Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos: Sé de Lisboa 2012. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/26 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3097




Música e músicos em Évora como centro cultural, suas dimensões e irradiações


Dos estudos de contextualização histórico-cultural de Duarte Lobo (156?-1646 )
mestre-capela da Sé Metropolitana Patriarcal de Lisboa IV


.




Este texto é uma tradução, incompleta, sem notas e observações, mas também sem atualizações, de estudo realizado pelo seu autor, Dr. Armindo Borges, em 1974 e 1975. A versão completa em alemão e em português, deverá ser publicada pela Academia Brasil-Europa/ I.S.M.P.S..


A divulgação deste trabalho, até hoje inédito, deve ser considerada sob dois aspectos.


Em primeiro lugar, deve ser vista no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa, dedicados à passagem, em 2013, dos 100 anos da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa (+) e dos 80 anos do Dr. Armindo Borges, respectivamente Presidente Honorária por Portugal e Vice-Presidente do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa desde a sua fundação, em 1985.


Em segundo lugar, este texto oferece um exemplo dos trabalhos referentes à pesquisa musical na esfera luso e brasileira realizados em meados da década de setenta na Universidade de Colonia, Alemanha, onde a Profa. Dra. M.A. Alves Barbosa e o Dr. Armindo Borges - assim como o editor desta revista - desenvolveram estudos e interagiram. Com a participação de professores e estudantes da universidade e de outras instituições, da Alemanha e de outros países, de portugueses e brasileiros residentes na Europa ou em visita, ali se desenvolveram intensos diálogos que deram origem a iniciativas de projeção internacional. Textos então preparados e discutidos em conferências encontram-se nos acervos da A.B.E./I.S.M.P.S. aguardando publicação.


O texto serve como testemunho das preocupações histórico-culturais e teórico-culturais daqueles anos. Foi desenvolvido pelo seu autor no âmbito de seus intentos de contextualização do vulto a que dedicou a sua dissertação de doutoramento: Duarte Lobo (156?-1646), mestre-capela da Sé Metropolitana Patriarcal de Lisboa e que obteve a sua formação em Évora.



 

Pe. Dr. Armindo Borges


Dr. Armindo Borges
No século XVI, a vida musical em Évora girava em dois eixos de irradiação cultural: a Côrte e a Sé catedral. Na Côrte , a cultura da música vocal e instrumental adquiriu proporções das Cortes européias. Na Sé, floresceram ao lado de organistas, mestre-capelas e professores da Escola de Música, muitos compositores de significado da polifonia vocal, que pelo seu estilo constituiram a "Escola de Évora".


Já existem alguns bons estudos sôbre a música que se cultivava na catedral de Évora. Ainda que esses estudos tenham-se ocupado quase que exclusivamente com pesquisas de arquivo, os dados biográficos e bibliográficos enriquecem os conhecimentos do cultivo musical e oferecem um retrato da valorização da música sacra nessa mais do que milenar igreja episcopal. Permanece para nós porém um enigma, a música que se cultivava na Côrte real. O que foi escrito a respeito, limita-se com algumas exceções, quase que exclusivamente à nomeação de testemunhos de escritos da época. São, sem dúvida, úteis e necessários para o historiador da música, mas insuficientes para uma valoração justa de seu conteúdo histórico. O historiador da música deve, para chegar a conclusões certas e válidas para a História da Música, partir na pesquisa da análise dos monumentos musicais. Ela oferece os elementos decisivos para uma ordenação exata de um compositor ou de uma obra na História da Música. Nem sempre, porém, é possível seguir esse procedimento. Isso mostra-se no caso especial de Portugal, pelo menos no que diz respeito a alguns séculos de sua história. Terremotos, incêndios, guerras e revoluções e por fim a incultura de administrações bárbaras da Igreja, do Estado e de instituições privadas destruiram para sempre a grande parte do patrimônio músico-cultural português. O que restou da música dessa época em Portugal, reduz-se a alguns poucos fragmentos, que não podem oferecer uma base representativa para um estudo acurado de seu estilo musical. Apesar de tudo, é indiscutível que a música, seja a vocal, seja a instrumental, teve um grande significado na residência real e na igreja metropolitana de Évora.


Para o brilho da música que se cultivava em Évora muito contribuiu a influência da escola franco-flamenga. As relações de comércio entre Lisboa e Antuérpia e outras cidades de então, razões históricas e dinásticas que uniam Portugal com o centro da Europa, em particular com a França e com Flandres, constituiram os pressupostos para que ali se sentisse a influência da arte franco-flamenga.


À época dos Descobrimentos, Lisboa foi o centro europeu do comércio ultramarino. Antuérpia, que já havia chamado a si a atenção dos comerciantes, desenvolveu-se a centro comeercial da Europa Central e, ao mesmo tempo, a elo de ligação entre a Europa Central e Lisboa. Através do intenso comércio marítimo entre Lisboa e Antuérpia, Portugal e a Europa Central muito se aproximaram entre si.


Já desde a sua fundação teve Portugal laços de união com a Europa Central. O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, foi um neto do Duque da Burgúndia e um bisneto de Robert II., rei da França. Cruzados de diferentes regiões da Europa, em especial da França, Inglaterra, Flandres e Alemanha, auxiliaram-no na Reconquista de Lisboa em 1147. D. Afonso Henriques casou-se em 1146 com Matilde, filha de Amadeus III., conde de Maurienne. A sua filha Matilde casou-se em 1184 com o conde Filipe de Flandres e, em 1194, após a sua morte, Eude IIII., o duque da Burgúndia. Ao redor de 1211, o Infante D. Fernando, filho do rei D. Sancho I., casou-se com Joana, condessa de Flandres. Em 1214, foi a Infanta D. Berengária, filha do mesmo rei, que tomou em matrimônio Valdemar, o rei da Dinamarca. O Infante D. Afonso, o posterior D. Afonso III., casou-se ao redor de 1238 com Matilde, condessa de Boulogne-sur-Mere, onde viveu até a sua nomeação a rei de Portugal em 1248. Em 1387, a Casa Real portuguesa ligou-se com a Casa Real de Lencastres na Inglaterra com o casamento de D. João I., o herói da Batalha de Aljubarrota, com D. Filipa, filha dos Duques de Lencastre, John von Gaunt e Branca de Lencasttre. Em 1430, já após o início dos Descobrimentos, a Infanta Isabel, filha de D. João I., casou-se com Filipe III., o Bom, Duque da Burgúndia. A filha extra-matrimonial de D. João I., Brites, casou-se com Tomás Fitzalan, o Conde de Arudel no ano de 1405 e, em 1415, Gilberto Talbot, Barão de Irchenfield. Em 1451, a Casa Real de Portugal uniu-se com a casa soberana alemã através do matrimônio da Infanta D. Leonor, filha do rei D. Duarte, com Friedrich III., o Imperador romano-germânico. Beatriz, filha de D. Pedro, Duque de Coimbra e neta de D. João I., casou-se entre 1450 e 1455 com Adolf von Cleve. Os vínculos da Casa Real de Portugal com Flandres e Alemanha prosseguiram através do casamento da filha de D. Manuel I., Infanta D. Isabel, com o imperador do Império Romano-Germânico e do rei da Espanha Carlos V., nascido e formado nos Países Baixos. A sua irmã Catarina havia-se casado um ano antes com o rei de Portugal D. Jõao III..O seu filho, o Infante D. João, casou-se em 1552 com a filha de Carlos V., Joana, da qual nasceu D. Sebastião. Em 1565, D. Maria, filha de d. Duarte, Duque de Guimarães, casou-se com Alexandre Farnese, Governador dos Países Baixos e Duque de Parma. E assim poder-se-ia continuar.


Já quase que por si impõe-se a tese: os vínculos comerciais e os elos da Casa Real portuguesa com aquelas da Europa Central, em particular com a Burgúndia, também influenciaram a musica de Portugal diretamente. Muito certamente convergiam no século XVI músicos de toda a Europa na Corte real em Portugal. D. Manuel I., deu ordem a um administrador para que procurasse em Flandres quatro bons tocadores de charamelas. Na sua Capela real cantavam e tocavam músicos de toda a Europa. Damião de Góis, humanista de renome internacional, refere-se com palavras de louvor a respeito da excelência de seus cantores e instrumentistas, vindos de todas as regiões da Europa e que se encontravam na Côrte de D. Manuel I para formar uma das melhores capelas de música de Côrte da época.


Damião de Góis, que também era um músico apreciado, era originado êle próprio das Flandres. Glareanus, com quem era ligado por amizade, louvava-o como um compositor excelente, dele tomando um motete a três vozes "Ne laeteris" para o seu famoso Dodekachordon. Em Antuérpia, onde atuou durante dez anos como secretário de uma fatoria portuguesa (1523-1533), entrou em contato com as mais significativas personalidades da vida cultural, em particular da música. Damião de Gois poderia ser assim visto como um dos mais importantes mediadores da Escola Franco-Flamenga em Portugal. Na sua casa em Lisboa reuniam-se músicos portugueses, flamengos, franceses e alemães. Ali cantavam-se missas e motetes de mestres franco-flamentos. As obras de Josquin, Gombert, Crequillon, Clementes non Papa, Verdelot, Orlando di Lasso, mas também de Palestrina e outros chegaram assim a Portugal e à Península Ibérica em geral. Em Portugal, os mestres da Polifonia dependiam tanto da Escola Franco-Flamenga que se usava para a classificação da sua música, a denominação de "Musica Jusquina". Tudo isso são pressupostos que não se podem perder de vista no estudo da música vocal e instrumental dessa época em Portugal.


A música vocal com acompanhamento de instrumentos da Renascença teve o seu início, como conhecido, na Europa, dois séculos antes. Ela teve um grande eco em Portugal e manteve-se aqui até o fim do século XVI. Sobretudo nos anos da regência de D. João II. (1481-1495), D. Manuel I. (1495-1521) e D. João III. (1521-1557) fazia-se música na Corte portuguesa do tipo das outras Cortes européias, e o seu cultivo deve ter alcançado a sua culminação nesse período.


As formas típicas dessa música em Portugal eram o "Vilâncico" e o "Romance". A distribuição mais comum das vozes parece ter sido a seguinte: Tiple, Tenor e Contratenor - uma voz, que de uso caia ao Tenor, e duas vozes instrumentais. Os instrumentos de acompanhamento eram não apenas de percussão de diferentes espécies, como alaúdes, guitarras, e havia também aqueles da família das violas; além desses -, órgão, harpa, cornetas, charamelas e gaita de foles, e, para ocasiões solenes, trompetes.


Os compositores mais famosos dessa música foram Tristão da Silva, Garcia de Resende, Mateus de Fontes, Gil Vicente, João de Badajoz, Gonçalo de Baena, Jorge de Montemor, Bartolomeu Trozelho, Alexandre de Aguiar, Domingos Madeira e António Carreira. Nem todos estiveram com a Côrte em Évora. Sabe-se, porém que para além do evorano Garcia de Resende, Gil Vicente e com a maior probabilidade tambem João de Badajoz, Gonçalo de Baena, Bartolomeu Trozelho e António Carreira frequentaram a Côrte quando esta se encontrava em Évora e onde davam o melhor de sua arte para o brilho de suas festas e vesperais artísticas.


O poeta e escritor Garcia de Resende foi não apenas autor da coleção "Cancioneiro Geral"; foi êle também um músico muito apreciado na Côrte. Sabe-se que compôs pelo menos dois "Vilancetes". O primeiro: "De Garçia de rresende a huu propoposito em q fez seste vilãçete, a q tam bem fez o ssom" ; o segundo, dedicado a D. Esperança: "Garçia de rresende....fezlhe este vilançete, & mãdoulho entoado tam bem por ele". Ainda que o "Cancioneiro Geral" não apresente a música junto aos poemas, sabe-se que as rimas eram cantadas a quatro vozes e que a técnica era sobretudo a da imitação, empregando-se até mesmo por vezes o cânone.


É seguro que a música no teatro de Gil Vicente tinha uma função muito importante. Cerca de 250 intervenções musicais ornamentam os seus "Autos". Elas compreendem diferentes formas musicais, como o "Vilâncico", a "Cançoneta", o "Romance", a "Cantiga", a "Ensalada", a "Chacota", a "Folia", a "Entrada" e outras. Essas peças musicais são em geral de cunho popular, adequadas ao círculo de pessoas e ao meio cênico do seu teatro. Crê-se que Gil Vicente foi êle próprio o compositor de algumas dessas peças musicais. Pelo menos é mencionada expressamente uma "Cantiga" no "Auto da Sibilia Cassandra" como sendo composta por êle. *

Das ca. de 250 partes musicais que se executavam nas peças teatrais de Gil Vicente, conhece-se hoje apenas ca. de 20, pois estão contidas no "Cancioneiro Musical de los Siglos XV y XVI". Até ao ponto que se conhece dessa música, o estilo das peças a várias vozes era menos imitativo do que na arte do Madrigal. Pode-se até mesmo dizer que predominava em geral a estrutura homofônica.


João de Badajoz foi um compositor muito celebrado na Côrte de D. João III. Ainda que não se tenha documentos de sua presença na Côrte em Évora, levanta-se essa hipótese, pois pertenceu por muitos anos à Côrte, em particular numa época em que esta se mudava frequentemente para Évora. Segundo Garcia de Resende, Badajoz deve ter sido um dos músicos mais famosos na Côrte portuguesa. Gil Vicente refere-se a êle na sua farsa "Auto de Inês Pereira" com palavras de louvor.


Badajoz compôs um "Romance"* e, no "Cancioneiro Musical de los Siglos XV y XVI", existem oito peças musicais que lhe são atribuídas.


Gonçalo de Baens, um músico de câmara de D. João III., organista e compositor, também deve ter conhecido a Côrte de Évora. Assim, pelo menos, o faz supor um documento proveniente da chancelaria de D. João III, em Évora.  Da sua atividade como compositor nada se sabe, mas supõe-se que foi autor de quatro composições, mencionadas no "Cancioneiro Musical de los Siglos XV y XVI" de Barbieri com o nome "Baena".


António Carreira, um dos maiores músicos portugueses do século XVI, obteve a sua formação musical na Côrte real, onde foi menino cantor à época de D. João III e mais tarde mestre dos meninos cantores e mestre-capela real sob D. Sebastião, D. Henrique e Filipe I de Portugal. A sua estada em Évora pode ser presumida já pelo fato de ter passado toda a sua vida a serviço da Côrte. Na Biblioteca Musical de D. João IV existiam alguns "Vilâncicos" de Anónio Carreira.


De importância não menor foi a música vocal religiosa que se cultivava na Capela do Palácio Real. Os reis portugueses davam a ela acurada atenção e tomavam todas as mediadas para que as solenidades litúrgicas - missa e Ofício - fossem celebradas na Côrte com grande solenidade. Segundo o mencionado testemunho de Damião de Góis, cantores e músicos de todas as regiões da Europa encontravam-se na Côrte de D. Manuel I, formando uma das melhores capelas da época. Deve-se supor que aqui a polifonia vocal haja alcançado um alto nível. Infelizmente, não se pode, por menos por enquanto, chegar a um julgamento seguro sôbre essa música; pois quase todas as obras da Capela Real do século XVI desapareceram. Temos apenas notícias cheias de lacunas a respeito de algumas dessas obras.


André de Resende, que, como se diz, foi professor dos Infantes D. Afonso, D. Duarte e D. Henrique, os filhos de D. Manuel I, deve ter escrito um Ofício de S. Gonçalo e um outro da santa Rainha Isabel. João Fernandes Fermoso, capelão de D. João III, compôs um "Passionarium" (Lisboa 1543). Nesse e no outro caso tratou-se de composições a uma só voz no estilo do antigo canto litúrgico.


Pero do Porto, mestre de música nas catedrais de Sevilla e dos Reis Católicos, mais tarde então em Portugal mestre dos meninos cantores da Capela Real e mestre-de-capela do Cardeal-Infante D. Afonso, foi provavelmente o famoso compositor do qual fala João de Barros no seu "Breve Summa de Geographia da Comarca de Entre Douro e Minho". O seu motete "Clamabat autem Jesus" foi classificado por João de Barros de forma laudatória como "principe dos motetes"*.


Além do já citado Damião de Góis, do qual apenas conhecemos três motetes, sabe-se que Heliodoro de Paiva foi um compositor muito produtivo. Êle compôs muitas missas e motetes. Alguns deles encontram-se na "Biblioteca Geral" da Universidade de Coimbra.


Se a pesquisa da música vocal do século XVI em Portugal ainda se encontra hoje em estado insuficiente, podendo-se dizer que tudo ainda se encontra por fazer, o mesmo não se pode dizer da música instrumental, sobretudo da música para instrumentos de tecla. Devemos em especial ao renomado musicólogo M.S. Kastner estudos essenciais que se baseiam nos monumentos musicais daquele tempo. Deles conclui-se que os testemunhos de Damião de Góis, do Vihelista espanhol Luys Milan e outros músicos famosos dessa época realmente corresponderam ao que acontecia na Côrte portuguesa.


Apesar desses estudos valiosos, a pesquisa da música instrumental do século XVI em Portugal continua ainda para trás daquela do país vizinho, a Espanha. Aqui há um exército de famosos musicólogos que abriram ao mundo os tesouros da música espanhola dos anos de ouro da Península Ibérica.


Em Portugal, porém, poucos musicológos estão preparados para a pesquisa mais séria. Assim, até hoje não possuímos uma visão geral da música do século XVI, que, como é conhecido, desempenhou um papel tão importante na Côrte portuguesa. Lembra-se que em Lisboa, à época de D. Manuel I., havia três organeiros e doze artesãos de manicórdios. Em meados do século dezesseis era o número de artesãos e comerciantes de violas. D. João III. tinha a seu serviço um construtor de Cembalo, o holandês Copijm de Holanda. Deve-se somar a isso os instrumentos que foram introduzidos dos Países Baixos e de outros países da Europa. Tudo isso não teria sido possível, se em Portugal a música instrumental não tivesse sido intensamente praticada. No contexto da tradição ibérica, Portugal tinha também a sua música para ensembles instrumentais, para instrumentos de tecla e para guitarra.


Do fato de hoje não possuírmos obras para ensembles instrumentais de compositores portugueses do século XVI, não se pode concluir que não tenha havido música instrumental desse tipo. Sabe-se que seis instrumentalistas estavam a serviço de D. João III. Já esse número de músicos teria sido suficiente para formar um conjunto instrumental. Muito frequentemente encontramos nos documentos das chancelarias reais dos reis portugueses a expressão "músico da câmara de El Rey". Subentendia-se com isso os músicos que tocavam no conjunto de câmara do rei. D. João III. tinha ainda mais músicos a seu serviço. A êles contavam-se 15 musicantes, que tocavam charamelas, sacabuxas, etc., além de 12 trompetistas e 9 timpanistas.* Um conjunto instrumental desse tipo podia apresentar-se nas "Entradas" ou na abertura das vesperais festivas. De fato, Gil Vicente, no início de sua tragicomédia "Nau de Amores", menciona uma "Entrada", a assim-chamada "Entrada de Lisboa" "com grande aparato da música".


Até finais do século XVI, o repertório da música instrumental em Portugal, em particular da música para instrumentos de tecla, consistia, segundo a opinião de Santiago Kastner, dos seguintes gêneros: - preâmbulos, cujo principal objetivo era o de dar entoação aos cantores de coro; glosas ou transcrições figuradas de motetes, das quais na primeira metade do século XVI se desenvolveram o Tento ou o Ricercare; glosas ou transcrições figuradas de todo o tipo de obras vocais; transcrições, glosas e "diferencias" ou variações de cantos populares e profanos, música, que em parte se originara da Vihuela e da Guitarra; danças profanas, em particular aquelas que tinham a sua origem em Portugal - a Folia, a Chacota, o Vilão - assim como danças de outros países, como a Pavana, a Gallarda e outras.


Lendo-se as crônicas dos reis do século XVI até à era filipina, encontra-se ali a citação de um grande número de organistas e tecladistas. Isso corrobora a nossa suposição de que a música desempenhou uma função de predominância na Côrte portuguesa no século XVI.  Ao serviço de D. Manuel I. encontramos os nomes de Arriaga e Luis de Santa Maria; a serviço de D. João III. estavam o Mestre João, Aleixo de Momperes, os mencionados João de Badajoz e Gonçalo de Baena, além de Joannes de Burgumão, de ascendência alemã, João de Vila Castim, Diogo de Aranda, provavelmente um espanhol, Fernão Martins Albernaz e Francisquinho, o Cego; a serviço de D. Sebastião mencionam-se os nomes de Afonso da Silva, António do Valle, Diogo Luiz e António Carreira, que serviram a diferentes reis. Fora esses, pode-se citar João Luiz, organista do erudito Infante D. Luiz, e Paula Vicente, filha de Gil Vicente, organista da rainha D. Catarina, a espôsa de D. João III.


Muitos desses organistas e mestres de instrumentos de teclado devem ter frequentado a Corte de Évora, como Luiz de Santa Maria e o já citados João de Badajoz, Gonçalo de Baena e António Carreira.


Baena deve ter sido o autor de uma obra pedagógica, "hua obra e arte para tanger". Trata-se aqui de uma espécie de método e de exercícios para tocar-se provavelmente o órgão e outros instrumentos de tecla. Isso permite supor que foi também professor de música. A obra não é porém mencionada em nenhum outro lugar, apesar de ser citada em documento outorgado de Évora para uma permissão de impressão da Chancelaria de D. João IIII. Provavelmente não chegou a ser impressa, pois não foi até hoje por ninguém mencionada.


As obras conservadas de António Carreira, o "Cabezón lusitano",  foram publicadas por Santiago Kastner. Essas composições de Carreira, segundo Santiago Kastner o grande rival de Cabezón, demonstram orientação internacional: "If we compare the 'Tentos' by Carreira with those of Cabezón, we realize that although there are numerous stylistic analogies betweeen the two, the Portuguese includes elements which come from other European schools of kjeyboard music, and which found little or no repercussion in Spain."


Uma característica da música instrumental da Península Ibérica é a música para guitarra em Portugal e para Vihuela na Espanha. A arte dos guitarristas e vihuelistas fundamentou a "Diferença"*, a canção profana, que influenciou a Variação instrumental dos virginalistas ingleses.


Com D. Pedro de Coimbra começa a Época de Ouro dos guitarristas portugueses em sequência de uma plêiade de virtuoses e compositores como Garcia de Resende, António da Silva, Afonso da Silva, Egas Parlimpo, Peixoto la Pena, Pero Vaz, Manuel de Vitória e outros.


Além do já citado Garcia de Resente nada pudemos no âmbito das pesquisas encontrar algo a respeito da presença desses artistas na Côrte de Évora. Ainda que não possuimos nenhum documento musical dessa época, que nos possa informar a respeito do estilo e do valor dessa música, algo é certo: a arte dos guitarristas portugueses do século XVI era conhecida muito além das fronteiras do país. De Peixoto da Pena de Trás-os-montes, dizia-se que era "o mais famoso instrumentista que se conhece no seu seculo".  Como musicante na Corte de Carlos V, entusiasmou com a sua arte não apenas os amantes da música, mas também os próprios colegas e conhecedores. Também Alexandre de Aguiar do Porto, que encontrava-se a serviço do Cardeal D. Henrique e D. Sebastião, indo mais tarde à Côrte em Madrid, muito contribuiu à fama dos guitarristas portugueses e da música portuguesa em geral. A sua apresentaçãp junto com outros músicos portugueses no convento de Guadalupe por ocasião do encontro entre D. Sebastião e Filipe II da Espanha durante as festas religiosas e profanas do Natal de 1576, surpreendeu os espanhóis que, entusiasmados com a música portuguesa, muito os louvaram.


No grande número de artistas, que alegravam com a sua arte a família real nas suas noites artísticas e as festas da Côrte, configurando solenemente os atos de culto, não podem faltar os espíritos especulativos, os teóricos musicais.


Aires Barbosa, o grande humanista, Magister da Universidade de Salamanca e professor dos Infantes D. Henrique e D. Afonso na Côrte de Évora, escreveu "Epometria", uma obra, que trata da gênese dos sons e que foi publicada em Sevilha em 1520.


João de Barros, o grande mestre da língua portuguesa, que estudou Humanidades na Côrte em Évora, fala em algumas de suas obras também sôbre a música. No "Diálogo em louvor da nossa linguagem" refere-se João de Barros à música, quando procura demonstrar as diferenças entre tom e rítmo nas mais importantes línguas românicas. Uma outra obra, na qual João de Barros demonstra os seus profundos conhecimentos da música é a "Ropica Pnefma", uma espécie de alegoria moral em forma de uma conversa entre o Tempo, o Entendimento, a Vontade e a Razão. Aqui refere-se, no local a Razão fala do saber humano, à teoria dos intervalos, sendo citados os nomes de Ockeghem e Josquin, compositores da Escola Franco-Flamenta. Outras menções sôbre os músicos encontram-se em outras obras, como no "Panegírico da Infanta D. Maria" e na "Gramática da Língua Portuguesa".


Enquanto se cultivava na Côrte em particular a música vocal profana e a música instrumental para ensemble e solistas, floresceu na catedral de Évora sobretudo a polifonia vocal da assim-chamada "Escola de Évora".


É conhecido que na Época de Ouro da Polifonia vocal sacra em Portugal dos séculos XVI e XVII existiram dois procedimentos composicionais. Um seguia a escrita horizontal-polifônica das vozes, o contraponto puro, como o haviam exercitado os mestres da arte franco-flamenga. Os compositores da Sé de Évora seguiam esse procedimento, do qual o nome "Escola de Évora" derivou para caracterizar esse estilo de composição em Portugal. O outro procedimento, que surgiu um século  mais tarde, era o da estruturação vertical-homofônica das vozes. Era o método dos compositores do Colégio dos Reis na Côrte Ducal em Vila Viçosa, do qual derivou o nome "Escola de Vila Viçosa" para caracterizar esse estilo de composição em Portugal.


Sendo assim, a "Escola de Évora" tendia àquela da Escola Franco-Flamenga, o que, de resto, não surpreende. Já se mostrou como a Côrte portuguesa encontrava-se em contato dos mais estreitos com as outras Cortes da Europa Central, em particular com a franco-flamenga. Sabe-se, também, que os músicos dessa e de outros países da Europa estavam a serviço da Côrte portuguesa e que, reciprocamente, músicos portugueses iam a esses países. Um dêles foi Damião de Góis, que após o seu retorno a Lisboa costumava reunir na sua casa músicos franceses, flamentos, alemães e portugueses, onde cantava-se missas e motetes de compositores franco-flamengos. Por isso supõe-se que as obras de compositores franco-flamengos propagaram-se em Portugal sobretudo através da Côrte portuguesa. Assim, também o contato dos compositores da catedral de Évora devem ter-se solidificado sobretudo através da Côrte. Essa afirmação torna-se mais sólida através do fato de que Évora durante a dinastia Burgúndia desde D. Sancho I., 1185-1383, e da dinastia Aviz (1385-1580) tornara-se o local preferido dos soberanos portugueses e da Côrte. Além do mais, a catedral de Évora nessa época possuia, ao lado de músicos portugueses, franceses, italianos e espanhós também flamengos, que ali atuavam como cantores e instrumentistas. Um deles, o flamengo Estevão de Gante, tocava ali de forma documentada as charamelas em 1547.


A "Escola de Évora" era assim diretamente dependente da Escola Franco-Flamenga, mãe de todas as escolas que seguiam o seu procedimento de estruturação musical. Nesse contexto, a suposição de M. de Sampayo Ribeiro  e J. Augusto Alegria surge como insustentável, segundo a qual a "Escola de Évora" seria dependente daquela de Sevilla. A Escola de Sevilla e outras da Península Ibérica eram elas próprias fortemente influenciadas pela franco-flamenga. Antes pode-se partir do fato de ser a "Escola de Évora" aparentada com a Escola de Sevilla, pois ambas sorveram da mesma fonte.


Com isso não se coloca em questão ter existido contatos estreitos entre as escolas de Évora e de Sevilla ou outras escolas da Península Ibérica. É fato de que músicos espanhóis estavam a serviço da Côrte portuguesa ou da catedral como mestre-capela ou organistas e vice-versa, que músicos portugueses atuavam na Côrte em Madrid e em catedrais espanholas. Esse contato esteito entre as escolas portuguesas e espanholas contribuiu certamente a outras novas iniciativas a nível ibérico e criou traços fundamentais de um estilo ibérico.


Graças a J. Augusto Alegria tem-se estudos valiosos sôbre compositores e mestres da "Escola de Évora". Êles nos elucidaram e ofereceram dados e fatos de sua vida. Algumas até hoje desconhecidas obras foram reveladas e libertas das poeiras dos arquivos. Mas até hoje não se tem estudos fundamentais sôbre a técnica de composição das poucas obras do século XVI conservadas.


As mais antigas composições que hoje possuímos da "Escola de Évora" são as de Mateus de Aranda, o mestre-capela da catedral e mestre de música da Claustra de 1528 a 1544. Trata-se do motete a quatro vozes "Adjuva nos" e de um fragmento do Credo de uma missa a quatro-vozes - "Et incarnatus est" e "Et vitam futuri saeculi. Amen". Ambos foram descobertos há pouco por Alegria no Arquivo distrital de Évora.* O motete e o fragmento do Credo empregam na voz superior um Cantus-firmus, cuja melodia e ritmo foi elaborada livremente. Enquanto porém no motete "Adjuva nos" predomina quase que exclusivamente a técnica homofônica, temos no fragmento do Credo com a sua técnica da imitação transcorrente uma estrutura típica da técnica polifônica.


Até à sua transferência para Coimbra, onde assumiu uma cátedra de música na universidade, Mateus Aranda ocupou ambos os cargos na Sé, o de mestre-capela e o de mestre de música da Claustra. Desde então, os cargos passaram a ser exercidos por diferentes mestres. Assim, Mateus de Aranda teve como sucessores o P. Manuel Dias como mestre-capela da catedral e Francisco Velez como mestre de música da Claustra.


De Manuel Dias não conhecemos composições, nem temos qualquer notícias que tenha-se dedicado à criação sonora. Ao contrário, Francisco Velez deixou traços de sua arte em um Codex que se encontra no convento de Arouca. Ali se encontra um Aleluia no segundo tom para quatro vozes de sua autoria.


Pelo seu cargo, o mestre-capela da Sé era em regra também compositor. Uma grande parte do Repertório de seu coro provinha de obras de sua própria pena. Infelizmente não podemos constatar plenamente esse fato no que diz respeito à Sé de Évora no século XVI. Mesmo que não possuímos hoje nenhuma obra de alguns deles ou pelo menos uma simples notícia que tenham também se dedicado à composição, é melhor assumir que essas obras ou notícias tenham-se perdido do que dizer que esses mestres-capela não tenham sido compositores.


Um desses mestres-capela, do qual não temos hoje nenhuma obra, sem falar de alguma notícia de que tenha atuado como compositor, é André Nunes, o sucessor de Manuel Dias. O mesmo não pode ser dito do seu sucessor, Cosme Delgado. Delgado, que tinha uma excelente voz, foi um compositor excelente. De uma notícia do Capítulo da Sé de 3 de março de 1575 sabe-se que compôs um livro de Lamentações e Lições da Semana Santa.* Segundo Barbosa Machado, as suas composições eram em grande número. Elas compreendiam missas, motetes e Lamentações e teriam sido herdadas pelo convento de Espinheiro, nas proximidades de Évora. * Mas nenhuma dessas obras chegou até hoje a nós.


Com o sucessor de Francisco Velez, a "Escola de Évora" alcançou uma fase de grande brilhantismo. Manuel Mendes, mestre de música da Claustra da Sé (1578-1589) foi o criador de uma ilustre geração de músicos como Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Manuel Cardoso e muitos outros. Sabemos que Manuel Mendes passou por testamento as suas obras a Filipe de Magalhães, com exceção daquelas que havia composto para o serviço da capela do Cardeal D. Henrique, que deixou de herança para a Sociedade de Jesus.


Em carta a Baltazar Moreto, Tomé Álvares testemunha que as obras deixadas por Manuel Mendes a Filipe de Magalhães compreendiam livros de missas e Magnificats. Nessa carta, Tomé Álvares sugere ao impressor de Antuérpia a sua publicação. Mas não se chegou a fechar o contrato e as obras permaneceram sem publicação.


Diogo Barbosa Machado descreve as composições de Manuel Mendes como: Magnificats para quatro vozes, missas para quatro e cinco vozes e motetos para muitas vozes. Algumas dessas composições encontravam-se na biblioteca musical de D. João IV., como os cinco motetos "Assumpsit Jesus" (5 vozes), "Ductus est Jesus" (5 vozes), "Doleo super te" (5 vozes), "Peccavi" (5 vozes) e "Tu es Petrus" (6 vozes); também uma Lição para o Officium pro defunctis "Responde mihi" (8 vozes).* Mas todas essas criações se perderam, permaneceram apenas duas missas a quatro vozes, "De feria" e "Pro defunctis*, e ddois motetes, "Asperges" para cinco vozes e *Alleluia* para quatro vozes. São composições nas quais as técnicas da linguagem polifônica predominam: estruturação com Cantus-firmus, Imitação transcorrente e Imitação livre.


Quanto à música para órgão que se cultivava à época na Sé de Évora, pode-se dizer que o Preâmbulo, a Glosa e o Tento, que se desenvolvera da Glosa na primeira metade do século XVI, eram as formas ali mais cultivadas. Fazer um julgamento justo sôbre elas, sem falar do seu conteúdo e estilo não é possível. Pois daquilo que se criou, praticamente nada chegou até nós. Como se sabe, o repertório da música de órgão em Portugal e na Espanha era propriedade do organista e não era assim conservado nos arquivos das capelas musicais das igrejas e da Sé. Inseguro, esquecido e entregue ao descuido e à incultura dos herdeiros, desapareceram essas obras no decorrer dos anos, delas restando apenas a memória dos seus grandes mestres. Assim, conhece-se dos organistas da Sé nomes como Mestre Fr. Manuel, Francisco de Menezes, Manuel de Barbança, Calixto Lopes, Baltazar Estaço, Francisco Freire, Francisco Lopes, Francisco Boutão e o assim-chamado "Organista Cego".


Ainda que o órgão após a sua introdução na igreja do Ocidente, ao redor do sétimo, o mais tardar no oitavo século, gradualmente tornou-se o instrumento por excelência do serviço divino, também outros instrumentos tiveram um amplo emprêgo no culto. Êles foram, como se sabe, sobretudo empregados como acompanhamento "colla voce" da polifonia vocal ou em substituição de uma ou mais vozes, também como intercalações puramente instrumentais. Mas não se sabe nada de exato. Também pouco se está em condições de avaliar as peças musicais tocadas só por instrumentos no serviço divino. Tem-se porém certeza que na catedral de Évora havia um ensemble musical constituído de instrumentos como oboés, tromba, sacabuxa, baixão, contrabaixo e outros. Nos livros paroquiais da cidade de Évora se encontram nomes de pelo menos 21 músicos da segunda metade do século XVI que tocavam no conjunto instrumental da catedral.


O brilho da prática da música na catedral de Évora não seria compreensível sem o estudo metódico e aprofundado da teoria e sem a praxis permanente e disciplina do contraponto, do canto e de instrumentos. Fonte de todos esses conhecimentos teóricos e práticos era a Claustra da catedral. Os seus excelentes mestres, Mateus de Aranda, Francisco Velez e Manuel Mendes, assim como os mestre-capelas propriamente ditos, como Cosme Delgado, deixaram provas de sua experiência, de seu saber nos tratados que escreveram.


De Mateus de Aranda chegaram a nós dois tratados, impressos nos anos 1533 e 1535 na tipografia de German Gallarde. O primeiro trata do antigo canto eclesiástico, o segunto do canto mensurado.


Também Francisco Velez escreveu um tratado de similar conteúdo. Nós o conhecemos porém apenas através de um alvará de D. Sebastião de 8 de março.


De Manuel Mendes havia um tratado na não mais existente biblioteca musical de D. João IV. Êle, porém, foi destruído, como se sabe, no terremoto de 1 de novembro de 1755.


Também não chegaram a nós os tratados atribuídos por Diogo Barbosa Machado ao mestre-capela Cosme Delgado e André Escobar, tocador de charamelas no conjunto instrumental da catedral. Cosmo Delgado teria escrito um "Manual de Música". Por outro lado, André Escobar teria sido o autor de uma "Arte de musica para tanger o instrumento da Charamelinha". O livro é uma espécie de método para o aprendizado de instrumentos do tipo do oboé. Isso faz-nos supor que André Escobar também foi um pedagogo musical.


À mesma época em que a polifonia vocal na catedral alcançava o seu florescimento graças a seus excelentes mestres, desenvolveu-se na universidade o teatro jesuítico, no qual também a música participava.


Se no teatro de Gil Vicente a música em regra era simples e popular, adaptando-se assim ao mundo da cena na qual entrava, o mesmo não pode ser dito do teatro jesuítico. Este era um teatro de elite, em latim, com muitos papéis e um aparato cênico complexo. Por conseguinte, também a música correspondia às exigências de um teatro desse tipo.


Já nos dramas dos protestantes na Alemanha e em outros países germânicos havia uma intervenção da música, em particular de coros, com rica encenação. Os Jesuítas quiseram ir tão longe quanto possível na apresentação, em luxo e riqueza, como também no aparato musical. A partir das peças teatrais que se executavam na universidade de Évora, a intervenção da música consistia em canto de solistas, em coros, danças e no emprego de instrumentos musicais.


A peça teatral pastoril "Poychronius", em cinco partes, de P. Luiz da Cruz é um exemplo da participação de solistas no teatro jesuítico. Aqui se apresentavam musicalmente por vezes cinco pessoas.


Típico no teatro jesuítico são os coros, que entravam no decorrer das cenas e sobretudo no fim de cada ato. A sua intervenção é quase sempre ligada com o ponto culminante de uma cena ou ato. "Polychronius" é também um exemplo característico para a tarefa que tinham os coros no teatro jesuítico. Essa peça pastoril, na qual participavam 25 pessoas, tinham seis diferentes grupos corais, que no decorrer dos cinco atos do teatro apareciam em cena: o coro celestial, o coro dos anjos, o coro dos profetas, o coro das sibilas e por fim um coro de homens e de meninos.


As danças são menos frequentes. No "Polychronus" há apenas duas, uma no segundo e outra no quinto ato. Frequente é porém o uso de instrumentos para o acompanhamento das vozes solistas ou dos coros. Às vezes pode surgir um conjunto instrumental ou instrumentos solistas relacionados com o conteúdo simbólico. Assim, no quinto ato das tragédias "Absalon" de Miguel Venegas, surgem trombones para chamar o povo ao enterro de Absalom.


Para completar essa visão sumária da música em Évora no século XVI seria preciso agora relatar sôbre a música nas outras paróquias de Évora - São Pedro, São Tiago e Santo Antão - assim como também nos conventos, colégios e na igreja da universidade. Mas isso ultrapassaria as dimensões deste texto. Este panorama da música na Côrte, na catedral e no teatro jesuítico na universidade teve o escopo de salientar o mais importante, o característico e o mais representativo da cultura musical na cidade de Évora, o universo no qual Duarte Lobo fêz os seus estudos humanísticos, teológicos e musicais.




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Borges, Armindo. "Música e músicos em Évora como centro cultural, suas dimensões e irradiações ".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/26 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Musica-em-Evora.html