Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lisboa 2012©A.A.Bispo


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Fotos: Panteão Nacional, Lisboa 2012. A.A.Bispo ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 148/4 (2014:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3075




Vincentivs Lvsitanvs: Um Compositor Português e Teórico-Musical do Século XVI

no seu significado para os estudos culturais



Maria Augusta Alves Barbosa (1913-2013)
e o estudo de processos culturais em relações internacionais II









Este texto deve ser compreendido no conjunto de outros artigos desta edição da Revista Brasil-Europa dedicados à memória da Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, falecida, centenária, em 2013.


Essa série de textos representa a tentativa de compreender o seu pensamento, as suas posições e trazer à consciência o seu significado para os estudos culturais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e Alemanha. Foi ela nada menos do que a criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais no âmbito universitário em Portugal, realizando assim um anelo que permanece em aberto em muitos países.

Essa série de textos representa também um ato de gratidão póstumo pelo papel que desempenhou desde 1975 nos esforços de interações internacionais que levaram à criação do I.S.M.P.S. e.V., do qual foi Presidente Honorária por Portugal. Esses textos devem ser compreendidos sobretudo à luz do escopo geral dos trabalhos divulgados na Revista Brasil-Europa do corrente ano, voltados que são à balanços e revisões de caminhos, a reconscientizações de objetivos e a análises do programa de estudos, contatos e iniciativas que teve o seu início em 1974 como exposto no primeiro número de 2014. (
Veja)


As edições do corrente ano consideram com base em materiais conservados nos acervos da A.B.E. e do I.S.M.P.S. e.V. sobretudo decorrências das décadas de 70 e 80 do século passado, caídas no esquecimento ou desconhecidas. Procuram contribuir a reaprumos, ao reconhecimento de possíveis desvios, ao evitar de repetições de projetos, iniciativas ou visões insuficientes de um desenvolvimento da história recente que já é há muito marcado por interações internacionais.



 
Maria Augusta Alves Barbosa foi uma dos mais significativas personalidades entre os representantes de Portugal em meios universitários da Alemanha no período pós-Guerra.  Desempenhou decisivo papel nas conferenciações e interações referentes a Portugal e ao Brasil que, a partir de 1975, decorreram na Universidade de Colonia. Estas, pelas suas características, pelos seus propósitos e iniciativas e pelos seus participantes tiveram dimensões e consequências internacionais.


Maria Augusta A. Barbosa, já então há muito professora do Conservatório Nacional de Lisboa, foi criadora do primeiro Departamento de Ciências Musicais em universidade portuguesa, na Universidade Nova de Lisboa, alcançando assim o seu grande objetivo de vida, e, a seguir, Professora da Universidade de Coimbra e de outras universidades. Foi co-orientadora da fundação e membro da Sociedade Brasileira de Musicologia, e Presidente Honorária por Portugal do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS) de 1985 até o seu falecimento em 2013, com cem anos. No Brasil, em 1992, a sua conferência e a comunicação que transmitiu em nome do Prof. Dr. Veríssimo Serrão, Presidente da Academia Portuguesa de História, que representava, abriram o II Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado no Rio de Janeiro e dedicado ao tema "Fundamentos da Cultura Musical no Brasil".


O significado da personalidade, de suas iniciativas, dos impulsos que forneceu e dos desenvolvimentos que desencadeou necessita ser justamente reconhecido e salientado em análises do passado das relações internacionais entre Portugal, Alemanha e Brasil referentes à cultura, á educação, às artes e, em particular, à música como objeto de estudos científicos.


Esse reconhecimento do valor de sua vida e trabalho, do seu pensamento, concepções, projetos e procedimentos não é para muitos fácil, pois Maria Augusta Alves Barbosa deixou apenas uma única grande obra publicada de maiores dimensões, ou seja, a sua tese de doutoramento. Esta foi apresentada na Universidade de Colonia, em 1970, e publicada, em alemão, em Portugal, em 1977: Vincentivs Lvsitanus: Ein portugiesischer Musiker und Musiktheoretiker des XVI. Jahrhunderts. Lisboa: Secretaria e Estado da Cultura, Direcção-Geral do Património Cultural, 1977.


A realização dessa obra custou-lhe décadas de vida, afastando-a de Portugal e do seu cargo por muitos anos, obrigou-a a realizar fatigantes e dispendiosas viagens para consultar arquivos em muitas cidades de Portugal, da Alemanha e em vários outros países e a viver continuamente sob a expectativa de recebimento de salários e subsídios.


As suas pesquisas constituiram o objetivo de sua vida, a êle integralmente se dedicando. Essa obra pode ser assim ser considerada como uma obra de vida.


Negou-se a que o trabalho fosse incluido na série editada pela direção do Instituto, apesar de todas as naturais expectativas, não apenas por ser esta de muito menor qualidade visual e apresentação gráfica, mas sim por que teria exigido, como em outros outros casos, que reduzisse consideravelmente o número de páginas, que cortasse capítulos e, sobretudo, as suas pormenorizadas notas, anexos e ilustrações.


Maria Augusta A. Barbosa soube, assim, apesar de seus elos de estreitas amizades com o editor da série e diretor do Instituto, também este submetido a pressões da editora, esquivar-se de ver o seu trabalho mutilado, transformado em torso, fugindo assim ao destino de outros ali doutorados.


Diferentemente destes e de outros, obrigados que foram a cortes e modificações nos seus trabalhos apenas para que pudessem cumprir a exigência de publicação, confrontando-se por fim com versões de suas teses que não correspondiam ao que nela haviam investido e mesmo sem partes que lhes pareciam de fundamental importância, Maria Augusta A. Barbosa pôde seguir passo a passo a publicação, ficando compreensivelmente plenamente satisfeita com os resultados.


As partes a que os autores eram levados a retirar de seus trabalhos eram em geral aqueles que pareciam de menor significado para o tema tratado ou menos imediatamente com êle relacionados, ou seja, em geral capítulos sôbre contextos, notas, anexos, ilustrações e partituras, partes que consideravam relações com outras áreas do conhecimento ou que levavam a considerações teóricas e filosóficas que ultrapassavam a esfera especificamente disciplinar ou o complexo temático compreendido de forma restrita.


Se esse procedimento, - causa de decepção e demotivação para muitos doutorados -, tivesse sido efetivado no caso da obra de Maria Augusta A. Barbosa, praticamente toda a sua tese deveria ter sido mais do que em outros casos fundamentalmente modificada, pois, pelas suas próprias características, trata prioritariamente de contextos e inclui longos excursos que representam, por si, estudos à parte.


É por essa razão que Maria Augusta A. Barbosa dá tanta atenção na sua obra em salientar que as suas notas, observações e pormenorizados anexos, assim como as imagens constituem parte integrante do trabalho e do desenvolvimento das pesquisas e das idéias, sendo indispensáveis no todo.


Pela própria natureza do seu trabalho, que circula em redor de uma personalidade sôbre a qual existem poucos e frágeis dados bibliográficos e documentais, e que, apesar de ingentes e vastas pesquisas de toda uma vida não puderam ser fundamentados e acrescentados com significativo número de novos documentos, a retirada das fontes de arquivo consultadas e comentadas, dos contextos que necessitaram ser mais amplamente analisados para a investigação de situações que poderiam oferecer indícios da presença ou passagem do vulto estudado, significaria não só uma mutilação, mas a destruição da obra, com perda de sentido do trabalho de anos e tanto dispêndio de forças e meios.


"Vincentius Lusitanus viveu e atuou, sem deixar outras pegadas do que as suas obras e muito poucos e parcos dados a respeito de alguns fatos puntuais de sua vida. Tudo o que se sabe da trajetória de sua vida e que sempre foi repetido no decorrer dos tempos apoia-se em tradição não documentada, cujo início não pode ser testemunhado antes da segunda metade do século XVII. A essa época já se tinham passado muitas décadas desde que V. Lusitanus morrera em país de nós desconhecido. Sob o ponto de vista histórico, não é possível ter plena confiança em tradição que se manifestou tão tardiamente. Uma leitura atenta dos raros documentos existentes foi necessária, assim como um exame pormenorizado dos fatos que predominaram nos países nos quais, segundo a tradição, V. Lusitanus teria vivido.

A falta de fontes obrigou a uma ampliação da área da pesquisa; pois, para se dizer que se descobriu muito poucos documentos, torna-se necessário ampliar muito mais as investigações do que em pesquisas com situação de fontes seguras desde o início. Apenas então resulta, que um resultado, em si negativo, é positivo."
(Prefácio, op. cit. XXI)


Compreende-se, assim, a luta que Maria Augusta A. Barbosa teve de conduzir para defender a sua obra, a sua organização interna e a sua publicação íntegral, mesmo que para isso tivesse de esperar acima de sete anos, e assim também para usar o seu título; foi obrigada a recusar subsídios alemães e procurar meios para editá-lo em Portugal.


Com essa sua determinação, vinha de encontro a outros doutorandos em similares situações, constituindo um exemplo para aqueles que não o podiam seguir pelas condições de dependência a que estavam sujeitos. Ela demonstrava que as sugestões, exigências e pressões que levavam á mutilação de trabalhos a serem impressos desrespeitavam o pesquisador; este, como sempre salientou, devia ter consciência do valor de seu trabalho.


O significado do procedimento corajoso e decidido de Maria Augusta A. Barbosa ia porém mais longe. A sua atitude trazia á consciência que as publicações de trabalhos assim reduzidos traziam graves problemas para a pesquisa, pois não refletiam justamente as investigações realizadas, as reflexões encetadas e as consequências que delas se tiravam.


O seu procedimento trazia á luz, de forma talvez pioneira, que o alcance de conhecimentos relaciona-se estreitamente com a própria produção de saber, com os caminhos percorridos, com os esforços realizados na procura de indícios e reconhecimentos de contextos, mesmo que estes não levem a resultados positivos no sentido daquilo que se procura. Como consequência, traz à consciência a gravidade ética da atitude de pesquisadores que não consideram esse processo de produção de saber, de sua história, desenvolvimento, dificuldades e mesmo desvios, apenas utilizando nos seus próprios trabalhos dos resultados positivos, dos dados concretos de nomes, fatos e obras que se tornaram conhecidos através das pesquisas de outros autores. Esses historiadores da música roubam assim o fruto do trabalho, o campo de estudos ou o perfil de outros pesquisadores, engrandecendo-se indevidamente.


Ainda que a sua produção em publicações tenha sido muito reduzida em número pelo rigor com que conduzia as suas investigações e as suas formulações, contrariando prática quase que inflacionária que se estabeleceu nos meios acadêmicos - e que Maria Augusta A. Barbosa questionava e mesmo criticava e desprezava -, a sua única grande obra pode ser considerada como um monumento.



A exemplaridade do seu procedimento lúcido e digno em não permitir que o seu trabalho fosse mutilado e mesmo destruído, assim como o cuidado que sempre dispensou na condução de suas pormenorizadas pesquisas não lhe trouxeram, porém, reconhecimentos à altura e nem tiveram as consequências amplas que poderiam e deveriam ter tido.


O seu nome permaneceu pouco conhecido, fato explicável por vários motivos.


A  propagação e mesmo o renome de autores baseiam-se, de forma pouco digna para as ciências, no número de citações feitas por outros autores, e, assim, na quantidade de textos produzidos e em rêdes de conhecimentos daqueles que se citam reciprocamente. Não sendo frequentemente citada, Maria Augusta A. Barbosa foi ignorada e encontra-se agora praticamente esquecida.


Por ser versada em alemão, a sua publicação pouco pôde ser estudada aprofundadamente em Portugal, no Brasil e em outros países de língua portuguesa.


O conhecimento de sua grande e praticamente única obra permaneceu restrito ao círculo de especialistas que dominam o idioma e que se dedicam à música portuguesa ou à música e à teoria musical da Idade Média tardia e do Renascimento.


O idioma, porém, não foi a principal barreira que dificultou a recepção da obra de Maria Augusta A. Barbosa e o reconhecimento do seu significado.


A sua leitura e compreensão surgem como altamente complexas e o leitor que se interessa por música ou musicólogo supõe pouco nela encontrar de concreto relativamente à personalidade histórica tratada.


O estudo surge como prolixo, e o leitor pode ter a impressão que o escopo principal do trabalho perde-se em meio a extensas e pormenorizadas considerações de contextos. Sente-se confirmado nessa suposição ao constatar que a própria autora reconhece que, após ingentes pesquisas, que tanto tempo e esforços consumiram, nada pôde ser constatado em determinados arquivos de interesse imediato aos estudos da personalidade visada.


O leitor sente-se confirmado nesta sua suposição também ao ler, em capitúlo final, que uma resposta à questão do significado de Vincentius Lvsitanvs para a História da Música de Portugal permanece em aberto, tarefa para pesquisas futuras. Surpreende-se, assim, que um trabalho de dimensões tão alentadas, com 502 páginas, e que levou décadas para a sua realização, tenha chegado a resultados tão vagos. Em alguns casos, é a própria autora que relativa afirmações, salientando serem elas hipotéticas ou dizendo que pertencem à esfera do meramente possível. O significado de Vincentius Lusitanus teria residido antes no fato de ter levado a pesquisadora a com êle ocupar-se e, com isso, desenvolver amplas investigações que possibilitaram um melhor conhecimento da prática musical no século XVI. Ou seja, a contribuição da obra à cultura musical portuguesa parece poder ser entendida no sentido de uma contribuição à cultura dos estudiosos portugueses de hoje, aos conhecimentos músico-culturais dos portugueses, não àqueles relativos a uma cultura musical portuguesa compreendida essencialísticamente.


"Um julgamento exato quanto á contribuição de V. Lusitanus á cultura musical de Portugal e o lugar que toma na História da Música do século XVI exige ainda uma investigação pormenorizada de sua obra teórica e uma análise acurada de sua música prática. As pesquisas porém, que já foram iniciadas nessa área, e as análises, que já foram feitas, - ambas devem ser objeto de um futuro trabalho - permitem afirmar que o papel, que Vicentius Lusitanus dentro da música portuguesa do século XVI de forma alguma pode ser subestimado, e que o compositor português prestou uma contribuição importante para um melhor conhecimento da prática musical no século XVI." (op,cit. 453)


Quem foi, por fim, Vincentius Lusitanus?


Essa questão não se coloca apenas ao leitor que procura dados concretos a respeito do vulto mencionado no título da obra e que, após lê-la, pode adquirir a impressão de que se fala muito e nada se fala. Essa questão também foi colocada pelo orientador e pelos conselheiros de Maria Augusta A. Barbosa, que sugeriram - ou exigiram - que incluisse, terminada a obra, uma biografia sumária do músico e teórico português, com indicação clara das obras conhecidas e da bibliografia específica. Aqui, então, a pesquisadora oferece, contra vontade e quase que de forma irônica, uma súmula em forma de entrada em léxico:


"VINCENTIVS LVSITANVS (século XVI.; datas de nascimento e morte assim como locais desconhecidos; primeiro dado documental: começo de Junho de 1551; último: 2 de Junho de 1561).


As notícias lexicográfias mais antigas sôbre Vincentius Lusitanus remontam ao século XVII e não dão fontes (João Barreto, *1600 e P. Francisco da Cruz, 1629-1706); a terceira e mais pormenorizada, também se indicação de fontes, apareceram na Bibliotheca Lusitana de Barbosa Machado no ano de 1752. De acordo com esses dados, Vincentius Lusitanus teria nascido em Olivença, uma localidade situada na fronteira portuguesa-espanhola e que se encontrava então sob a soberania portuguesa, e atuado como provessor de música em Roma, Viterbo e Pádua. (...) Assim, é perfeitamente pensável que o compositor tenha obtido a sua formação em Olivença, então sede episcopal de Ceuta, onde pelo menos desde 1534-1534 havia uma cadeira de música (cantus planus e cantus figuratus) dirigida por Pero Brugel.


Falta qualquer indício de Vincentius Lusitanus até o início de Junho de 1551. Ca. do primeiro dia desse mês, após um evento musical em Roma, na casa do banqueiro florentino Bernardo Acchiaioli, entrou numa discussão com Nicola Vicentino sôbre o verdadeiro gênero da música de então. No julgamento que se seguiu da disputa por parte de Ghiselin Danckert e Bartolomeo Escobedo, a posição de Vincentius Lusitanus foi vista como correta (...).


Quando, por quê e por que caminhos Vincentius Lusitanus chegou à Península italiana, além do mais por que razões êle ali se radicou, é totalmente desconhecido na situação atual da pesquisa.


Em 1553 surgiu em Roma, por Antonio Blado, a primeira edição de sua Introdutione Facilissima. Em 1551 ou 1556, foi publicada a sua coleção de motetos Liber Primus Epigramatum que vulgo motetta dicuntur" (...). Através do Motu Proprio e da dedicação dessa coleção toma-se conhecimento, que Vincentius pertencia à Diocese de Ceuta e estava relacionado com o filho do embaixador português em Roma. (...) No ano de 1553 surgiu, desta vez em Veneza por Francesco Marcolini, a segunda, levemente ampliada edição da Introdutione, seguida por uma terceira, em 1561 (...). No dia 30 de Maio de 1561, Vincentius Lusitanus requereu em Württemberg o Bispo de Capo d'Istria, o italiano de Petrus Paulus Vergerius, convertido ao Protestantismo e que se encontrava à época em Baden-Baden, atuando desde Novembro do ano de 1553 como conselheiro do Duque Christoph. A pedido do conde italiano Giulio a Thiene, um dos mais ativos promotores do Protestantismo no Norte da Itália, o citado bispo procurou conseguir um posto para Vincentius Lusitanus na capela da Corte de Württemberg. Apesar do Duque ter aceito e feito vir o músico português, não o tomou a serviço. Dessa época data muito provavelmente o motete Beati omnes, existente em manuscrito e conservado na Biblioteca de Estado de Stuttgart (...). Desde 1 de Junho desse ano falta qualquer indício pessoal do músico português. O fato, porém, que o manuscrito de Paris Esp. 219 foi descoberto na França, permite que se coloque a questão (...) se êle não se radicou na França após Junho de 1561 e lá faleceu.

Em 1562 surgiu em Veneza, já após ter Vincentius Lusitanus fugido da Itália, o único Madrigal que dele se conhece: All'hor ch'ignuda (...)"
(op.cit. 455-457)


Perspectivas para a leitura adequada da obra


A impressão de que o trabalho pouco contribui aos conhecimentos pode ser vista como resultado de perspectivas e expectativas inadequadas na sua leitura.


Esse livro não representa apenas uma obra monumental pelas suas dimensões, inusuais para um trabalho de doutoramento, mas sim, como acima salientado, obra de vida de uma pesquisadora que nela trabalhou por décadas nos principais centros especializados da Europa.


Trazendo já plena formação em Portugal, com o qual manteve-se sempre ligada como professora licenciada do Conservatório Nacional de Lisboa, assimilou múltiplos impulsos no Exterior, adquiriu práticas de procedimento, estudou e assimilou tendências músico-especulativas de seus  mentores, nunca porém afastando-se mentalmente e afetivamente de Portugal.


Sempre ocupada com um músico e teórico-musical que tomou as características de um símbolo, até pelo seu próprio cognome, que passou a sobrenome, referenciou sempre as correntes de pensamento que assimilou, os processos integrativos por que passou com Portugal, construiu ao redor da figura histórica escolhida um mosaico repleto de informações e conotações.


A sua leitura não pode ser apenas superficial, no sentido de um repositório de dados e de análises diretamente relacionadas com as obras e o pensamento do autor estudado. É, nesse sentido, uma obra inadequada e sem sentido para leitores e mesmo especialistas que sejam primordialmente músicos práticos, ou tenham a "mentalidade conservatorial" sempre criticada pela pesquisadora.


Escolhido por nele ver Maria Augusta A. Barbosa uma personalidade que cristalizava um momento que entendeu como configuração primordial na cultura musical portuguesa nas suas transformações no fluir do tempo, a obra diz respeito também às concepções a às visões da autora nas suas inserções em correntes do pensamento da Alemanha e de Portugal, em processo receptivo complexo causado pelas múltiplas interações culturais por que passou, representando assim antes um testemunho da história das idéias e da cultura do século XX no campo das relações entre a Alemanha e Portugal.


A obra é, ela própria, expressão e documento histórico, fonte para inquirições do complexo desenvolvimento do pensamento em relações luso-alemãs do período posterior à Guerra e de impulsos que poderiam ter levado a desenvolvimentos promissores no desenvolvimento dos estudos históricos e culturais relacionados com a música ou com uma musicologia de orientação cultural se não tivesse sido mal compreendida no seu escopo.


Procurar compreendê- la adequadamente no seu sentido - o que não pode ser feito a partir de perspectivas convencionais da chamada "Musicologia Histórica" -, surge como pressuposto para entender as posições, pareceres, os conteúdos de aulas e iniciativas de Maria Augusta A. Borges, entre êles o projeto de institucionalização da pesquisa científica da música na Universidade portuguesa.


Já uma leitura do seu índice demonstra que a obra de modo algum é concebida de forma cronológica como a súmula em forma de entrada de léxico que a autora teve de incluir na publicação. A organização do livro é determinada antes pelo desenrolar da pesquisa e do desenvolvimento do pensamento, ou seja, da produção de conhecimentos.


Ela parte das fontes biográfico-lexicográficas dos séculos XVI e XVII, passando às fontes de arquivo na Alemanha. Estas últimas representaram o principal achado de Maria Augusta A. Barbosa, e delas partem as considerações que se seguem a respeito da conversão de Vincentius Lusitanus e a evolução do Protestantismo no Norte da Itália. A partir de menção em obra publicada em Veneza, passa a considerar o pertencimento de Vincentius Lusitanus à Diocese de Ceuta, e, em particular a Olivença. Aqui, desenvolve um estudo relativo aos estudos pré-humanísticos e musicais em Olivença e considera os indícios da formação de Vincente na localidade; o significado do Bispo D. Frei Diogo da Silva no desenvolvimento cultural de Olivença e a menção de Vincentius Lusitanus ter sido sacerdote do "Hábito de São Pedro".


Somente a partir do capítulo X é que a pesquisadora entra na discussão da disputa teórica que se encontra no centro das suas preocupações. Considera a estadia do português em Roma e a disputa com Nicola Vicentino, o relato de G. Danckerts dessa discussão, a sua crítica da posição de Nicola Vicentino, a doutrina dos gêneros na sua exposição, o seu relato de uma outra disputa e o problema dos acidentes, a tomada de posição de Nicola Vicentino e a doutrina dos gêneros de Vincentius Lusitanus.


Uma última parte da obra podia ser reconhecida a partir do capítulo XVII, onde a autora trata da repercussão literária da disputa nos escritos da época, indícios biográficos das obras impressas e da família Lencastre, da imagem de Vincentius Lusitanus na literatura musicológica mais recente e, por fim, do seu significado para a História da Música portuguesa.


Há, assim, uma lógica interna na construção da obra, que à primeira vista parece ser prolixa ou arbitrária, só que essa lógica não é a de um trabalho convencional, mas sim aquela de um estudo que segue e expõe o próprio desenvolvimento das reflexões e o seu proceder.


Esse procedimento de Maria Augusta A. Barbosa merece ser considerado mais pormenorizadamente sob diversos aspectos, uma vez que diz respeito à forma com que tratou uma questão histórica, ou seja, as suas concepções de História e Historiografia, mais em especial da sua compreensão de História da Música e das Artes e, sobretudo, da ordenação de decorrências no tempo. Um exame mais acurado do seu pensamento leva ao reconhecimento de um papel fundamental desempenhado pela música no edifício de concepções e na sua visão do mundo.


Essas questões deram motivos a trocas de idéias e debates em meados da década de setenta. Elas foram desenvolvidas, da parte brasileira, sob a perspectiva do programa preparado no Brasil e que visava uma renovação de disciplinas culturais através de um direcionamento da atenção a processos e processualidades. Muitos pontos em comum, mas também muitas diferenças tornaram-se sensíveis nos diálogos. Alguns dos complexos temáticos então tratados são considerados nesta edição.






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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (ed.)."
Vincentivs Lvsitanvs: Um Compositor Português e Teórico-Musical do Século XVI
no seu significado para os estudos culturais".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 148/4 (2014:2). http://revista.brasil-europa.eu/148/Vincentivs-Lvsitanvs.html