Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Documentos de A. Borges©


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Fotos: Acervo particular A.Borges ©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/19 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3090




Cultura e música no Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo

em época de crescente influência norte-americana e mudanças sócio-culturais nos Açores
Um plano para a Vila da Praia da Vitória:
"A música a serviço da cultura e educação dum povo" (1961)


Armindo Borges: 80 anos (2013). Dos Açores a Roma e à Alemanha, no Canadá, Brasil e em Portugal I







Documentos de A. Borges©
Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à passagem, em 2013, dos 80 anos do teólogo, regente, compositor e musicólogo açoriano Pe. Dr. Armindo Borges.


Essas artigos procuram trazer a consciência o significado de sua trajetória de vida, de sua obra e de suas múltiplas atividades nos Açores e nos diferentes contextos internacionais em que atuou. Concomitantemente, trazem à luz a projeção internacional dos Açores e o papel que a cultura açoriana desempenhou em interações e processos culturais das últimas décadas.


Membro fundador e Vice-Presidente do instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S. e.V.), foi protagonista desde 1975 das interações e conferências que, centralizadas em Colonia, determinaram iniciativas posteriores e levaram à constituição do instituto no "Ano Europeu da Música" de 1985.


Como pároco da Missão Portuguesa de Colonia, e assim vulto de liderança de uma das maiores comunidades portuguesas da migração européia, possibilitou e dirigiu eventos culturais e sacro-musicais na igreja sob a sua responsabilidade - monumento arquitônico do Românico na Europa -, celebrou missas solenes com a apresentação de obras-mestres de autores portugueses por ocasião de eventos do instituto, organizou encontros e recepções de pesquisadores portugueses e brasileiros pela comunidade, participou ativamente como conferencista de colóquios e simpósios, representando a ponte entre os trabalhos do I.S.M.P.S. e a comunidade de língua portuguesa da imigração centro-européia.


Membro das mais significativas organizações voltadas à música sacra, é membro eleito da Consociatio Internationalis Musicae Sacrae, Roma, da Associação Geral de Santa Cecília para Alemanha (Allgemeiner Cäcilienverband für Deutschland) e da Church Music Association of America, Saint Paul, EUA, é também membro de sociedades musicológicas da Alemanha (Gesellschaft für Musikforschung) e da Itália (Società Italiana di Musicologia, Roma), tendo colaborado estreitamente com iniciativas da Sociedade Brasileira de Musicologia.

Autor de trabalhos musicológicos, é também compositor de missas, motetes e obras para órgão. Participou como conferencista representando os Açores no II Congresso Brasileiro de Musicologia, relizado no Rio de Janeiro, em 1992. Em 2002, co-dirigiu o Colóquio Internacional "Dimensões Européias da Música Portuguesa" da A.B.E. por motivo da celebração do Porto como Capital Européia da Cultura. Desde 2003 é mestre da
Capella Olisiponensis da Basílica dos Mártires, Lisboa.


 

Entre as datas celebradas no ano de 2013, a passagem, a 30 de março, dos 80 anos do teólogo, regente, compositor e musicológo  açoriano Pe. Dr. Armindo Borges, membro fundador e Vice-Presidente do I.S.M.P.S., merece ser lembrada com particular atenção no âmbito dos estudos culturais do mundo de língua portuguesa.


A sua vida e suas atividades, que o dirigiram dos Açores aos principais centros da música sacra e da musicologia na Europa, a sua dinâmica atuação na orientação de comunidades portuguesas da imigração que o levou a organizar os maiores festivais de associações culturais portuguesas até então realizados na Alemanha, revelam-no como um dos vultos da história cultural recente dos Açores que mais se distinguiram por suas projeções internacionais e pela influência que exerceu no mundo português e de seus descendentes fora de Portugal.


Estudar a trajetória de sua vida adquire significado não apenas para os estudos açorianos, como também para os portugueses e mesmo europeus em geral nos seus elos com o mundo insular atlântico.


Os documentos de sua infância e juventude nas ilhas açorianas fornecem importantes subsídios para reconstruções do passado cultural açoriano dos anos 50 e 60 e abrem novas perspectivas para estudos de contextos culturais de maiores dimensões.


Êles não possuem apenas interesse como fontes para estudos de um passado encerrado das ilhas, aquele do período pré-conciliar, mas revelam a transformação da vida social, cultural e religiosa dos Açores nas primeiras décadas da segunda metade do século XX, marcadas que foram sobretudo pela emigração à América do Norte e consequente influência americana de retorno nas sociedades de origem.


Assumem, assim, extraordinária relevância para análises de processos migratórios e de mudanças culturais em comunidades portuguesas das décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra, oferecendo subsídios para o reconhecimento de paralelos e diferenças com desenvolvimentos em outras regiões do mundo português ou de formação cultural portuguesa, inclusive para as comunidades luso-brasileiras.


Armindo Borges viveu na sua infância e juventude em universo cultural que alcançava sob vários aspectos os seus anos de culminação, imbuído de anelos de aperfeiçoamento de instituições, de desenvolvimento da vida cultural e musical, de aprofundamento da vida espiritual, de alcance de erudição e de otimização de aptidões artísticas. Na certeza do alcançado, inquestionável nos seus fundamentos e na sua direção, a mente e os corações eram dirigidos ao aperfeiçoamento em continuidade, à síntese do passado, a conservação e promoção de valores.


Armindo Borges, na sua formação e nas suas atividades como estudante e jovem sacerdote transcorreram no ápice de um desenvolvimento de décadas marcado por ideais da reforma ou restauração sacro-musical e cujo marco principal havia sido o Motu Proprio de Pio X, de 1903.


Imbuído de ideais, repleto de energia e entusiasmo para a sua concretização a serviço do aperfeiçoamento pessoal, dos colegas seminaristas, da juventude e da sociedade, as suas iniciativas, cujos documentos revelam esses ideais de perfeição, ordem e promoção, surgem como exemplos máximos de uma situação cultural e mental que perdia gradualmente a sua estabilidade e que entraria em desenvolvimento dinâmico de profundas mudanças com o Concílio Vaticano II e com os abalos do Império colonial português, com as guerras no decorrer das de-colonizações e, por fim, com a Revolução em Portugal.


Armindo Borges saiu dos Açores em 1963, ano do início do Concílio, ano que foi também decisivo para Goa, Daman e Diu, a antiga Índia Portuguesa. A sua saída não se inscreve porém nesses desenvolvimentos de dimensões mundiais de tão profundas consequências futuras, mas foi ainda repleta do espírito da época que chegava ao fim, do desejo de aperfeiçoamento pessoal, espiritual e, sobretudo, sacro-musical.


A ida a Roma sob os auspícios do Instituto Cultural de Ponta Delgada para estudos musicais no Instituto Pontifício de Música Sacra significava não apenas pessoalmente o coroamento de uma vida até então marcada por diligência e iniciativas de sucesso, mas para toda a sociedade, que nêle via uma personalidade altamente promissora para o futuro da vida cultural dos Açores.


Para poder-se compreender o significado dessa ida de Armindo Borges para o centro da Igreja e da música sacra nas suas dimensões regionais torna-se necessário recapitular alguns aspectos da sua formação e atividades de juventude.


Infância em São Miguel


Nascido em S. Pedro de Nordestinho, freguesia da ilha de São Miguel, em 1933, obteve a sua formação primária entre 1941 e 1947. Foi iniciado em música com o pároco local, António Medeiros Souza, com o qual aprendeu os rudimentos de teoria, a solfejar e cantar. Pela sua pouca idade, não podia ainda participar do coro de rapazes regido pelo seu professor.


A sua infância decorreu, assim, na década de trinta, época marcada por desenvolvimentos político-culturais e pela propaganda do Estado Novo português nas suas repercussões nas longínquas ilhas, a sua formação escolar já em anos da Segunda Guerra Mundial. Já nessa época iniciou-se a emigração de sua família ao Canadá, primeiramente a sua irmã mais velha, seguindo-se posteriormente os demais.


Estudos em Angra do Heroísmo, Terceira


Os seus estudos médios desenvolveram-se em período histórico transformado politicamente em dimensões mundiais pelo desfecho da Guerra, ainda que no mundo português se mantivesse sob vários aspectos, em particular sob o ponto de vista cultural, a continuidade do regime autoritário do passado.


Ingressando no Seminário Episcopal de Angra, Terceira, realizou ali os estudos secundários e de Teologia, entre 1947 e 1959. Entre os seus professores, destacaram-se aqueles de música, o Pe. Jaime Silveira e o Cónego Dr. Antonino Tavares.


Esse longo período de tempo no Seminário, a sua aplicação, diligência e aptidões musicais fizeran com que se tornasse um dos alunos mais acatados entre colegas e mestres, assumindo ainda como estudante cargos de confiança e de orientação de seminaristas. Assim, entre 1950 e 1955, quando era estudante na Prefeitura dos médios, passou a reger o Coro Orfeônico dos médios.


Assumindo esse cargo, o jovem Armindo Borges inscreveu-se na longa tradição do movimento orfeônico dos Açores, podendo ser considerado como um de seus mais destacados representantes em fase já tardia do orfeonismo no mundo de língua portuguesa.


É a partir dos ideais e do repertório orfeônico nas suas relações com os critérios da reforma sacro-musical e com a literatura da prática coral a serviço tanto de práticas e festas escolares como do culto que as concepções e as atividades de Armindo Borges devem ser consideradas nessa fase de sua vida.



Tendo sido marcado na sua formação através do canto orfeônico, tornando-se cedo regente e, assim, líder, Armindo Borges inscreve-se no rol dos orfeonistas que, em todo o mundo de língua portuguesa, determinaram o papel desempenhado pela música na Educação e na formação civil da juventude nos anos 50 e que foi sobretudo caracterizado pelo fomento de sentimentos nacionais ou patrióticos.




A prática orfeônica, porém, não ocupou todas as energias de Armindo Borges, cujo principal objeto das atenções sempre foi o da música sacra. Já a partir de 1957, quando na Prefeitura dos Teólogos do Seminário, passou a exercer funções de mestre de capela do Seminário e do seu coro de teólogos. Nesse cargo, dedicou-se de forma particular ao cultivo de obras polifônicas e do canto Gregoriano.


Inserindo-se na história do movimento de promoção de coros de meninos cantores que alcançava as diversas regiões do mundo católico, Armindo Borges fundou ad hoc, com um grupo de 11 escolares, o coro de Meninos Cantores do Seminário.


Entre as muitas apresentações dirigidas por Armindo Borges, destacou-se concerto realizado no teatro Amor da Pátria na cidade da Horta, Faial. Ali apresentou repertório diversificado, incluindo obras de envergadura da literatura internacional, entre elas o coro de Tannhäuser, de Richard Wagner.


Tudo indica, assim, que também nos Açores prevaleceu, como no Brasil da mesma época, intuitos de difusão musical que procuravam uma elevação do nível cultural da sociedade através de obras que, apesar de seu relêvo no repertório internacional, surgiam como acessíveis e capazes de chamar a atenção e corresponder ao gosto popular.



Após dois anos de atividades de regente do Seminário, assumiu o cargo de mestre de capela da Sé Catedral de Angra. Nesse mesmo ano de 1959 foi ordenado sacerdote, a 7 de junho, em solenidade realizada na Sé Catedral. Passou ali a desenvolver estudos de pós-Seminário.


Praia da Vitória: confronto com sinais de mudanças sob a influencia americana


A partir de 1960, tornou-se Vigário-Cooperador da Matriz da Praia da Vitória, desempenhando paralelamente as funções de mestre de capela. Nessa posição, dedicou-se à reestruturação da capela da Matriz, criando também um coro infantil.


Em Praia da Vitória, Armindo Borges deparou-se com uma situação sob muitos aspectos diferente daquela que conhecia do universo intelectual, cultural e artístico do Seminário Episcopal de Angra e que lhe agora surgia como um centro modelar e expressão de um passado feliz e encerrado. Como Vigário-Cooperador da Matriz Praia da Vitória confrontou-se com a realidade da vida dos paroquianos e com a situação insatisfatória da vida cultural da então Vila que, comparada com aquela do Seminário, surgia como estagnada, pobre e decadente.


Esse período de sua vida de jovem sacerdote e músico, que durou até 1963, ano de sua saída dos Açores para realizar estudos superiores em Roma, foi marcado por várias iniciativas de promoção da vida cultural da Praia da Vitória. A principal de suas realizações inscreveu-se, também aqui, na tradição do Canto Orfeônico de tanto significado para os Açores: a da fundação do Orfeon da Praia da Vitória.


Paralelamente, assumiu a direção da música instrumental, tornando-se regente da Filarmónica da Praia da Vitória. Constata-se, assim, na trajetória de vida de Armindo Borges, caminhos similares àqueles registrados em várias comunidades do mundo de formação portuguesa, também no Brasil, onde regentes já marcados pela formação orfeônica passaram a desempenhar funções que, no passado, tinham sido exercidas por mestres populares de corporações.


No caso dos Açores, porém, no exemplo de Armindo Borges,constata-se um relacionamento estreito com a prática musical do Seminário e o ministério sacerdotal. Paralelos poderiam ser encontrados aqui na atuação de vários músicos e regentes ordenados do clero secular e de religiosos no Brasil, neste último caso, em particular, dos Franciscanos de Petrópolis.


O concerto inaugural do Orfeon da Praia da Vitória deu-se no teatro da Filarmónica, com a presença de autoridades e de grande assistência, consistindo uma das mais expressivas e promissoras manifestações culturais da comunidade. O Orfeon apresentava-se como coro mixto, constituido sobretudo por jovens cantores e meninas de menor idade.




Relendo conferência proferida na Filarmónica da Vila da Praia da Vitória, Terceira


Principal documento que possibilita reconhecer as concepções e convicções de Armindo Borges como jovem Vigário-Cooperador da Igreja Matriz da então Vila da Praia da Vitória é a conferência que proferiu na Filarmónica da localidade, em 1961, conservada em manuscrito. Ao mesmo tempo, essa fonte permite que se constate as transformações por que passava a sociedade açoriana e contra as quais o jovem e enérgico sacerdote se contrapunha com todo ardor.


Compreende-se esta crítica à influência norte-americana nos Açores à luz de suas funções como Vigário-Cooperador da Matriz da Vila da Praia da Vitória. Ali localizáva-se o campo de aviação que servia como base aérea das forças americanas, e que garantia a presença maior de soldados e oficiais dos EUA na pequena localidade, a Base Aérea das Lajes. Ainda que mantendo contatos com o padre americano responsável pelos soldados catolicos, Armindo Borges ali se defrontava com hábitos e modos de vida que contrastavam com os da sociedade açoriana tradicional.


Já o título da conferência representa, por si, todo um programa: "A música ao serviço da cultura e educação do povo".


Ponto de partida de toda a argumentação de Armindo Borges é a de que o cultivo das artes, em particular da música, consistui o principal demonstrativo da cultura e da educação de um povo. A prevalência da música sobre as outras expressões artísticas era fundamentada para o jovem sacerdote em razões filosófico-estéticas, salientando que a música possuía antes a magia de dirigir-se tanto à razão quanto à emoção.


"Para medir a cultura e educação dum povo basta ver até que ponto se cultivam as artes. A arte foi sempre  pedra de toque para avaliar a cultura dum povo. Sobretudo a música. Chamada rainha das artes porque tem o condão de falar não só à inteligência do homem mas também ao sentimento."


Partindo desse pressuposto do significado do cultivo da música como prova da cultura e educação de um povo, o sacerdote passa, no seu texto, a comparar as diferentes nações a partir de suas expressões musicais.


Já aqui manifesta-se a admiração de Armindo Borges pela Alemanha, país onde passaria posteriormente grande parte de sua vida. Fundamentando essa sua admiração, estabelecia uma ponte entre a prevalência de princípios estruturadores que via em obras de compositores alemães com a disciplina e ordem que caracteriza o país. Comparando a Alemanha com outros países europeus, a distingue da Itália e da França com base nessa predominância de aspectos ordenadores na criação musical.


É a partir desses paralelos que Armindo Borges fundamentou então a sua crítica à americanização que se constatava nos Açores e que teria consequências negativas para a sociedade. Na sua opinião, as características da música norte-americana não apenas refletiam um povo que não seria "aprumado", como fomentavam a desordenação social dos Açores através de sua ampla aceitação.



"A Alemanha foi sempre o país rei da música clássica, da música bem ordenada, da música bem medida e por isso mesmo foi sempre o país mais disciplinado de todos.


A Itália foi sempre o país da música sentimental e por isso mesmo o povo mais sentimental de todos os povos.


A França foi sempre o país da música filosófica e por isso o povo mais filósofo de todos. Os Estados U. da A. estão a ser actualmente o foco da música desconcertante, da música sincopada, da música feita quase à base de contratempos e por isso mesmo o povo mais desaprumado de todos os povos. Esta última está infelizmente a ter uma aceitação quase completa entre nós."


Centro das preocupações culturais e educativas do sacerdote era, assim, a ação da música na psique do homem e que podia levar até mesmo à transformação de temperamentos.


De suas palavras, constata-se que temia que os açorianos deixassem de ser um povo disciplinado e religioso, tornando-se desleixado, contribuindo a música para um rebaixamento de nível cultural e moral. Como conceitos diretivos da sua argumentação são assim o da disciplina, da diligência, do "aprumo" e da ordem.


"Afinal, a música tem uma influência quáse radical no psíquico de cada indivíduo até ao ponto de ter a potência de mudar temperamentos. A música consoante os géneros pode fazer um povo disciplinado como também um povo indisciplinado; pode fazer um povo religioso; como também um povo irreligioso; pode fazer um povo católico como também um povo acatólico; pode fazer um povo aprumado como também um povo desleixado; pode contribuir para a elevação do nível cultural e moral como também para o abaixamento do mesmo."


Tendo em vista a diversidade de seu auditório, em grande parte sem maiores conhecimentos musicais, Armindo Borges mencionou na sua conferências os diversos gêneros e formas, afirmando que todos eles seriam de "grande classe", podendo todos contribuir para a cultura e educação integral do homem.


Passando a considerar a música moderna, lembra os gêneros musicais relacionados a novas tendências, citando o Impressionismo, o Atonalismo e o Jazz-Sinfônico. Essas novas correntes, porém, embora tivessem causado grandes revoluções, seriam equilibradas, pois estariam "provadas desde os seus fundamentos como sendo um avanço da ciência musical dos nossos tempos." Poderiam, assim, "contribuir muitíssimo para a cultura e educação do homem".


De forma expressa portanto, manifestava-se como não fundamentalmente contrário a novos desenvolvimentos da música contemporânea, neles reconhecendo até mesmo função educativa. A sua argumentação, aqui, era a da prova científica, ou seja, baseava-se no desenvolvimento das "ciências musicais". Essa sua convicção e credo no poder da ciência podem ser constatados sobretudo no trecho de sua conferência na qual trata da música concreta.


"Há sete anos nasceu em Paris uma nova espécie musical chamada música concreta. Consiste sobretudo em produzir-se atravez de máquinas apropriadas sons que a natureza costuma emitir. Não posso concretizar melhor porque a nova forma ainda não está provada e por isso continua em secreto embora já tenha aparecido amostras em discos. O autor desta nova espécie musical encontra-se em Paris e juntamente com alguns peritos estuda-a para um dia provar ao público à face da verdadeira ciência."


Todos esses fatos provariam, segundo Armindo Borges, que o mundo musical progredia paralelamente às outras ciências e artes "dentro duma verdadeira ciência". Distinguindo desse progresso, que seria constatável no mundo musical moderno e que representava um grande passo para a educação integral do homem, o sacerdote via em determinados novos gêneros musicais uma contribuição nociva para o rebaixamento de nível cultural e educativo, sobretudo da juventude. Nesse contexto, o ardoroso jovem passava a criticar a ação dos festivais de música popular e das emissoras.


"O mundo sofre e há crise nos costumes e tradições, há crise na moral pública e cristã por causa de muitas modernas formas musicais que quase podemos dizer que em algumas regiões são o delírio da juventude. A juventude está a perder-se em parte por causa da música desordenada. Não sei, mas talvez ainda será um favor dizer que só 1 ou 2 por cento dos açorianos é admirador da boa música que 98 ou 99 por cento corre deliradamente para a música deseducativa. E a causa desta catástrofe está na má utilização dos meios modernos de expressão musical. Primeiramente, sem dúvida, os autores destas formas musicais deseducativas estão em causa. Estes autores de literatura barata lançaram-se à publicação de obras musicais da mais baixa classificação moral e conseguiram arrancar o 1° ou 2° prêmio num festival.


As emissoras são um foco de irradiação e podemos dizer que quase todas aquelas que nós vulgarmente conhecemos passam quase todo o programa a transmitirem música quase toda ela de classificação desconcertante: o que cria um clima necessário ao qual é difícil oferecer resistência.

Um plano de ações para a revitalização da vida musical: fundação de instituto e academia


Partindo dessa análise negativa dos desenvolvimentos, Armindo Borges apresentou, na sua conferência, um plano de ações destinado a contrapor a esse ambiante já criado pelos meios de comunicação e que teria como objetivo uma "reintegração total da música ao serviço da cultura e educação integral" do povo. O plano deveria estender-se a todos os setores musicais, atingindo, no caso da Vila da Praia da Vitória, a Filarmônica, a Orquestra, o Orfeon e os concertos de piano.


Antes de mais nada, porém, devia-se criar um instituto permanente que possibiltasse uma formação geral em cultura musical a todos, em especial àqueles que participassem de qualquer agrupamento coral ou instrumental. Esse instituto deveria oferecer ensino em Solfejo cantado, História da Música, Harmonia elementar e, em cursos complementares e facultativos, piano,órgão, violino, violoncelo, contrabaixo e outros instrumentos. Tratava-se, assim, de um instituto que deveria ter em primeiro lugar funções teóricas e culturais, diferenciando-se de uma escola de música ou conservatório.


Para Armindo Borges, em correspondência à sua formação orfeônica, parecia fundamental sobretudo introduzir-se nas escolas aulas de solfejo cantado como parte do programa do ensino primário, como já acontecia na Itália, na Alemanha e em outras nações. Tudo dependia, naturalmente, do apoio do Ministério de Educação Nacional, mas, esperando-se uma posição positiva, logo ter-se-ia desta forma criados os pressupostos para o instituto. Se assim acontecesse, as aulas de solfejo do instituto poderiam passar a ser complementares, ou seja o seu escopo seria fundamentalmente voltado à História da Música e à Harmonia.


Quanto à Filármonica, o plano de Armindo Borges previa sobretudo a intensificação do ensino teórico.


"Sem teoria não existe técnica. A filarmónica deveria ter lições permanentes de técnica de cada instrumento. Depois para uma boa execução é sempre necessário que os instrumentos estejam bem afinados e que se observem impecavelmente os sinais de expressão. Os concertos em público são sempre um foco de irradiação da cultura, e um estímulo para os seus componentes. Por isso desejámos ver a actuação da filarmónica em concertos regulares com Ouvertoures, Poloneses, Suites, Sinfonias, Marchas militares e Mazurcas de autores como: Bach, Beethoven, Mozart, Wagner, Tchaiekoski e tantas outras estrelas do mundo musical."


Quanto ao setor de orquestra e piano, Armindo Borges lembrava que a base de uma orquestra reside nos instrumentos de corda. Na então Vila da Praia da Vitória, porém, havia apenas um violinista. Era, assim difícil formar uma orquestra com base em instrumentos de arcos. Por outro lado, havia na vila vários pianistas, o que poderia levar à formação de uma academia musical que reunisse todas as forças disponíveis:


"Nesta Vila ao que parece existe cerca de meia dúzia d pianistas. Porque é que não formam uma academia musical com todas as pessoas que sabem tocar instrumentos? Assim a academia apresentar-se-ia em público todos os meses em concertos de piano e violino, e quando a orquestra já estivesse completa, então teríamos os concertos regulares da orquestra da Vila da Praia da Vitória, os quais contribuiriam fatalmente para um ambiente de grande cultura musical."


Relativamente ao setor do Orfeão, Armindo Borges lembra que toda e qualquer localidade poderia ter um orfeão, por mais modesto que fosse. Seria apenas necessário saber solfejar nas claves de sol e de fá e ter-se um diretor. O caminho para a formação de grande número de orfeões seria o de escolher elementos no maior número possível, independentemente dos conhecimentos musicais de cada indivíduo. Fundamental nessa escolha seria o critério da afinação, não do volume de voz.


Após discorrer a respeito das vozes, suas tessituras e notações, Armindo Borges passou a considerar o número de cantores necessários: esse nunca deveria ser inferior a 30, nem superior a 200. Seria fácil organizar o orfeão utilizando os elementos da capela que, na época, perfaziam 25 pessoas. Escolhendo-se 10 ou 20 elementos a mais, ter-se-ia assim um orfeão razoável. Para formar-se um orfeão mixto, seria necessário ajuntar-se mais 25 vozes femininas às 25 masculinas que a capela já possuia.


Para a formação vocal e teórica individual seria necessário oferecer pelo menos duas ou três horas semanais de preparação coral. Para os coros em formação, seria necessário oferecer leitura rítmica, solfejo cantando, aulas de respiração e pronúncia. Seria sempre preferível cantar de pé: "mas se se canta sentado é necessário tronco direito e cabeça levantada."


Após discorrer a respeito de técnicas respiratórias e de correta pronunciação, de exercícios graduados de vocalizações, Armindo Borges passou a tratar de questões de disciplina artística do conjunto, de sua disposição e de locais de ensaios e apresentações.


"Os cantores devem ler, cantar e seguir simultaneamente e impecavelmente as ordens do director. Cada um deverá ter espáço suficiente para mover livremente a boca, o peito e a cabeça, e ver bem o director. Uma infeliz execução pode, muitas vezes, depender da má situação dos cantores e do director."


O desejo de Armindo Borges era que a Vila da Praia da Vitória tivesse um orfeão de 40 ou 50 vozes pelo menos, uma vez que os grupos orfeônicos seriam a expressão mais viva da cultura musical de um povo.


"Presentemente nos Açores temos só dois agrupamentos orfeónicos: o do Seminário Episcopal de Angra e o Orfeón académico de Ponta Delgada. Também os liceus costumam ter orfeons mas propriamente não actuam em concertos como aqueles. De resto felizmente estão muito em voga os grupos folclóricos que não chegam a constituir orfeons. Os grupos folclóricos estão mais de acordo com os meios rurais emquanto que os orefons estão mais para os meios urbânicos. Cinquenta por cento dos nossos meios rurais têm grupos folclóricos enquanto que só 16 por cento dos nossos meios urbânicos possui grupos orfeónicos. Isto é sinal evidente de que o povo dos meios rurais dedica-se mais à cultura musical do que o povo dos meios urbânicos. O que nos parece uma inversão dos valores reais e um desprestígio para os meios urbânicos. Por isso seria interessante se dentro em breve nascesse aqui nesta Vila de nobres tradições um grupo orfeônico."


Os músicos do passado e do presente da Vila da Praia da Vitória


Entre os aspectos mais significativos da conferência do jovem Armindo Borges contam-se as suas referências a músicos do passado de Vila da Praia da Vitória, resultado de suas inquirições pessoais e estudos do arquivo da Matriz.


A menção a esses nomes da história local tinha como escopo trazer à memória dos habitantes tempos nos quais a vida musical havia sido mais intensa, incentivando-os a retomar essa tradição.


"Afinal esta Vila tem grande tradição musical. Aqui já nasceram e viveram compositores, mestres da capela e da filarmónica de grande projecção açoreana, tais como: o Maestro João António das Neves, Gabriel Neves, João dos Reis das Neves, Manuel Coelho da Silva, José Inácio Bettencourt, Pe. Mateus das Neves e muitos outros. O Mestro João António das Neves foi compositor de grande classe e pai de Gabriel das Neves, pianista formado no Conservatório Nacional de Lisboa e João dos Reis das Neves formado pelo Conservatório de Milão. Distingue-se este último como cantor de projecção nacional, pois que cantou ópera no Scala de Milão.

Manuel Coelho da Silva foi um compositor afamado e mestre da filarmónica. É o pai de uma geração de músicos bem conhecidos do público açoreano.

José Inácio Bettencourt foi um pianista e um improvisador afamado, e também durante algum tempo regeu a filarmónica.

O Maestro Pe. Mateus das Neves formou-se no Conservatório Nacional de Lisboa e distingue-se sobretudo como compositor e director de coros. Actualmente encontra-se no continente."


Descobrimento de obras em baixo cifrado na Matriz - revelação de grandes mestres


Com base em estudos do arquivo musical da Matriz, Armindo Borges constatou que esta já possuira uma das melhores capelas açorianas, cuja atividade mereceria toda a admiração:


"Encontrei aí músicas com baixo cifrado. O baixo cifrado foi uma forma de armonizar a música que existiu (...). Até aí por exemplo a música para orgão era escrita numa só linha em vez de duas. Escrevia-se uma parte da música da mão esquerda que era o baixo, e por cima dessas notas escrevia-se os números das notas do acorde a que pertenciam. E assim aquele que tocava tinha que saber armonia em profundidade para poder decifrar aqueles números. Isto prova que hove uma época em que os organistas da Matriz tinham grande cultura musical.


Encontrei um mestre de Capela cujo nome é Alexandro Belo de Almeida e que deve ter tido uma longa actividade visto que encontrei músicas escritas por ele em 1811 e 1865. Descobri composições musicais de António Leal Moreira, António José Soares, José Joaquim dos Santos, Francisco Paula Leal, José Yacinto Martins, Eleutério Franco Leal e outros."


Filarmonicas do passado e Tuna de cordas percutidas - Manuel Coelho da Silva


"Antigamente existiam duas filarmónicas nesta Vila. E ainda há pouco tempo a Praia da Vitória deliciava-se a ouvir a sua orquestra filarmónica e uma tuna de cordas percutidas debaixo da competente regência de Manuel Coelho da Silva."


Assim, o sacerdote lembrava que a vila já tivera uma vida musical intensa no passado recente e no mais remoto, importando agora ressuscitar esse clima musical. Por essa razão, Armindo Borges sugeria que a Filarmónica devia passar a dar concertos regulares, uma vez por mês, o mesmo a academia musical, enquanto que o orfeão devia apresentar-se três ou quatro vezes por ano.


"Desta forma teríamos, de facto, a música ao serviço da cultura e educação deste bom povo. E assim a Praia da Vitória poderia gloriar-se de que na rainha das artes seria o meio mais culto dos Açores".


(Veja artigo em continuidade)




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.). "Cultura e música no Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo em época de crescente influência norte-americana e mudanças sócio-culturais nos Açores".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/19 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Seminario-Angra-do-Heroismo.html