Reptibilidade do sulamericano

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 158

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 158/6 (2015:6)



O „continente do terceiro dia da Criação“
O pensamento científico da Evolução em relações com a Gênese
- a „reptibilidade“ do sulamericano na Psicologia Cultural -



Após 10 anos de sessão de colóquio internacional no Instituto Butantan (2004)


Coloquio A.B.E. no Butantan. Foto A.A.Bispo 2004
 

Encerrando-se ano marcado pela passagem os 450 anos do Rio de Janeiro, cidade que, pela beleza e magnitude da paisagem impõe como nenhuma outra questões referentes ás relações entre Cultura e Natureza, torna-se oportuno recordar as „Meditações Sulamericanas“ do conde Hermann Keyserling (1880-1946) devido ao significado da Natureza nas suas reflexões filosóficas, análises demopsicológicas e culturais. (Graf Hermann Keyserling, Südamerikanische Meditationen, 2a. ed., Stuttgart Berlin 1933 (1a. ed. 1932)


Hermann Graf Keyserling
Se nos estudos de processos culturais, as observações, visões e interpretações de europeus que tiveram contato com o Brasil assumem em geral relevante significado pelo fato de darem profundidade histórica à pesquisa e demonstrarem o condicionamento histórico-contextual das aproximações, as meditações do conde Keyserling se sobressaem de forma especial.


As suas „Meditações Sulamericanas“, na qual o Brasil desempenha importante papel, destacam-se entre os relatos de europeus que visitaram o subcontinente pela profundidade de suas considerações demopsicológicas, filosóficas e pelo fato de tirar, das suas observações empíricas e experiências conclusões para uma filosofia de vida.


O seu pensamento e em particular a sua atuação na „Escola da Sabedoria“ de Darmstadt foram de grande significado para a história das idéias da década de 20 e parte dos anos 30 não só na Alemanha, mas também e sobretudo fora da Europa, influenciando pensadores latino-americanos, entre êles também brasileiros.


A tradição da „Escola da Sabedoria“ mantém-se viva na atualidade através do Instituto de Praxis da Filosofia em Darmstadt, uma instituição que, apesar do significado de Keyserling para a cidade e a universidade local, não se compreende como sendo de pesquisa.


A pesquisa, em particular a pesquisa cultural surge, porém, como de fundamental importância para a compreensão de um modo de pensar que, como nas „Meditações Sulamericanas“, apresentam-se como de difícil compreensão e mesmo inigmático.


Os estudos de processos culturais em relações Brasil/Europa desenvolvidos nas últimas décadas podem fornecer subsídios à leitura da obra, abrindo novas perspectivas para a consideração dos fundamentos das concepçoes e imagens do filósofo e mesmo de sua revalorização. Podem contribuir, também, ao desenvolvimento do seu pensamento e talvez a necessárias diferenciações e correções.


Estudos euro-brasileiros e Keyserling: Filosofia Natural e Genesis


Em discussões referentes às relações entre a demopsicologia e a pesquisa cultural empírica em anos de preocupações pela atualização conceitual do Folclore e outras áreas de estudos a partir de 1965 em São Paulo, lembrou-se repetidamente de Keyserling, nem sempre, porém, em valorações positivas.


O estudo do seu pensamento foi sempre dificultado pela barreira do idioma e pela insuficiência de traduções, uma vez que mesmo para alemães a sua escrita, expressão e argumentação surgem como de difícil leitura e compreensão, prolixa e paradoxal, marcadas por constantes ambivalências. Essas dificuldades levaram - não só no Brasil - a que se considerasse o pensamento de Keyserling como sendo arbitrário ou exemplo de um filosofar não-acadêmico, popular ou diletante.


A consciência da necessidade de uma leitura e compreensão mais adequada das „Meditações Sulamericanas“ aguçou-se a partir do início dos estudos euro-brasileiros na Alemanha, em 1974/5. (Veja)


Dois foram os principais fatores que acentuaram as preocupações pelo entendimento da obra de Keyserling: o desenvolvimento dos estudos relativos a fundamentos na Antiguidade do edifício cultural transmitido ao Brasil e o de estudos da linguagem visual bíblica, com particular atenção ao livro Genesis.


Os primeiros foram desenvolvidos em museus, centros arqueológicos e em institutos voltados às relações entre a Antiguidade tardia e o Cristianismo. Os segundos em institutos e centros de estudos bíblicos e teológicos, como aqueles de Colonia e Maria Laach na Alemanha (Veja), ou de Roma.


Como foram relacionados com trabalhos músico-antropológicos e etnomusicológicos - a música desempenha importante papel em Keyserling - interagiram com observações de campo levadas a efeito no Brasil. Entre elas, expressões tradicionais de culto, em particular a linguagem visual e práticas em Salvador, Rio de Janeiro e em Santos/Praia Grande foram de fundamental importância, acentuando na consciência a necessidade de releituras e revisões teóricas e epistemológicas dos estudos do sincretismo no Brasil.


Tanto as reflexões de Kayserling, os estudos da Antiguidade e das Escrituras como aqueles decorrentes da pesquisa cultural empírica no Brasil foram considerados nos trabalhos dedicados aos fundamentos da cultura transmitida ao Brasil no decorrer da expansão portuguesa.


Os seus resultados foram discutidos na Alemanha com pesquisadores brasileiros no Colóquio Internacional „Tradições Cristãs e Sincretismo no Brasil“, em 1989. (Veja) Esses debates foram aprofundados posteriormente em análises de configurações simbólicas e mecanismos na procura de novas bases para o diálogo cultural e inter-religioso consideradas em cursos, eventos e publicações.


O estado atual das pesquisas permite, agora, ler as „Meditações Sulamericanas“ de Keyserling sob novas perspectivas esclarecedoras, reconhecer o seu significado e a sua atualidade, assim como apontar as necessárias diferenciações que devem ser feitas nas suas análises.


A América do Sul como „continente do terceiro dia da Criação“


„E disse Deus: Ajuntem-se as águas abaixo dos céus num lugar; e apareça a porção sêca. E assim foi.
Chamou Deus à porção seca Terra; o ajuntamento das águas chamou mar. E viu Deus que era bom.
E isse Deus: Produza a terra erva que dê semente, árvore frutífera que dê frutos segundo a sua espécie e cuja semente esteja nela sobre a terra. E assim foi

E a terra produziu erva, erva ando semente conforme a sua especie, e a árvore frutífera, cuja semente está nela segundo a sua especie. E viu eus que era bom

E foi a tarde e a manhã do dia terceiro.“


A primeira meditação sulamericana de Keyserling é dedicada a uma visão fundamental do seu pensar, determinante de todas as meditações que se seguem: a da América do Sul como continente do terceiro dia da Criação.


Essa colocação não deve ser entendida de forma superficial como se o subcontinente tivesse surgido historicamente no terceiro da Criação, como se Keyserling tivesse a visão restrita do Creacionismo que parte da leitura literal das Escrituras.


Ao contrário, como expressa em vários pontos de sua obra, o filósofo considerava o relato bíbilico como sendo mítico, correspondente, porém, a ordenações internas do homem nas suas relações com a natureza externa.


Na América do Sul, Keyserling confrontou-se com comportamentos e expressões que viu em relações com a natureza e que abriu-lhe os olhos para a percepção de ordenações e mecanismos em si próprio: demopsicologia, filosofia natural interagem no seu pensamento com a auto-análise.


O terceiro dia da Criação foi aquele no qual as águas juntaram-se nos mares ou oceano, surgindo o sêco e, nele, a vegetação que traz sementes.


Dois são os principais processos filosófico-naturais que, expressos na linguagem visual das Escrituras e que corresponde à época do aquecimento da natureza na primavera do hemisfério norte: o das águas que, movimentando-se, fluindo em correntes, juntam-se no mar ou oceano, e o da terra que, com a saída das águas que a cobriam, seca-se e aparece com a sua cobertura vegetal e potencialidade procriativa.


Ambos os movimentos exigem a consideração de fases anteriores de um complexo processual, o que é considerado por Keyserling. As águas que cobriam a terra ou que com ela se misturavam correspondiam a um estado anterior das águas abaixo da expansão de ar separadora do segundo dia, tendo como precedente as águas nas trevas onde se fizera a luz no primeiro dia.


Como Keyserling explicitamente menciona, a sua leitura do relato bíblico é feita a partir não do princípio do Espírito como convencionalmente, mas da perspectiva da matéria, que é aquela que é transpassada pelo Espírito. Essa perspectiva condiciona as fundamentais associações femininas na linguagem de imagens utilizada por Keyserling


A terra na pujança e beleza de sua vegetação e força reprodutiva, tem as suas bases na situação anterior lamascenta, o que explica as dicotomia nas meditações de Keyserling sobre a beleza e a atratividade, a suavidade e as virtudes sulamericanas de um lado e, de outro, da intensa sexualidade e promiscuidade de outro.


Tratar-se-ia aqui de duas partes de um todo, situações ou fases de um processo que corresponderia ao surgimento do sêco da terra da mistura lamaçal primordial.


„Hipertrofia da sensualidade“ e a atenção do filósofo a prostitutas


A vivência do Rio de Janeiro de Keyserling foi fundamental para que reconhecesse não apenas a beleza extasiante da natureza, das florestas e da vida animal, como também uma „hipertrofia da sensualidade“ condicionada por influências atmosféricas e telúricas.


A floresta seria sempre extremamente excitante, e a atmosfera do Rio seria afrodisíaca. O espírito da paisagem levaria a uma enorme potência e fertilidade, o que faria sentir-se no processo de aclimatação do imigrante europeu à nova terra. A crescente adaptação manifestava-se numa intensificação de desejos sexuais, o que levaria a uma frenética vida sexual. A procura de satisfação sexual e de desejos e procriação manifestar-se-ia na força sexual do homem, cujo principal exemplo seria o do homem argentino.


É significativo, assim que Keyserling, considerando a atmosfera afrodisíaca sul-americana, desse atenção a seus prostíbulos e prostitutas. As suas observações empíricas basearam-se aqui em visita a bordel, para o qual foi convidado por homens de influência na política e na vida intelectual. Ali pôde constatar diferenças quanto à atmosfera em casas de prostituição da Europa.


Nos bordéis sulamericanos predominava um „silêncio de procriação concentrada“, e nas pausas, uma atmosfera descontraída como em ingênuas horas de lazer após o trabalho. A atmosfera nessas casas de prostitutas era doméstica e aconchegante como num lar de camponeses. Assim, os cafetões não apemas lucravam das mulheres prostituídas, mas também delas cuidavam com atenção.


As mulheres levadas à prostituição na Argentina e no Brasil não estariam em geral infelizes; as „queridas“ eram tratadas muito bem. As mais distintas entre elas eram de grande beleza, sendo apresentadas pelos seus chefes com o aparato com o qual um pachá oriental introduz as mais belas do seu harém.


Keyserling constatou a existência de diferentes círculos e níveis de „queridas“. Em geral, não se estorvavam mutuamente, na maior parte nada sabiam uma das outras, convivendo entre si de forma comparável como as diferentes espécies de animais convivem na natureza.


Assim, não existiria na América do Sul, segundo Keyserling, contradição entre família e a vida sexual fora dela. A família é o santuário, onde o homem, mesmo que leve uma vida sexual desenfreada fora dela, realiza o seu culto, no qual é o patriarca. As meninas são castas, as mulheres fiéis, e as famílias são instituições de procriação, havendo por todo lado um número fantástico de crianças. Tanto no bordel como no lar, Keyserling sempre se lembrou dos termos formigar e pulular, que lhe pareciam adequados para a situação que vivenciou,



Colóquio no Instituto Butantã: a serpente na linguagem visual psicológico-cultural



Como Keyserling menciona no seu texto, uma visita ao Instituto Butantan em São Paulo foi decisiva para as suas reflexões e para as imagens que emprega. (op.cit. 42-43)


Se muitos outros viajantes do passado sempre visitaram o Butantan que era então uma das grandes atrações de visitas ao Brasil, nenhum tirou dessa visita conclusões de maior abrangência e implicações do que Keyserling.


Como nas suas explanações utiliza ide linguagem visual com imagens de gênero, foram consideradas em seminário de Gender Studies na Universidade de Bonn em 2003/2004.


Compreensivelmente, o uso de imagens de gênero por Keyserling, sobretudo daquelas relativas à mulher, levantaram polêmicas e exigiram leituras acuradas e discussões esclarecedoras. Realizando-se, por motivo dos 450 anos de São Paulo um colóquio internacional de estudos interculturais, incluiu-se uma visita ao Instituto Butantan em colaboração com aquela universidade alemã.


No Butantã, o filósofo, segundo as suas palavras, surpreendeu-se em ver a aparência inofensiva, aconchegante e mesmo convidativa a carícias das mais terríveis serpentes venenosas.


Elas ali se encontravam como mães satisfeitas com os seus filhos. Entretanto, enquanto pareciam viver de forma tranquila e inofensiva, estavam prontas para o ataque rápido. Não se podia ver e supor, das aparências, o perigo que representavam. Eram belas e fascinantes, com grande poder de atração, de modo que a presa, quase que como hipnotizada, não podendo fugir, era agarrada e morta.


Dessas observações, Keyserling chega a conclusões relativamente ás esferas mais ínferiores do interior do homem, às suas bases orgânico-psíquicas de sua natureza animal, do papel da mentira e do despistar, da traição e do engôdo, do ataque inesperado, sorrateiro e traiçoeiro, assim como do fascínio e da tentação que prende e por fim leva à morte.


Os indivíduos que estão mais próximos dessas profundezas do estado primordial encarnam a forma de ser dessa vida de répteis.


Na América do Sul, essa situação era muito acentuada, o que podia ser constatado na frequência com que os crimes de morte eram cometidos por detrás e não de frente, em luta aberta, de cara-a-cara.


O falso e o despistar consistuem porém na realidade o mal, enquanto que o lutar de frente pode adquirir em certos casos até mesmo sentidos nobres relacionados com a coragem. Todo o tipo de mentira, de falsidade, de despistamento e tentações é expressão do mal, e essas eram, segundo Keyserling, comuns na América do Sul.


Do sentido geral desse mal primordial entender-se-ia a reptilidade do sulamericano, e a sua frieza e sangue frio apesar do calor aparente do seu temperamento, fato tematizado em várias meditações de Keyserling. Essa reptibilidade faria da vida um tormento, um sofrimento infernal, como teria sido reconhecido por Bolivar pouco antes da sua morte. (op.cit. 43)


Associações com animais de sangue frio, peixes, anfíbios e répteis


Essa sensualidade sulamericana teria uma natureza que lembrava a pululante procriação piscosa ou de répteis. Por esse motivo, a América do Sul tinha a imagem de ser um antro pecaminoso. Para Keyserling seria, de fato, um antro, mas o conceito de pecado não devia entrar na discussão. Falta de virtude poderia ser aplicado apenas quanto à razão.


Essa natureza anfíbia surgia de forma quase que incompreensívelmente paradoxal, pois na América do Sul os países se caracterizavam pela sua cordialidade, impulsividade e espontaneidade. As mulheres seriam de grande doçura, pois toda a ordem da vida fundamentava-se no sentimento, de modo que tinha-se a impressão de uma atmosfera quente. Seria porém um grande êrro supor-se que se construisse aqui uma imagem de calor.


A maciez, a doçura, a amizade e o carinho são aqui qualidades essencialmente de peixes e anfíbios: em si frios, homens e mulheres do continente dirigem toda a sua vida instintivamente em aquecer-se através de impressões que fazem bem.


Reagem ao calor como nenhum outro povo, mas não o possui. É transpassado tanto pelo calor como pelo frio como os peixes, anfíbios e répteis,  por isso, as mulheres sulamericanas teriam horror a palavras duras, a cólera, não suportando violências de paixão quente.


Por outro lado, porém, do mais profundo do seu ser, gostariam de ser totalmente passivas, sem responsabilidades, e o sucesso frequente de homens sulamericanos na Europa residiria no fato de que, apesar de todo o sentimento de ternura, faziam sexo violento como algo óbvio. (pág. 32)


Sensualidade e tristeza sulamericana: Post coitum animal triste


Na sexualidade frenética de cunho reptílio do Sulamericano residiria os fundamentos da profunda melancolia sulamericana. Predominaria no subcontinente a atmosfera „de sapos masculinos esgotados ou da fêmea prenhada cheia de ovos“.


Assim como o homem se sentia envolvido na floresta do Amazonas, assim se sentia imergindo no pântano do seu mundo inferior, sempre perdendo a sua forma no lamaçal.


A exuberância da vida americana não se encontraria nunca sob o signo da alegria. Seria uma vida em sordina. As ruas seriam semi-escuras à noite, as faces impassíveis, falava-se com voz baixa, o rir alto não seria distinto, e a atenção às aparências externas serviria a encobrir o lamaçal do próprio ser interior.


O belo da natureza e das mulheres na América do Sul e o seu lado oposto


A beleza da natureza e das mulheres na América do Sul é frequente tematizada por Keyserling.


Êle louva a beleza dos colibris, dos peixes multicolores e das borboletas. A realização pessoal na forma de beleza seria um impulso primordial nos sulamericanos, muito mais forte do que nos europeus.


Apesar de todas as suas considerações relativas ao impulso à beleza como característico da psique do homem e da mulher na América do Sul, as suas meditações salientam o fato de que não existiria em nenhum lugar do mundo beleza sem uma parte inferior feia. Esse fato poderia ser constatado na ourivesaria. Gemas preciosas, belas jóias tinham como precedente a feia pedra. Essa menção aos minérios e às gemas preciosas e belas que deles provinham adquiria particular significado para um subcontinente no qual a mineração, a garimpagem, ou seja, a extração de preciosidades da terra não podia ser comparado com aquele de nenhuma outra parte do mundo.


Dessas observações relativas a pedras, Keyserling passava a meditar sobre a vida animal. Um sentido fundamental da esmeralda, do rubim, da turmalina e de outras gemas que irradiavam beleza teria o seu correspondente no mundo dos animais de sangue frio. Os peixes no Amazonas, na sua beleza de cores, surgiam como jóias preciosas. O mesmo poderia ser dito da beleza da cobra coral, das brilhantes borboletas e dos colibris.


Também o impulso à beleza tão intenso no sulamericano revelaria a problemática da beleza terrena. Para o observador, a beleza sulamericana ou as obras criadas pelo homem sulamericano no seu impulso ao belo surgiam já numa primeira aproximação como algo inacabado, como insuficiente elaboração de uma matéria prima, como esboços da natureza. Aquilo que teve a intenção de ser beleza perfeita surge como uma superfície brilhante que existe concomitantemente com uma esfera subterrânea não-bela.


Imperfeição da beleza na América do Sul e os rastaquaires sulamericanos


Essa constatação da imperfeição da beleza na América do Sul explicava, segundo Keyserling, a frequência com que se encontravam rastaquaires no subcontinente.


Homens e mulheres sulamericanos caracterizavam-se aos olhos dos europeus pela sua exagerada e falsa elegância, pelo excesso de jóias, pela mania de expor riqueza, poder e grandeza que nem sempre existem. Esse fenômeno de mau gosto ou falta de distinção e reserva, que se relaciona com o engodo, não é analisado por Keyserling sob a perspectiva comparativa com expressões européias - como nos Dandys -, nem como resultado de processos auto-afirmativos em situações de integração e transformação de identidades, como nos estudos atuais, mas sim como uma manifestação de incongruência entre substância e forma que estaria fundamentada na psique nas suas relações com o mundo natural.


O rastaquaire sulamericano procurava ser aquilo que não podia ser, apenas podendo parecer sê-lo. As observações de Keyserling sugerem que o filósofo percebeu os elos entre essa tendência ao exagêro e à demonstração de riqueza e a situação integrativa e identificatória de imigrantes, pois afirma que aqueles que procuravam aparentar aquilo que não podiam ser teriam descendentes que seriam aquilo que teriam gostado de ser. Haveria, assim, uma realização no decorrer das gerações daquilo que havia sido cultivado nas suas aparências.


A influência da vivência sulamericana na psique do próprio observador europeu


Em vários pontos de seus textos tematiza ou sugere Keyserling a influência da experiência sulamericana nos europeus. Isso valeu sobretudo para si próprio, e Keyserling confessa a transformação fundamental por que passou na América do Sul e que influenciou o seu pensamento e modo de vida.


Abre até mesmo as suas meditações mencionando o quanto era restrito nas sua percepção do mundo antes de vir à América do Sul e as novas perspectivas que essa vivência lhe abrira. Neste sentido, o subcontinente tinha-lhe proporcionado muito mais do que a Indía e a China. Na América do Sul fora obrigado a desenvolver novos órgãos de percepção e de compreensão pra uma realidade que lhe era até então desconhecida. Essa transformação interior fora difícil e por muito tempo sofrera psiquicamente e mesmo orgânicamente.


Essa auto-transformação interna e as novas perspectivas tinham relações com a predominância da terra e do terreno na América do Sul.


Em nenhum outro lugar do mundo sentira-se tão preso à terra como na América do Sul. Essa experiência tinha consequências para os sentimentos de ligação à terra natal, aos sentimentos de pago ou „querência“ (Heimat), observação que surge ainda hoje como de significado para análises de transformação de identidades de imigrantes.


O vínculo com a terra experimentado na América do Sul não podia ser, porém, explicao pelos sentimentos de apego à paisagem ou à terra natal. Significava antes um vínculo ao terreno ou ao espírito do terreno. O sulamericano, porém, seria totalmente um homem terreno. Ele encarnaria o polo oposto do homem condicionao ou transpassado pelo espírito. Assim, perante o sulamericano, Keyserling não tinha meios de utilizar os seus órgãos de compreensão, precisando criar novos, o que apenas conseguiu com dificuldades.


A perspectiva de Keyserling na análise desses vínculos com a terra na América do Sul partia da vigência de dois princípios, o do espírito e da matéria. O europeu - mas também o indiano e o chinês - estariam sob a dominância do espírito, e isso explicaria o fato de sentir-se muito mais próximo da Índia e da China do que da América do Sul. Chegando ao subcontinente, defrontou-se com um mundo para êle desconhecido, dominado pelo espírito da terra que atraia e o ligava ao terreno.


A análise da auto-transformação interior de Keyserling baseou-se nas suas concepções da tensão existente entre a terra na sua forma ou aparência de beleza e a sua natureza primordial, disforme.  O vínculo com a terra vivenciado na América do Sul significava um vínculo com o mundo subterrâneo.


Como a terra do terceiro dia da Criação surgira com a saída das águas que correram e juntaram-se no mar, tinha ela como bases a situação lamascenta anterior, local de vida de seres que têm a sua existência entre água e terra e em pântanos: anfíbios e répteis. Seria a partir dessa vida animal que se compreenderia o sentido mais profundo da terra e do terreno que o europeu passava a vivenciar e cuja força o dominava na América do Sul. Tratava-se, assim, de um processo de tornar-se réptil, de reptilização do homem.


Metáforas musicais no processo de adaptação do europeu à terra na América do Sul


O processo de transformação psíquica e existencial do europeu no confronto com a América do sul é tratado por Keyserling através de termos, associações e metáforas musicais. Êle teria procurado desde a sua chegada de não querer ensinar, mas sim aprender dos sulamericanos, de ressoar em sintonia com o rítmo estranho do subcontinente. Esse esforço de sintonizar-se ao rítmo sulamericano roubara-lhe o equílibrio da alma.


Como o corpo poderia ser visto metaforicamente como „mostrador de relógio da vida“, esse desequilíbrio vivencial manifestou-se em frequentes acessos de aritmia do europeu, e essa aritmia correspondia às complexas interferências de melodias em si incompatíveis: a melodia do Eespírito e a melodia do espírito da terra. Somente quando os novos órgãos que permitiram o ressoar em sintonia se configuraram é que se abriram para Keyserling novas perspectivas para o confronto com a realidade.


Essa era a perspectiva a partir da terra, não do espírito. Essa posição resultava numa revelação, e toda a realidade surgia diferentemente daquela até então vista. Era um enriquecimento, pois muito da realidade apenas podia ser observado a partir dessa perspectiva, desconhecida para o europeu.


Diferenciação das análises de Keyserling


As meditações de Keyserling que partem no seu primeiro capítulo da visão e do entendimento da demopsicologia sulamericana a partir do terceiro dia da Criação segundo as Escrituras, não considera suficientemente o fato do relato bíblico da obra dos „seis dias“ sempre tratar da noite e do dia nos respetivos dias.

À noite do terceiro dia diz respeito ao fluir das águas em correntes que se dirigem ao mar ou oceano e que ali se ajuntam, ao dia, ao surgimento do sêco da terra. O fluir das águas surge como precedente e pressuposto à secagem da terra com a sua cobertura vegetal e força reprodutiva.

Esse fluir manifesta a força de aquecimento, o fogo, de modo que o movimento descendente do fluir das correntes ao mar representa um ascendente do fogo ou da luz, a um clarear. Se o surgimento da terra na sua magnificência vegetal e força reprodutiva corresponde à primavera do hemisfério norte, ela é precedida pelo fato dos dias se tornarem mais longos do que a noite a partir do equinócio primaveril, correspondendo ao raiar da manhã no dia.

Na situação precedente da água sobre a terra, essa luz que agora se levanta se encontrava nas trevas da noite, e que desde o solstício de inverno experimentava uma ascensão nos dias que tornavam-se gradualmente maiores.

Significativamente, nas suas meditações, Keyserling reconhece que na América do Sul o europeu se defrontava por todo lado com o espírito da Magna Mater. Essa menção, feita em outras meditações, necessita ser considerada também na primeira, dedicada que é explicitamente ao „terceiro dia da Criação“.

Com isso, a dominância do espírito terreno, que correspone apenas ao „dia“ do terceiro dia, necessita ser completada com a consideração da „noite“ que precede esse mesmo dia na linguagem de imagens tomada como referência por Keyserling.

Essa consideração leva a uma necessária reconsideração das análises e reflexões do filósofo. As suas palavras indicam que, na sua vivência na América do Sul, voltou-se e experimentou primordialmente a força da terra, a beleza das aparências com as suas bases subterrâneas, do frio que procurou definir em comparações com anfíbios e répteis, não aquela da luz que se levanta das águas e que poderia ser tematizada em termos de Sabedoria.

Esse reconhecimento é feito apenas em meditações posteriores e que culminam com o do papel que a América do Sul teria a desempenhar na Humanidade. O recurso analítico da sua filosofia demopsicológica, baseando-se no terceiro dia da Criação, não pode deixar de colocar em primeiro lugar a Sabedoria, justamente considerando que o autor das meditações foi o fundador de uma „Escola da Sabedoria“.

(Veja outros artigos nesta edição)

De ciclos de estudos da A.B.E.
sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Ed.).“O „continente do terceiro dia da Criação“.O pensamento científico da Evolução em relações com a Gênese- a „reptibilidade“ do sulamericano na Psicologia Cultural“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 158/6  (2015:06). http://revista.brasil-europa.eu/158/Continente_do_terceiro_dia.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

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