surjam estreitamente relacionados com círculos voltados ao cultivo da música antiga no Brasil.


A mais tradicional dessas esferas da prática musical, aquela que contava com mais longa tradição e que realizava os seus eventos quase que de forma reservada sem maiores condescendências quanto ao emprêgo de novos meios de atração de público era a Sociedade Bach de São Paulo.


Ela representava ao mesmo tempo, pela sua longa existência, um patrimônio musical da cidade e do Brasil, surgia por vezes como um relito do passado, relacionando de forma pouco compreensível para muitos o culto a Bach com concepções e modos de vida. Nenhuma outra entidade que se dedicava à assim-chamada música antiga apresentava história mais longa, tivera a sua fundação em período tão importante e ao mesmo tempo conturbado da vida musical brasileira, os anos 30, fundação que já então era resultado de caminhos anteriormente percorridos.


Tratava-se, assim, de uma entidade que por si representava patrimônio cultural de São Paulo e do Brasil, tendo as suas atividades marcado grande parte do século XX, e que surgia como um marco que indicava o singular significado de J. S. Bach ao Brasil e, portanto, das relações entre o país e a Europa.


Confronto com complexas heranças do passado na procura de novos caminhos


O nome Bach mencionado em conjunto com o do Brasil traz primeiramente à lembrança das Bachianas Brasileiras de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Conhecidas internacionalmente, essa complexa obra sempre deu origens a múltiplas interpretações, ao papel de Bach e às compreensões de Bach para o compositor brasileiro.


Análises musicais de suas múltiplas formas e recursos de linguagem e estilo necessariamente se unem a tentativas de compreensão de idéias subjacentes, de associações, ou seja, de aspectos antes culturais que, pela qualificação de brasileiras, evidenciam vínculos com o pensamento nacional e contextos político-culturais.


O confronto com as dificuldades de análise estéticas e de sentido de tão prolixa trouxe à consciência como poncas outras a necessidade de uma orientação antes dirigida a processos culturais no estudo histórico-musical e da análise.


Nesse intento, revelou-se um campo de tensões surpreendente de alto poder conflitivo, manifestado na sua força e agressividade nos últimos anos da Segunda Guerra, e que, embora silenciado e pouco considerado em público após a mesma, continuava presente como uma carga cultural da Sociedade Bach de São Paulo: o da ameaça feita aos "amigos de São Paulo" da Sociedade por Heitor Villa-Lobos.


Ainda que sem o apoio do Coro Schubert dos alemães de S. Paulo, dirigido por Martin Braunwieser (1901-1991), Villa-Lobos não tivesse alcançado os sucessos no início dos anos 30 que foram fundamentais na sua vida e nas suas atividades, esse documento da década de quarenta testemunha diferenças e tensões.


Discernir com justiça razões e intenções dessas ameaças, conhecer as suas possíveis justificativas, saber quem é que estava realmente preso a idéias autoritárias, se o compositor ou os "amigos" de São Paulo, tornou-se significativa questão de discussões, continuamente consideradas em cursos e simpósios no decorrer dos trabalhos euro-brasileiros das décadas seguintes. (Veja)


Na sua carta de dezembro de 1945, Villa-Lobos afirma de início ser incontestável que a música de J.S.Bach fosse a "mais sagrada dádiva do mundo artístico", e reconhece, no seu término, ser a sua obra imorredoura e êle o "maior dos maiores dos mortais" (!).


Na sua argumentação, embora prolixa, dizia temer que a propaganda bachiana da Sociedade Bach, embora representando nobre gesto e fosse bem intencionada, estivesse sendo disperdiçada por realizar-se "para um ambiente cheio de recalques e complexos, incrédulo em face da criação artística de seus patrícios".


Essa crítica ao meio em que a Sociedade Bach de São Paulo atuava fundamentava-se em razões culturais e educativas. Na visão de Villa-Lobos, esse meio não seria solidário socialmente, o que contrariava a prova que Bach teria dado (!):


"Tendo Bach pensado em Deus e no Universo, através de suas criações musicais oriundas de seu país, deu a mais espiritual das provas de solidariedade humana, pelo que devemos compreender, amar e cultivar a música que vem e vive, direta ou indiretamente da nossa terra e universalizá-la com fé e consciência."


A substância técnica e psicológica devia estar baseada no canto livre da terra, através das expansões espontâneas dos homens simples e inconvencionais, e aqui - em afirmação hoje dificilmente compreensível sob o ponto de vista histórico-cultural e musicológico - Villa-Lobos partia da visão de ter sido esta a "maior substância técnica e psicológica da inspiração" da monumental obra de Bach.


A sua argumentação parece esclarecer-se antes a partir de suas explanações a respeito da educação artística ou de um processo educativo que revela fundamentações político-culturais:


"No terreno da arte, a juventude deve ser educada na disciplina coletiva das massas, até a maioridade consciente de um povo civilizado.
O povo deve ser orientado para formar elites espontâneas e as elites se tornarem baluartes morais e materiais das realizações artísticas de suas predileções."


Essas palavras, que singularmente sugerem ter o povo ainda não alcançado a maioridade de um povo civilizado, parecem criticar assim um procedimento educativo vindo de cima, por assim dizer elitário, assim como ao culto de nomes ou aspectos extra-musicais relacionados com prestígio e auto-consciência de pertencimento a um círculo de pessoas de cultivo. Raros seriam aqueles que, dizendo gostar de boa música, a apreciavam tão somente pela combinação de sons e rítmos, ou seja sem se deixarem influenciar por nomes de autores e títulos de obras. ("Carta à Sociedade Bach de São Paulo", in Presença de Villa-Lobos 8, Rio de Janeiro: MEC/DAC-Museu Villa-Lobos, 1974, 95-96)


De fato, nos anos da Segunda Guerra, constata-se um intenso cultivo de obras de Bach em São Paulo. Pode-se lembrar, como exemplos, a realização da Paixão de N.S.Jesus Cristo segundo S. Mateus na Discoteca Pública Municipal no dia 23 de outubro de 1940, o Sarau N° 50 de 19 de maio de 1941, quando T. Braunwieser e E. Hahmann executaram as Fugas I e VIII da Arte da Fuga, a quatro mãos, e Heitor Alimonda a Tocata e Fuga em ré menor. Pode-se lembrar também o recital a dois pianos realizado a 13 de junho de 1940, no Salão Gomes Cardim, com as Variações Goldberg e o sarau de 9 de abril de 1942, quando Tatiana Braunwieser executou varios números da Arte da Fuga.


Especial trabalho de tradução de textos para o português exigiram o concerto de 24 de novembro de 1943, a execução da Cantata 191 para o Natal na Igreja Evangélica Luterana a 17 de dezembro de 1944 e Missa em S. Menor na Igreja da Consolação no dia 22 de abril de 1945 em comemorção ao 10 aniversário da Sociedade Bach.


Logo após o térrmino da Guerra, seguiram-se, em 1946, a Cantata de Natal 191, assim como o Oratorio do Natal em primeira audição e o Magnificat, em 1947.


Concepções de cultura, de critérios de valores e procura de revisões


Se a Sociedade Bach de São Paulo carregava consigo um peso não bem explicado e mesmo sentido como injusto expresso nessa carta, impossível de ser tematizado devido à situação criada após a Segunda Guerra, também a pesquisa musical em geral, no confronto com Villa Lobos e as suas Bachianas Brasileiras não poderia chegar a conclusões adequadas sem o confronto com essas tensões relacionada com o nome Bach do período da Guerra e que tiveram a sua expressão em documento tão enigmático do maior compositor brasileiro.


Embora reorganizando-se e retomando atividades após a Guerra, essa carga do passado mantinha-se silenciosamente presente e clamava por esclarecimentos. Estes eram esperados sobretudo no intercâmbio com outras entidades similares do mundo para o conhecimento de situações e caminhos percorridos na reorganização e revitalização dos trabalhos posteriores à Guerra e, sobretudo, no desejo de recontactação com as origens de uma corrente anterior aos anos nos quais se dera a fundação da Sociedade Bach de São Paulo.


A principal questão que se levantava em São Paulo dizia porém à compreensão de cultura e de critérios de valores culturais que se manifestava nas atividades da Sociedade Bach e que não bem pareciam corresponder às novas perspectivas abertas pela reorientação das atenções a processos culturais.


Como os representantes da Sociedade salientavam, a entidade procurava-se manter fiel a seus princípios iniciais de 1935, ou seja, o de servir á educação e à cultura pela música. Segundo os seus estatutos, tinha por objetivo cultivar e divulgar a obra de Bach, membros da família e contemporâneos de Bach, são sendo filiada a nenhum credo político ou religioso.


Embora admitindo expressamente todas as tendências da criação musical artística, mesmo as mais avançadas, partia-se de uma distinção clara entre uma esfera artística mais elevada. marcada pelo conceito de Obra, e uma inferior, qualificada como banal.


A distinção porém dizia respeito antes à existência de círculos na vida cultural que, com a proteção e propagação de obras não aceitas pelas "massas", cultivavam mundos marcados por elevação e sobriedade, contrastantes com aqueles da trivialidade e vulgaridade. O culto à sobriedade era, de fato, marca das atividades da Sociedade Bach.


"Para a vida cultural de um povo civilizado são necessárias sociedades que se dediquem, propaguem e protejam contra o desprezo, a indiferença e a corrupção obras de arte que, devido à sua elevação e sobriedade, não participa do êxito fácil da platéia comum, que apoia e aplaude com entusiasmo a banalidade a a vulgaridade. Não pela valorização exclusiva do clássico, ou pela exigência ou aceitação única de manifestações artísticas contidas nos moldes estabelecidos por princípios ou regras de limitação estética. Limitação esta, não existente em Bach, o qual, pela sua genial capacidade de expressão, não define somente um período artístico, por  que é de todas as épocas, é sempre atual. A SBSP tem respeito por tudo que representa arte em música. Use-se a atonalidade, a politonalidade, divida-se, subdivida-se, fragmenta-se o tom, fuja-se de Bach ou faça-se uma volta a Bach."


A posição incondicional da sociedade a favor de critérios de valor na arte, na cultura e na educação era vista como equivalente aos critérios defendidos pela igreja com relação à música sacra.  O sentimentalismo e a superficial virtuosidade deviam ser combatidos tanto na vida profana como na religiosa. A técnica devia estar a serviço da musicalidade, da obra tal qual ela seria, integralmente respeitada no seu texto exatamente traduzido, com o seu ritmo, seus acentos próprios, e seu estilo, servido-se da dinâmica e outros recursos da interpretação.


Em 1947, para formar cantores e grupos corais homogêneos, a sociedade criou um curso de canto e introdução à música de Bach. O coro e a orquestra foram formados com profissionais e, na sua maioria, amadores. Como os profissionais atuavam sob pagamento, os dirigentes viam a necessidade de formar instrumentistas e cantores que pudessem trabalhar por prazer e dentro de uma disciplina fundamentada na causa. Pretendia formar um conjunto próprio e permanente, apto a executar obras da época de J.S.Bach de forma adequada. Deseja-se uma sede própria, para a biblioteca, discoteca e arquivo.


"Os concertos da Sociedade Bach não visam a virtuosidade, mas simplesmente o respeito pela obra a executar. Os elementos que tem tomado parte nestes concertos, artistas, dos mais valorisados, em nosso meio, assim o tem feito, colocando sempre em primeiro plano a obra a executar, com abdicação de todas as possibilidades virtuosísticas de que são capazes.


Não é possível, entretanto, evitar que, às vezes certos artistas se entreguem, em concertos da Sociedade, á exibição de virtuosismo e á execução de arranjos brilhantes, embóra a intensão da Sociedade Bach seja apresentar exclusivamente obras originais, cujo numero é tão grande que sua execução em dezenas de nos não seria capaz de esgotá-las.

(...)

Procurando atingir o fim almejado criou a Sociedade Bach, em 1947, um Curso de Canto e Introdução a música de Bach com a finalidade de formar cantores e corpos corais homogêneos (...) O ideal é formar elementos que trabalhem dentro de uma disciplina consciente (...) É pequeno o número de pessoas que se dedicam, dessa forma, ao canto coral. Este tem, entretanto, uma função associativa e de grande alcance social educador. (...)" (Relatorio das Atividades da Sociedade Bach de São Paulo no período de 1946/47, 5-6)


Na sua concepção de cultura, os responsáveis da Sociedade Bach baseavam-se sobretudo na autoridade de Andrade Muricy:


"A música não póde mais abstrair da Cultura, afastar-se dela, ou ser-lhe indiferente; menos ainda ser-lhe hostil. É indigno dos espíritos superiores, menosprezarem todo esfôrço desinteressado, a colaboração dos auxiliares de boa fé que se apresentam em nome da totalidade do intelectual humano, que é isso que chamamos Cultura." ("Música e Cultura", in Musica Sacra 3, Março 1944,45-46, Relatorio citado, 9)


Outro aspecto que caracterizava a Sociedade Bach era assim a o idealismo e a repulsa à competição  e lucro. Os seus empreendimentos surgiam antes como um fenômeno de congraçamento artístico em torno da preservação de certas obras fundamentais da música e que surgia como um traço expressivo da nobreza de espírito que informava a vida da sociedade.


Essas concepções de cultura e ideais de procedimento marcados pela acentuação à sobriedade, contensão e repulsa à vaidade acentuaram-se com a passagem da regência coral a Renata Braunwieser, em 1958.


Poder-se-ia distinguir no empenho da família Braunwieser, três tendências de orientação: a de Martin Braunwieser, antes decorrente da tradição de canto coral associativo e popular, marcado pela pesquisa de Bach de seu professor austríaco, flautista e voltado a principios do fazer música em alegria, a de Tatiana Kipmann, marcada pela teosofia e antroposofia, tendente a uma espiritualização e ao desenvolvimento pessoal a partir do que a pessoa já traz em si, talvez a responsável pela situação vista por Villa-Lobos quase que como sectárica, e Renata Braunwieser, formada em colégio católico e familiarizada com critérios de música sacra no espírito restaurativo, ainda que posteriormente dele se distanciasse sob vários aspectos.




A procura de centros do cultivo de Bach para reflexões em diferentes contextos


A procura dos centros do cultivo Bach na Europa tinha assim diferentes intenções, a do conhecimento da situação atual, a superação dos problemas da Guerra e das reorientações quanto a concepções, e a revitalização de princípios, que, diferentemente daqueles que possívelmente teriam levado a instrumentalizações políticas questionáveis nos anos 30 na Europa surgiam como o verdadeiro patrimônio, inovador e com potencialidades para o futuro da Sociedade Bach de São Paulo.


Nesse intento, uma das tarefas constitia na reconscientização de motivos que levaram á fundação de 1935 em São Paulo, as correntes de pensamento e da prática que a precederam, as suas inserções no movimento Bach europeu e, a partir dessas dimensões mais amplas, de suas características próprias no contexto brasileiro.


O próprio nome da entidade indica a lembrança da primeira Sociedade Bach, fundada em 1850 em Leipzig, tendo a ela pertencido várias personalidades exponensiais na história da música e da musicologia do século XIX.


A história da Sociedade Bach inscreve-se, como o rol dessas personalidades indica, contextos culturais e rêdes determinadas. O objetivo da sociedade foi primordialmente de natureza histórica de levantamento de fontes e sua publicação, tendo a tarefa de editar a obra integral de J. S. Bach. Consequentemente, completando-se esse esforço monumental, a sociedade foi extinta, criando-se a Nova Sociedade Bach, em 1900.


Em iniciativa de Hermann Kretzschmar (1848-1924),a atenção passou a ser dirigida sobretudo á divulgação da obra de J.S.Bach, não apenas na Alemanha.  A serviço desse fomento da celebração e propagação mundial da obra de Bach, passou-se a organizar as Festas de Bach. Estudos relativos a Bach e o desenvolvimeno do movimento passaram a ser considerados no Anuário Bach, publicado a partir de 1904.


Esse trabalho de difusão foi prejudicado pela Primeira Guerra Mundial, retomado no entre-guerras e novamente abalado com a Segunda Guerra Mundial, que causou destruição de fontes com o bombardeamento de Leipzig, em 1943. Após a Guerra, após uma fase de incertezas quanto à Nova Sociedade Bach, deu-se início ás atividades, a partir de publicações em 1947 e com as festas Bach, a partir de 1950.


Apesar da Alemanha estar dividida, a Sociedade procurou manter na sua organização a unidade precedente com os seus membros provenientes das duas partes da Alemanha. Foi justamente nesse período de transição e instabilidade do pós-Guerra, quando se colocava em dúvida o prosseguimento das atividades da Nova Sociedade Bach também devido à carga político-cultural das décadas precedentes, que fundou-se, em 1946, a Sociedade Bach Internacional em Schaffhausen, sob a presidência honorária de Albert Schweitzer (1875-1965).


Essa posição de Albert Schweitzer à frente da Sociedade Bach Internacional representou um extraordinário alento à Sociedade Bach de São Paulo, também confrontada com similares problemas de revitalização após a Segunda Guerra perante a carga do passado que atingia - por vezes de forma injusta - as entidades relacionadas com círculos alemães no Brasil. 


Diferentemente do que aconteceu em outros casos - por exemplo no movimento wagneriano - a recuperação da imagem, a ponte por cima do abismo dos anos 30 e 40 tornou-se possível devido à existência de uma personalidade acatada internacionalmente pela sua força moral, a de Albert Schweitzer. (Veja e.o.http://www.revista.brasil-europa.eu/120/TemaEmDebate.html)


Lüneburg como cidade Bach e a reorganização musicológica internacional após a Guerra


É altamente significativo que Lüneburg tenha sido não apenas cidade que abrigou o grande Festival Bach no ano de rememoração do bicentenário de seu nascimento, em 1950, como também o primeiro Congresso Internacional de Musicologia do pós-Guerra, organizado pela Sociedade de Pesquisa Musical alemã.


Como Luís Heitor Correa de Azevedo por ocasião da fundação do iSMPS em 1985 relembrou, apesar da contribuição de personalidades alemãs nos trabalhos internacionais que se realizavam na França, entre eles Heinrich Ströbel (1898-1970), editor de Melos, e Friedrich Blume (1893-1975), os ressentimentos ainda existentes nas relações franco-alemãs não permitiram a participação da UNESCO nem nas comemoracões do Bicentenário de Bach, nem na reabertura da Casa dos Festivais de Bayreuth. (A.A.Bispo, "Zum Neubeginn  musiklischer Zusammenarbeit in Europa nach Erinnerungen von Luiz Heitor Correa de Azevedo", Leichlinger Musikforum 5, Leichlingen 1985, 63 ss., 67).



Cidade de formação de Bach e das Tabulaturas de Lüneburg


Em 1956, Lüneburg abrigou novamente um dos maiores eventos Bach do período posterior à Guerra, o 33 festival Bach, passando a ser assim internacionalmente reconhecida como cidade Bach.


Paralelamente, Lüneburg manteve a sua importância na musicologia histórica em geral devido às Tabulaturas para órgão e teclado que trazem o seu nome (Lüneburger Orgel-und Klavier-Tabulaturen) e que se conservam na biblioteca do Conselho Municipal, tendo para ali vindo possivelmente da igreja de S. João.


Não apenas devido a essas tabulaturas foi Lüneburg sempre lembrado na Musicologia Histórica.


Presente, mesmo fora da Alemanha, Lüneburg sempre foi conhecida na História da Música sobretudo como cidade de importante passado musical e organístico, contexto de formação de J. S. Bach (1700?1702). Dentre as suas instituições, sempre teve projeção internacional sobretudo o antigo convento de S. Miguel, para onde dirigiu-se Bach na Páscoa de 1700.


Aceito como escolar livre, cantando como sopranista em missas e vésperas, o jovem Bach passou a fazer parte do coro escolar, podendo, para melhorar o soldo, servir a filhos de famílias nobres. Cantava tambem no Chorus Symphoniacus, o coro geral de domingos e feriados. Com a quebra da voz, passou a acompanhar o coro com violino e cembalo. Tornou-se, assim, profundo conhecedor da música sacra do Norte da Alemanha.


O ex-convento beneditino era desde 1655 uma fundação na qual se formavam alunos provenientes de várias regiões, incluindo um Collegium Academicum de teor universitário. A biblioteca do convento de S. Miguel era uma das maiores da Alemanha, com manuscritos de numerosas composições, sobretudo do século XVII.  Na sua época, ali atuavam dois grandes organistas: Johann Jakob Löwe (1629-1703) na Igreja de S. Nicolau e Georg Böhm (1661-1733) na de S. João.


Lüneburg como cidade significativa para o início dos trabalhos musicológico-culturais


O início do programa de atividades brasileiras no sentido de desenvolvimento dos estudos musicológicos em interações internacionais em 1974 deu-se, assim, significativamente na cidade em que Bach recebeu a sua formação.


Como cidade estreitamente vinculada á vida de J.S.Bach, Lüneburg surgia como centro ideal para a retomada de estudos não só de Bach como também da assim-chamada música antiga em geral nas suas implicações para os estudos da música do passado no Brasil e, como mencionado, na sua qualidade de cidade que abrigou o primeiro Congresso da Sociedade alemã de Pesquisa Musical.


Segundo as recomendações da Sociedade Bach de São Paulo, essa iniciativa brasileira em Lüneburg devia ser seguida tão logo quanto possível por uma viagem a Salzburg, no sentido de procurar membros da Academia ali fundada em 1919 com o objetivo de sua renovação sob novas perspectivas e em cooperação internacional.


Assim, logo após os contatos num dos centros de Bach, a protestante Lüneburg, procurar-se-ia uma renovação dos trabalhos no centro marcado pelo nome de Mozart, a católica Salzburg.




A presença brasileira na Johanneskantorei de Lüneburg


Na Idade Média, ao lado do mosteiro beneditino, o centro da prática musical em Lüneburg era a igreja de São João, onde a prática polifônica foi intensa no século XVI. Com a Reformação, o significado dessa igreja intensificou-se, sendo o cargo de Kantor ocupado por personalidades de renome. A igreja de S. João foi conhecida pela intensidade do cultivo de Cantatas e Paixões, em particular de compositores de Hamburg.


Responsável pela música em S. João, regente da Johanneskantorei e organista era desde 1957 Volker Gwinner (1912-2004), professor de órgão, compositor e organista de renome internacional.


Originário de Bremen, era personalidade destacada na vida musical sobretudo do Norte da Alemanha, tendo atuado como músico de igreja em Bremen e na tradicional Sophienkirche de Dresden. Era uma das mais renomadas personalidades da música de igreja de tradição reformada, tendo tido como professores e.o. Günther Ramin (1898-1956), organista e diretor de coro em Leipzig, sucessor de K. Straube (1873-1950), Johann Nepomuk David (1895-1977) e Günther Raphael (1903-1960).


Nos diálogos, Volker Gwinner salientou o significado das correntes de pensamento representadas por seus professores no âmbito da música de igreja da Alemanha e dos musicológos evangélicos no desenvolvimento da Musicologia.


Tomando conhecimento dos contatos estabelecidos em Colonia, com Heinrich Hüschen, também renomado representante dos estudos histórico-musicais na corrente de pesquisadores evangélicos, Volker Gwinner constatou a coerência do plano que estava sendo traçado, prontificando-se a discutir as questões concernentes ao movimento Bach no Brasil e às atualizações que se faziam necessárias relativamente a concepções de culltura e valores.


Rejeitando-se convicções marcadas pela distinção entre uma esfera elevada da cultura e aquela de massas, acentuou-se porém a valoração do procedimento idealístico, não primordialmente marcado pelo espírito de competição, rivalidade e lucro. Tratava-se, assim, não de uma determinação de esfera cultural, mas sim de valores culturais dos próprios protagonistas da pesquisa e da prática.


A atenção passou a ser dirigida, assim, às rêdes dos envolvidos no trabalho teórico e musical, marcadas que deveriam ser pela ausência na medida do possível de espírito competitivo, de superação mútua e de projeção pessoal. A discussão de aspectos éticos de comportamento passou a constituir o centro das preocupações, ou seja, a absoluta predominância de criterios relativos ao bom procedimento nas ciências e nas atividades artísticas na aceitação de co-laboradores nas atividades.


Volker Gwinner, ofereceu sobretudo visões recentes da prática de concertos, da execução de música antiga e contemporânea, de ensino de órgão, da composição e, sobretudo, da improvisação organística, que via como principal oportunidade e mesmo necessidade para a cooperação comum. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/147/Brasil-em-Hannover_1974.html)


Nesse contexto, do lado brasileiro, pôde-se salientar a intensidade do cultivo da música religiosa por coros e sociedades vinculadas a igrejas protestantes no Brasil na época, lembrando-se, entre outros, de renomados organistas de São Paulo e das atividades da Sociedade Pró-Música Sacra de São Paulo, embora esta se declarasse independente de vínculos confessionais.


Salientou-se, porém, que as relações eram pelo que tudo indicava muito mais do que na Alemanha marcadas por abertura e proximidades interconfessionais e que os interesses do programa que então se iniciava de interações eram não primordialmente práticos, voltados à promoção de concertos e intercâmbio de artistas, mas sim teórico no desenvolvimento do pensamento através de reflexões em conjunto e tinham como um de seus objetivos o desenvolvimento e a institucionalização adequada da musicologia no Brasil.


A participação na Johanneskantorei representou além do mais uma oportunidade de conhecimento de prática de execução, técnica de ensaios, regência e vida musical de igreja e de concertos, assim como o da vida cultural e comunitária de seus membros.




Dessa forma, já no Natal de 1974, houve participação brasileira no Oratório de Natal realizado na Johanneskirche, o mesmo dando-se na Semana Santa de 1975, quando executou-se a Johannespassion de Johann Sebastian Bach.



Trabalho pedagógico e aproximações a Worpswede


Um dos aspectos do trabalho musical em comunidades evangélicas trazidos à consciência por Volker Gwinner foi o pedagógico, também aqui revelando perspectivas outras àquelas das concepções educativas da Sociedade Bach de São Paulo. Nesse sentido, salientou a necessidade de um repertório adequado e que acostumasse crianças e jovens a elaborações de melodias e composições com emprêgo de novos recursos da linguagem musical. Neste sentido, o coro infantil podia também atuar junto em concertos com a Kantorei, como no caso da música festiva Seid fröhlich in Hoffnung.


Uma perspectiva, ainda que indireta e sobretudo através de sua esposa, a cantora Irmgard Gwinner (nascida Schumann, 1912-1987), abriu-se com a aproximação do universo cultural representado por Worpswede. Principal nome a ser considerado é aqui o de Wolfang Jehn, que atuara como músico de igreja em Bremen e que vivia em Worpswede como compositor.


A proximidade de Volker Gwinner com esse mundo pode ser percebida no ciclo coral Im Jahrkreis segundo texto de Margarete Jehn. Através desse círculo de Worpswede e de uma literatura musical infantil ali desenvolvida estabeleceram-se elos com educadores que, no Brasil, se esforçavam em utilizar instrumentário Orff no ensino musical de forma adequada culturalmente ao país.


Continuidade de elos em interesse pelas relações com o Norte e Leste da Europa


Os contatos com Lüneburg mantiveram-se nos anos seguintes, e assim os conhecimentos a respeito da sua vida musical, em particular relativamente ao cultivo das obras de Bach.

Assim, em 14 de novembro de 1976, embora deixando de cantar por motivos de uma operação, Irmgard Gwinner não apenas comunicava o sucesso da realização do Requiem Alemão de Brahms com um considerável número de vozes (20 tenores e 20 baixos), como também da Paixão de S. Mateus de J. S. Bach.

Em particular, Irmgard Gwinner informava a respeito de um projeto no qual participaria de intercâmbio cultural entre Saarbrücken e Tiflis, visitando Tiflis, Erivan, o Cáucaso und Moscou.

Com essa notícia, vinha de encontro aos interesses pelo Leste europeu salientado nos encontros de Lüneburg a partir da comentada tradição russa da família Braunwieser, em particular de Tatiana Kipmann e, assim, da Sociedade Bach de São Paulo.

Os elos com Saarbrücken aprofundar-se-iam nos anos seguintes, sobretudo através da pessoa de Hans Lonnendonker, que acompanhou de perto e de forma intensiva os projetos referentes ao Brasil, participando do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo, em 1981.

Matéria preparada por colaboradores do ISMPS
orientada e traduzida de forma reelaborada por
Antonio Alexandre Bispo








Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Sob o signo de Bach. Início das interações entre o Brasil e a Europa na Johanneskantorei de Lüneburg em 1974".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 147/3 (2014:1). http://revista.brasil-europa.eu/147/Brasil-em-Lueneburg_1974.html