Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.



Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.


Marrocos, 2006. A.A.Bispo©Arquivo A.B.E.

Marrocos, Fotos 2006. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/13 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3084





Focalizando a Diocese norte-africana de Ceuta e a cidade de Olivença
Frei D. Henrique Soares de Coimbra (c.1465-1532) no Brasil, Índia e como Bispo de Ceuta




Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais XI





Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 

Em visão retrospectiva dos anos iniciais de preocupações pela renovação que se fazia necessária nos estudos culturais relativos a Portugal no Brasil nas décadas de 60 e 70, deve-se lembrar que essas decorreram em época de profundas transformações geo-político-culturais no cenário internacional.


Transcorridas sobretudo no espaço do antigo império colonial português na África e na Ásia, essas mudanças tinham implicações diretas e indiretas para as comunidades portuguesas ou de ascendência portuguesa no Brasil.


Partindo do confronto com a herança cultural portuguesa de luso-brasileiros


A superação de antigos elos das antigas regiões coloniais com Portugal, o surgimento de novas configurações internacionais, a inserção dos países em fase de emancipação em outros contextos histórico-político-culturais desestabilizavam referenciais de imagens e interpretações de constelações geopolíticas em dimensões globais, em particular do espaço Atlântico luso e brasileiro.


A perda dos territórios da índia, dos centros do secular Império Português do Oriente, a retirada crescente de portugueses e seus descendentes de tão extensas partes do globo, continuada por aquelas da África, de Moçambique, Angola, Guiné e outras regiões, ofereciam um quadro marcado por um retorno ao Ocidente, uma de-orientalização de rêdes globais de um edifício de relações desenvolvidas no decorrer de séculos.


O grande espaço transcontinental português ou marcado pela presença portuguesa na sua história, de dimensões mundiais, passava a reduzir-se cada vez mais ao Atlântico, com os principais referenciais no Brasil e em Portugal, este então êle próprio diretamente envolvido nos processos geo-políticos reconfigurados.


A constatação do papel de crescente significado que assumia o Brasil nessa transformação e que implicava em responsabilidade sobretudo para pesquisadores de ascendência portuguesa, foi acompanhada pela tomada de consciência do direcionamento que Portugal tivera ao Oriente em remoto passado, que agora chegava ao fim, e de que o próprio Brasil havia sido descoberto no decorrer de uma viagem que se dirigia à Índia.


Oriente e Ocidente - direcionamento ao Oriente pelo caminho do Ocidente


O quadro geral que se oferecia era a de que essa orientação e os elos resultantes com os centros do Oriente no decorrer da história tinham sido insuficientemente considerados e presentes na imagem dos acontecimentos históricos.


Por demais a atenção havia sido fixada na expansão do litoral ao interior do Brasil na história colonial, sempre considerado sobretudo o bandeirantismo em São Paulo, um desenvolvimento que teve a sua continuidade através dos séculos e que adquiria uma atualidade com a Marcha ao Oeste com a abertura de estradas e a propaganda desenvolvimentista da época.


Surgia como necessário considerar esse caminho a Oeste no contexto geral originário de um espaço transcontinental marcado por um direcionamento ao Oriente e as transformações por que passara até tornar-se predominante no presente. Esta ocidentalização vinha de encontro a interpretações heroizantes de uma propensão ou destino português para além-atlântico da literatura e da propaganda portuguêsa, obscurecendo o fundamental direcionamento ao Oriente do remoto passado e demonstrando a necessidade de estudos mais diferenciados e revisões.


A sensibilidade para essa atenção a processos, suas interações e redirecionamentos nas reflexões e na pesquisa tinha sido aguçada pela então constatada exigência de renovação teórica de disciplinas culturais, e que se fazia perceber sobretudo no âmbito da música e do ensino musical. Incluindo a disciplina Folclore há décadas, os programas de ensino predispunham a relações, influências recíprocas e confrontos.


Os problemas que então se evidenciavam foram reconhecidos como resultantes de orientações segundo determinações do objeto de estudos que deixavam que fatos e desenvolvimentos que não se enquadravam nas esferas assim categorizadas ou as ultrapassavam fossem pouco considerados e que levavam a contínuas tentativas de redefinições.


Esse movimento refletivo, que passou a propugnar uma orientação das atenções a processos, constituiu-se por fim em sociedade (Nova Difusão), em 1968. Relativamente à problemática do espaço português e de formação portuguesa nas transformações críticas por que passava em dimensões mundiais, os principais impulsos aos debates foram devidos ao compositor e intelectual português Jorge Peixinho quando de suas atuações no Paraná e em São Paulo.


Nessas interações, estabeleciam-se relações entre reflexões estéticas da criação musical contemporânea e de visões críticas político-culturais de situações e perspectivações de desenvolvimentos.


Esse debate dirigiu as atenções aos fatores  históricos que levaram à expansão portuguesa e a seu direcionamento ao Oriente, assim como à situação geográfica e geo-cultural de Portugal no Ocidente da Europa, defrontando o Norte da África, dele separado pelo Estreito que vincula o Mediterrâneo ao Atlântico.


Foi nesse contexto que a focalização de questões Oriente-Ocidente - até então presentes antes em correntes de pensamento em círculos alemães e austríacos remontantes ao início do século, também estes renovadores na sua época, marcados, porém, por visões espiritualistas - passou por uma atualização.


Os programas de pesquisas Oriente/Ocidente e Mediterrâneo/Atlântico da A.B.E. remontam, nas suas interrelações, a essas preocupações das décadas de 60 e 70. É a partir dessas origens que os estudos e as iniciativas nas décadas posteriores, realizadas a partir da Europa no Mediterrâneo, no Norte da África e no Oriente devem ser compreendidas.


A Diocese de Ceuta nos estudos de Maria Augusta Alves Barbosa


Um momento decisivo no desenvolvimento das reflexões na Europa deu-se com o encontro com pesquisadora portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa em Colonia, em 1975, que já há décadas desenvolvia estudos na Alemanha e que preparava a publicação de sua tese de doutoramento realizada cinco anos antes e dedicada a um compositor e teórico-musical português do século XVI (Veja).


Nos diálogos e sobretudo na leitura atenta da sua obra, constatou-se que os seus estudos, para além do seu significado para a Musicologia Histórica convencionalmente limitada à Europa, da época em questão e da história da teoria musical, traziam subsídios de grande relevância para a consideração da esfera mediterrânea nas suas relações com o Norte da África no contexto da expansão portuguesa e mesmo com a Europa central à época da Reformação.


Foi essa uma das principais razões que fizeram com que a obra de Maria Augusta A. Barbosa adquirisse um significado excepcional para os estudos de processos culturais em contextos globais e que levaram aos estreitos elos de afinidade e cooperação que marcaram os anos seguintes.


A personagem histórica que constituiu o centro das atenções do trabalho de vida da pesquisadora, ao redor do qual todas as demais considerações e os estudos complementares giram, pertencia á esfera de Ceuta (Seupta), cidade do Norte da África conquistada pelo rei português D. João I° (1357-1433), em 1415, pai da "ínclita geração", entre êles do Infante D. Henrique (1394-1460). A consideração de Ceuta faz com que a sua tese tenha adquirido desde o início extraordinário interesse para estudos relacionações com a história dos Descobrimentos e da expansão portuguesa. Adquiriu também especial interesse para a consideração do mundo insular atlântico, uma vez que à sua época deu-se descobrimento das ilhas de Porto Santo (1418), Madeira (1419), dos Açores (!427), para além de incursões às Canárias.


O pertencimento de Vincentius Lusitanus à Diocese de Ceuta surge como uma das poucas certezas relativas à vida desse "português Vicente", por encontrar-se documentado no Motu Proprio à edição de seu livro de motetes.


Dimensões de uma localidade: significado histórico e atualidade de Olivença


Segundo dados da literatura não confirmados por documentos, Vincente teria nascido em Olivença, pequena cidade na fronteira entre Portugal e a Espanha. Essa localidade foi por considerável tempo sede da Diocese de Ceuta, o que explica o significado que adquiriu sob o ponto de vista cultural, não proporcional às suas dimensões. (op.cit. pág. 49).


Considerando os litígios de fronteiras e as questões relativas ao pertencimento ou não de Olivença e sua região à Espanha ou a Portugal no decorrer dos séculos, ainda intensamente atual e não plenamente solucionada em localidade que hoje é espanhola mas orgulha-se de sua singularidade pelo seu patrimônio português, compreende-se a relevância político-cultural da atenção extraordinária dedicada por Maria Augusta A. Barbosa a um português ali provavelmente nascido e que que alcançou projeção internacional.


Com o seu estudo dedicado a um provável olivetano que trazia o cognome de Lusitano, a pesquisadora portuguesa oferecia subsídios importantes para uma questão litigiosa de grande atualidade política, não só para Portugal e Espanha.Com esse tema e o seu tratamento, a pesquisadora portuguesa demonstrava o seu posicionamento, aqui residindo o seu ponto de visão. Segundo as suas concepções historiográficas, era segundo essa visão, determinada pelo presente, que a imagem de decorrências históricas resultante da análise de contextos do passado era focalizada.


Segundo o procedimento determinado por essa compreensão da História, o estudo dedicado a Vincentius Lusitanus exigiu da pesquisadora a consideração da complexa história de relações e mudanças geopolíticas dessa esfera marcada pela proximidade da Europa e do Norte da África.


Compreende-se, assim, que Maria Augusta A. Barbosa tenha sido levada a analisar pormenorizadamente essa região na sua dinâmica histórica e nos seus elos com outras cidades de Portugal, da Espanha e com Roma, levantando documentos e examinando-os a ponto de criar capítulos na sua obra que representam estudos por si pelas suas proporções e significado.


Na sua obra, dedica por conseguinte entre os primeiros capítulos, estudos da Diocese de Ceuta (cap. IV), à História de Olivença (cap. V), ao desenvolvimento dos estudos pré-humanísticos e musicais em Olivença (cap. VI.). aos indícios de uma formação de Vincentius Lusitanus em Olivença (cap. VII.), ao significado do Bispo D. Frei Diogo da Silva para o desenvolvimento cultural de Olivença (cap. VIII) e a Vincentius Lusitanus como padre do "Hábito de S. Pedro" (cap. IX). Grande parte da tese que precede o tratamente especificamente de questões teóricas da disputa entre Vincentius Lusitanus e e Nicola Vicentino são assim dedicados a uma pequena cidade, pouco conhecida.


Um leitor não familiarizado com o significado dos litígios relacionados com essa pequena cidade não podia de início na década de 70 reconhecer a relevância político-cultural da "questão Olivença" para Portugal e que é ainda hoje de grande atualidade em dimensões européias, surpreendendo-se com o pêso a ela dado na obra de Maria Augusta A. Barbosa. Esse leitor, de ontem e de hoje, não pode assim apreciar adequadamente a obra da pesquisadora portuguesa e o seu ângulo de visão da imagem que obteve de suas análises de relações contextuais e nem pode reconhecer a relevância político-cultural de seu estudo e mesmo  a sua atualidade.


À época das conferenciações em Colonia, esse posionamento de Maria Augusta A. Barbosa tornou-se evidente, uma vez que a lusitanidade de Olivença e do seu pertencimento a Portugal passou a ser um tema frequentemente presente, pois era mencionado e tratado com particular convicção pela pesquisadora.


Os seus trabalhos de pesquisas, aparentemente apenas de longínquo interesse histórico e por demais especializados, revelaram-se assim como de relevância para a compreensão de relações interno-ibéricas não apenas relativamente à área do Mediterrâneo do passado, mas também de importância para o presente.


A sua obra passou a revelar uma inesperada modernidade, ou melhor contemporaneidade, uma vez que tinha um referencial político-cultural no tempo presente, determinador do enfoque com que tratava a imagem obtida de suas análises de contextos. Era nessa atenção à "questão de Olivença" que se manifestava o lusitanismo da própria autora apesar das muitas décadas que vivia e trabalhava na Alemanha.


A conquista de Ceuta pelos portugueses e a Diocese trans- ou intercontinental


Maria Augusta A. Barbosa não entrou, na sua obra, na discussão sôbre as razões que levaram D. João I° a conquistar Ceuta e que sempre pareceram e ainda em parte surgem como enigmáticas, uma vez que representaram um ato de agressão de um rei que, como a autora salientava, foi pacífico, culto e promotor da cultura, dos conhecimentos e das artes, o que também se manifestou na educação e formação que proporcionou a seus filhos.


Maria Augusta apenas menciona, na sua obra, a importância de Ceuta como ponto estratégico entre o Mediterrâneo e o Atlântico.


Dos materiais que considerou em notas e anexos vem porém à consciência do leitor atento que essa posição estratégica de Ceuta não pode ser considerada apenas com relação aos séculos que imediatamente precederam a conquista, ou seja, à Idade Média. Também a antiga história da localidade, o papel que ela e a sua região desempenharam no mundo do Mediterrâneo da Antiguidade deveriam ser considerados, uma vez que forneciam a base para o tratamento de épocas posteriores e, possivelmente, para o entendimento de fatores culturais no ato de conquista de D. João I°.


Embora considerando a cidade e a sua região, a atenção da pesquisadora é dirigida à Diocese no seu todo, que abrangia também partes continentais européias e que sofreu transformações quanto a seus limites e sedes. Essa atenção à organização eclesiástica é compreensível pela situação documental, uma vez que são em determinações pontifícias que se encontram marcos de sua história.


Os vínculos estreitos e mesmo especiais da Diocese com Roma merecem sob muitos aspectos particular atenção e contribuem para elucidar também o caminho de vida do personagem considerado pela pesquisadora.


Como a autora considera, pouco mais de dois anos da sua conquista, o rei português solicitou ao Papa Martinho V  (1368-1431) - da família Collona e cuja imagem é a do primeiro Pontífice da Renascença - que elevasse a localidade a cidade e a fizesse sede de um bispado. Na Bula Romanus Pontifex (1418), o Pontífice pede aos arcebispos de Braga e de Lisboa para examinarem o pedido do rei e, no caso positivo, acatá-lo. Fundou-se, assim, a Diocese a 6 de setembro de 1420.


Em 1421, Martinho V nomeou D. Frei Aymar a primeiro Bispo, provavelmente um religioso inglês, uma vez que acompanhara D. Filipa de Lencastre (1359-1415) na sua viagem de casamento com D. João I a Portugal, em 1387. Como a pesquisadora pormenorizadamente trata, era pessoa de influência na Corte como confessor e capelão-mor do rei e seus sucessores D. Duarte (1391-1438) e D. Afonso V (1432-1481). Por Bula de 1413, foi nomeado Bispo de Marrocos. (op.cit., 51).


Dos dados levantados e das suas considerações, tornam-se assim claras não apenas os vínculos internos da esfera mediterrânea da Diocese de Ceuta com Roma como também os elos com a esfera do Atlântico da Grã-Bretanha, ambos de consideráveis mas diversas repercussões na vida cultural.


Mesmo que o Bispo Aymar e seus sucessores não tenham estado em Ceuta ou apenas temporariamente, esses elos indicam a inserção desse ponto estratégico do Norte da África em configurações político-culturais luso-inglêsas. Nas reuniões, considerou-se que uma atenção especial também deviam ser dadas aos elos culturais e políticos culturais com o espaço francês.


Para além desses elos supra-nacionais, a pesquisadora estudou em pormenores as transformações da Diocese nas suas relações com a Espanha e com Portugal, fato compreensível pelo ângulo de visão que determinava o seu procedimento no tratamento da imagem histórica que obtinha de suas análises de relações.


Também nessas mudanças os vínculos com Roma foram fundamentais. Como é lembrado pela pesquisadora, em 1444, em Bula do Papa Eugenio IV (1383-1431), as cidades de Olivença e Valença do Minho foram integradas à Diocese de Ceuta. Olivença tinha pertencido à diocese de Merida, depois áquela de Badajoz.


Pelo fato da Igreja da Espanha ter reconhecido os papas de Avignon, Olivença separou-se da Diocese e formou com outras localidades uma unidade eclesiástica à parte, fiel a Roma. Esse fato marcou a história da cidade como particularmente leal ao Pontífice Romano (op.cit., 51), um ato que surgia para Maria Augusta A. Barbosa como importante testemunho da consciência cultural portuguesa de Olivença, importante argumento na litigiosa questão através dos séculos. Ao mesmo tempo, indicava a inserção dessa questão de limites e pertencimentos políticos no quadro mais amplo da política eclesiástica.


A menção aos conflitos com o Islão surge no contexto da separação de Olivença de Badajoz, ocorrida a desejo do infante D. Pedro (1392-1449), pelo fato da Diocese na África estar cercado por inimigos da fé e não dispor de meios necessários. Essa integração deu-se por Bula papal de 1452.


Já em 1472, porém, D. Afonso V e o Arcebispo de Braga separaram Olivença de Ceuta e a integraram na Diocese de Braga, fato confirmado em Bula papal em 1473, o que manifestaria, em posições ardorosamente defendidas por Maria Augusta A. Barbosa nas reuniões, a inquestionabilidade de um pertencimento de Olivença a Portugal. Apenas em 1512 a localidade voltou a pertencer a Ceuta, sob D. Frei Henrique de Coimbra (c. 1465-1532), bispo de Ceuta, reconhecido em 1513 pela Bula Inter curas multiplices.


Nessa época, a sede episcopal de Ceuta foi transferida para Olivença, ali permanecendo até 1570. Como a pesquisadora salienta na sua obra, mesmo que os bispos não tenham residido em Olivença, visitaram a localidade frequentemente e interessaram-se pelo seu desenvolvimento cultural. Não restaria dúvida que o bispo de Ceuta já tinha a sua sede em Olivença na primeira metade do século XVI.


Em 1570, o papa Pio V (1504-1572) uniu as dioceses de Ceuta e Tanger, sendo bispo D. Frei Francisco Quaresma. Olivença, pela Bula Super cunctas desse ano, que fundou a Diocese de Elvas, foi separada de Ceuta e integrada na de Elvas.


Com esse fato, terminou o período de Ceuta de importância para os estudos de contextos de Maria Augusta A. Barbosa e que incluiu a fase em que a Olivença foi sede de bispado. A época tratada foi, assim, aquela entre 1512 a 1570. A Diocese, nessa fase considerada, abrangia um grande território, Ceuta e o reino de Fez, algumas circunscrições na costa de Granada e, na fronteira entre Portugal e Castilha, Olivença, Campo Maior e Ouguela. (op.cit., 53)


Elos com o Brasil: Frei D. Henrique de Coimbra (c. 1465-1532)


Em longa nota - e que representa como muitas outras um estudo por si - Maria Augusta A. Barbosa trouxe à consciência o contexto que relaciona mais de imediato a história da Diocese de Ceuta com o próprio Descobrimento do Brasil.


Partindo de Damião de Góis (Chronica do felicissimo Rei D. Manuel, 1556, P. I, LIII, Coimbra, nova ed. 1949, 127, op.cit., 70), lembra que D. Fr. Henrique de Coimbra foi o celebrante da primeira missa no Brasil, em 1500. Êle tinha sido encarregado pelo rei D. Manuel para a direção espiritual dos oito franciscanos que acompanharam a frota de Pedro Álvares Cabral à Índia. Eram homens letrados, e que ficaram com oito capelães e um vigário em Calecut para administrarem os sacramentos aos portugueses e aos conversos da terra. Segundo essa fonte, a missa celebrada no Brasil foi de diácono e subdiácono, com todos os frades, capelães das naus e sacerdotes que iam na armada e outras pessoas que entendiam de canto. (op.cit., 71)


Após retornar, D. Frei Henrique de Coimbra foi nomeado em 1505 Bispo de Ceuta, sendo o primeiro bispo da Diocese após a integração nela da cidade de Olivença em 1513 e transferência para essa localidade da sede da Diocese.


Maria Augusta A. Barbosa salienta que tudo indica que D. Frei Henrique de Coimbra dedicou-se à sua Diocese, mesmo sendo questionável que tenha nela residido. Em todo o caso, visitou a cidade e por ela interessou-se. Uma carta escrita em 1528 de Olivença em agradecimento ao rei o demonstra. A êle se deve a edificação do palácio episcopal da localidade. Parece ter falecido em 1532, estando sepultado na igreja de Santa Madalena, em Olivença. (op.cit., 72)


Os estudos da pesquisadora portuguesa trouxeram assim à consciência não só mais uma vez o fato de ter sido o Brasil ter sido descoberto no decorrer de uma viagem à India, ou seja no contexto de um direcionamento ao Oriente dos empreendimentos portugueses, como também o fato de ter sido o celebrante da primeira missa no Brasil bispo da Diocese norteafricana ao vir da Índia, ou seja, que trazia já em si nessa função, as imagens que ganhara da nova terra e dos indígenas. Esse direcionamento ao Oriente dos empreendimentos de viagens portuguesas, porém, foi precedido pela conquista de Ceuta e pela expansão ocidental ao Atlântico, com a descoberta e início da colonização de várias de suas ilhas.


De 1505 até provavelmente 1532, quando faleceu, o Brasil esteve necessariamente presente - pelo menos através das impressões que trouxera - na sua Diocese, em particular na cidade de Olivença, sede de bispado a partir de 1512.


Os estudos referentes ao músico e teórico musical considerado por Maria Augusta A. Barbosa adquirem sob esse aspecto particular interesse sob a perspectiva brasileira, uma vez que a sua formação deu-se em esfera marcada nada menos pelo celebrante da primeira missa no Brasil.


Significado para os estudos e iniciativas posteriores


O significado da primeira missa no Brasil para os estudos culturais em geral e, em particular para aqueles relacionados com a música foi considerado sob diferentes aspectos nas décadas que se seguiram, sendo tratado em publicações e eventos vários.


Sobretudo as menções da Carta de Pero Vaz de Caminha abriram perspectivas de alcance considerável para estudos relativos não apenas à música sacra como também à música em geral, a folguedos e práticas que exigiam destreza física e dança de instrumentos populares de marujos, com sentido simbólico, assim como documento da primeira participação de indígenas em expressões culturais européias. Correspondendo às convicções básicas de Maria Augusta A. Barbosa e do seu colega e amigo Hans Mersmann (1891-1971), esses dados da Carta de Pero Vaz de Caminha indicavam a necessidade da música ser compreendida na sua totalidade, na unidade de suas múltiplas manifestações, não apenas aquelas de uma esfera superior, no caso, sobretudo, o da música sacra, em particular do Canto Gregoriano.


Esse propósito, que embora expresso não pôde ser realizado por Hans Mersmann pelo fato da sua visão da imagem histórica obtida através de análises de relações contextuais ser determinada pela prática musical de ensino, ou seja, à obra, vinha de encontro ao programa desenvolvido no Brasil. Este partia justamente da necessidade de se superar categorizações do objeto de estudo nas disciplinas culturais, dirigindo a atenção a processos que ultrapassavam esferas e supostas divisões entre o elevado e o popular, o sacro e o profano. A questão que restava e que tornou-se o centro das preocupações e reflexões era a do posicionamento do pesquisador na atualidade, o seu ponto de referência na determinação da visão com a qual focalizava a imagem histórica obtida através das análises contextuais.


O assunto voltou a ser lembrado em várias outras ocasiões, em publicações, cursos, colóquios e eventos. Foi um dos principais pontos de partida da série de vários semestres dedicada à música no encontro de culturas da Universidade de Colonia.


Compreensivelmente, foi tratado em conferência de representante da Comissão Municipal dos Descobrimentos de Lagos no Congresso Internacional pelos 500 anos do Brasil, dedicado explicitamente ao tema "Música e Visões".


A repetição de dados de fontes, porém, não basta, nem tampouco reproduções de conhecimentos já alcançados. 


Torna-se necessário considerar a história do levantamento dos documentos, os contextos que levaram ao despertar das atenções e os caminhos seguidos pelos pesquisadores, as diferentes perspectivas com que foram tratados e mesmo as visões que se abriram e que levaram a iniciativas, inclusive no Norte da África. Sem esses conhecimentos do caminho percorrido, o próprio tema do Congresso permaneceria para muitos incompreendido.


Nesse processo de produção de saber, as interações internacionais desempenharam assim há muito um importante papel e nelas coube à Dra. Maria Augusta Alves Barbosa um significado especial pelos documentos que pormenorizadamente considerou e pela corrente do pensamento historiográfico em que se inseriu. Nela, como expresso posteriormente no tema do Congresso dos 500 Anos do Brasil, a música e a visão determinada pelo referencial do observador de imagens históricas resultantes de análises de contextos foram de central significado.


A questão que sempre se levantou por parte do programa iniciado no Brasil, foi justamente o do posicionamento do pesquisador em processos culturais e político-culturais da atualidade e, assim, a determinação de sua visão de imagens ganhas através de análises contextuais. Procurou-se, assim, considerar outros ângulos de visão, ou seja, outros referenciais na visualização de imagens do passado. Para isso, realizaram-se viagens ao Norte da África, entre elas em 2006 ao Marrocos, país no qual se situava o território da antiga Mauritânia, não coincidente com aquele do atual país deste nome.


(Veja)



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.)."Focalizando a Diocese norte-africana de Ceuta e a cidade de Olivença. Frei D. Henrique Soares de Coimbra (c.1465-1532) no Brasil, Índia e como Bispo de Ceuta ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/13 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Diocese-de-Ceuta.html