Beth Ernest Dias: Cítara e Choro em Brasília
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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N° 168/16 (2017:4)


Resenha

Sábado à tarde
Avena de Castro, a Cítara e o Choro em Brasília
de Beth Ernest Dias

 
A publicação Sábado à tarde: Avena de Castro - a cítara e o choro em Brasília, de Beth Ernest Dias com a colaboração de Severino Francisco (Brasília, DF: X2 Produções, 2016, ISBN: 978-85-92677-01-5, 138 págs., ils.) pode ser considerada como uma das mais significativas contribuições recentes não só para a pesquisa musical no Brasil como também para os estudos musicológicos de orientação cultural e interdisciplinar.

A obra é acompanhada por um caderno com choros de Avena de Castro, com melodias e cifras, coordenadas por Beth Ernest Dias, oferecendo textos em português e inglês (Sábado à tarde: choros e Avena de Castro: melodias e cifras=Saturday afternoon: choros by Avena de Castro: melodies and chords/Heitor Avena de Castro; coordenadora Beth Ernest Dias. - Brasília, DF: X2 Produções, 1016, 60 págs, il. ISBN 978-85-92677-00-8).

Esta publicação da musicista, professora e pesquisadora de Brasília que integrou a Orquestra do Teatro Nacional Cláudio Santoro ultrapassa não só esferas do erudito e do popular como múltiplas fronteiras disciplinares, relacionando-as entre si.

Torna-se assim um exemplo da potencialidade de procedimentos que unem história à pesquisa empírica, estudo de fontes e registro da memória, música, arquitetura e urbanismo, estudos do quotidiano e histórico-políticos da época da implantação da capital do Brasil, revelando o papel desempenhado pela música, dança e artes em processos que ocorreram numa fase crucial da história do país do século XX e cujas consequências determinam o seu presente.

Trata-se, por um lado, de uma obra com estudos fundamentados em grande número de fontes orais e documentais, estas escritas ou em imagens, o que garante a sua alta qualidade científica.

Trata-se, por outro lado, de uma obra que evita academicismos na disposição das matérias e na sua linguagem, o que não só facilita a leitura como também favorece a percepção de sentidos em empatia com estados de espíritos de uma época e de contextos passados.

A esse transporte do leitor a ambientes e atmosferas contribui tanto as qualidades literárias dos textos, só aparentemente coloquiais e despretenciosos, como também as imagens que em grande profusão não só ilustram a obra como interagem com a palavra.

O próprio tratamento dos personagens mencionados denotam a sensibilidade aguçada por valores de uma época que, nas palavras do colaborador Severino Francisco, foi tão marcada pelo movimento da bossa nova, „leve, elegante, insinuante, moderno e apontando para o futuro“. (pág. 10)

Essas qualidades da obra não representam apenas um enriquecimento da publicação, fazendo de sua leitura uma experiência de fruição estética, mas surgem como relevantes e mesmo indispensáveis para o alcance de conhecimentos, uma vez que estes incluem a captação de situações e de processos mentais e psicológicos.

A publicação, na sua excelente configuração visual, teve projeto gráfico de Renata Fontenelle, seno produzida por Guilherme Cabra. Na sua capa, apresenta uma foto da Superquadra do IAPI (105 Sul), Brasília, de H. Franceschi (1959-1960).

O sumário do livro inclui cinco ítens: Quando Fala o Coração; Música no Meio da Poeira; O Sábado à Tarde; Heitor Avena de Castro; Cítara e Citaristas no Brasil. A esses textos seguem Fontes e dois apêndices.

Em Quando Fala o Coração, a autora, á guisa de introdução, lembra ter sido abordada em 2011 na Escola de Música de Brasília por Alexandre Pasche, um encontro que teria fornecido o impulso inicial para o estudo da história dos primórdios da música em Brasília, em particular com o choro e Avena de Castro. O pai de Alexandre Pasche, Giovani Pasche, tinha sido seresteiro e violonista. Vivendo em Brasília de 1961 a 1969, tomara parte de grupo de choro pioneiro na cidade. Pôde assim dar informações sobre a música nesses primeiros anos da nova capital.

O livro considera as reuniões que, entre 1968 e 1974, realizaram-se no apartamento do jornalista e cavaquinista Raimundo de Brito e que foram lideradas por Avena de Castro, citarista e compositor.

A autora, a partir do seu próprio caminho de descobrimento de um passado por muitos esquecido, traz à consciência que a memória das primeiras décadas da música em Brasília está em risco de perder-se, havendo a necessidade de registrá-la através de dados transmitidos oralmente por pessoas de idade avançada e com base em documentos conservados sobretudo em acervos particulares. Essa tarefa, porém, não é compreendida pela autora como simples reconstrução narrada a partir dos dados levantados, mas como uma composição que possa oferecer um panorama da cidade nos seus primeiros anos pela via afetiva, o que é expresso poeticamente como sendo o do som da música de cítara soando em ambiente marcado pelas circunstâncias de uma cidade em construção.

„Brasília teve grande visibilidade na época da construção e na festa de inauguração. Depois... feta acabada, músicos a pé! Nesta narrativa, a presença do exótico e delicado som da cítara de Avena de Castro nos canteiros de obras de Brasília foi tomada como fio condutor para a composição de um panorama da cidade naquele momento pelo viés da afetividade, mostrando um pouco do que pulou para fora da prancheta e de um cotidiano que transcorria dentro e fora dos monumentos em construção.“ (pág.5)

No capítulo „Música no Meio da Poeira“, Severino Francisco oferece um esboço histórico do início da construção de Brasília, nele considerando de forma documentada as suas relações com a música. Sob muitos aspectos esse seu trabalho surge como pioneiro, abrindo perspectivas inusitadas para análises de processos históricos e mesmo políticos dos anos de presidência de Juscelino Kubitschek. Considerando a própria propensão desse presidente à música e dança, lembra da tradição seresteira da sua cidade natal, Diamantina, mas a sua atenção é voltada sobretudo à análise das razões da intensa vida musical de sua época a partir de um contexto político-cultural repleto de contradições. Menciona, entre outros aspectos,  encontros musicais no então palácio presidencial no Rio de Janeiro com músicos como Dilermando Reis, Silvio Calas, Altemar Dutra, e outros, assim como de músicos e cantores nos primeiros momentos da história de Brasília, como Elizete Cardoso ou mesmo Maria Lúcia Godoy como integrante do Madrigal Renascentista de Belo Horizonte.

O autor salienta que a música não só acompanhou a história de Brasília desde os seus primórdios, como até mesmo a ela precedeu. Antes de Tom Jobim vir a Brasília com Vinicius de Moraes para compor a Sinfonia da Alvorada, em 1960, a polêmica relativa à construção da nova capital já ressoara na música popular. Vários exemplos de textos de canções que tematizam os receios e as esperanças decorrentes da mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central são apresentados por Severino Francisco.

Também de especial interesse é a menção dos locais e instituições de Brasília nesses primeiros anos de significado para estudos a vida musical urbana: bares, restaurantes, hotéis, clubes e residências, boates no Núcleo Bandeirante, assim como a Rádio Nacional. Esta e a seguir a TV Nacional, surgem como instituições de particular importância para a música em Brasilia com shows no auditório da emissora ou em cima de caminhões, representando uma „porta de entrada para os artistas na nova capital“. Entre os programas, o autor menciona o Pelos Caminhos da Música, com a participação do conjunto de Bernard Concorcet, um dos primeiros professores da Escola de Música, na qual se salientaram Reginaldo Carvalho, Emmanoel Coelho e Levino Alcântara. Uma particular consideração é dada à UnB, inaugurada em 1962, assim como ao plano que articulava a universidade com o ensino médio através da criação do Centro Integrado de Ensino Médio idealizado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. O curso de música passou a ser dirigido por Claudio Santoro, do corpo docente passou a fazer parte, entre outros, Rogério Duprat.

No capítulo „O Sábado à tarde“, a atenção é dirigida a Raimundo Ferreira de Brito, executante de cavaquinho, que também se dedicava ao piano e que residiu, entre 1968 a 1974, em apartamento no bloco C da superquadra Sul 105, local onde se reunia aos sábados os músicos de choro, entre êles Pernambuco do Pandeiro, Waldir Azevedo, Avena de Castro e Jacob Bittencourt. O estudo representa uma substancial contribuição aos estudos do choro, partindo explicitamente de fontes fundamentais da literatura e desenvolvendo-os de forma contextualizada com uma profusão de dados documentais e depoimentos. Como a autora menciona, essas reuniões do início de Brasília continuam vivas na memória daqueles que delas participaram: „o que uns lembram como ensaios com organização e até certa rigidez outros evocam como uma roda de choro one se podia ouvir a melhor música que era feita na cidade.“ (pág.51). Não só na memória, mas também na prática esse passado teve continuidade através de Celso Cruz que teve a iniciativa de sugerir a criação de uma associação com a realização de concertos e shows como Clube do Choro de Brasília, fundado em 1977 em reunião realizada no apartamento da flautista Odette Ernest Dias, uma entidade que teve como seu primeiro presidente Heitor Avena de Castro. Sendo hoje instituição de significado no panorama musical brasileiro, promove apresentações e contribui à promoção do choro sobretudo através das atividades da Escola de Choro Raphael Rabello.

A vida, a obra e o papel desempenhado por Avena de Castro (1919-1981), tratados pormenorizadamente no terceiro capítulo da publicação, representam, para além de bem documentado estudo biográfico, uma contribuição relevante para os estudos histórico-musicais do Brasil do século XX. De início, distingue-se na sua carreira duas frentes de atuação, nas salas de concerto, no rádio e nas gravadoras do Rio de Janeiro, entre 1940 e o final da década de 50, e aquela como compositor em Brasília a partir de 1960. Tendo estudado na Escola Nacional de Música e no Colégio Militar, deu início ao estudo da cítara com o músico austríaco Carlos Tyll. Em 1939, passou a estudar cítara segundo a técnica de Richard Grünwald com Nikolaus Schaack, citarista de Luxemburgo residente no Rio de Janeiro. Após considerar as circunstâncias de sua formação e o início de sua vida profissional, a autora trata pormenorizadamente a fase de sua vida em Ubá, assim como a intensidade de suas atividades como instrumentista nos anos 50, em particular também através do rádio. Com a sua contratação pela Rádio Nacional, em 1952, consolidou-se a difusão ampla da música de cítara. Também aqui, o texto é fundamentado em ampla documentação, cujo interesse ultrapassa aquele dos estudos biográficos, sendo de relevância para os estudos culturais da radiofonia no Brasil. Avena de Castro é considerado como artísta de muitos talentos que se apresentava em viagens de concertos, como professor de cítara e artista de televisão. A sua transferência a Brasília é considerada nas suas relações com o declínio do significado do rádio no Brasil, surgindo a nova capital do Brasil como uma alternativa profissional. A surprêsa despertada por essa ousada decisão é tratada com pormenores, assim como as vicissitudes da vida na cidade em construção e o apoio recebido por João Tomé, compositor e instrumentista de Uberaba atuante em Brasília.

A atuação de Avena de Castro como compositor de choros e que marca a fase de sua vida na nova capital é alvo de um estudo exemplar, o mais pormenorizado e refletido que se conhece relativamente ao gênero. A autora distingue na sua obra composicional três blocos, respectivamente aquele de 1968 a 1973 com choros escritos para os participantes das reuniões, o de 1977-1978, com choros dedicados àqueles o âmbito da constituição do Clube do Choro de Brasília, e o 1981, este com três composições.

Sob o sub-título „quase falha o coração“, registram-se os encontros realizados a partir de 1977 no apartamento da flautista Odette Ernest Dias, professora da Universidade de Brasília. A expansão das atividades é tratada a seguir, assim como a visita ao grupo por figuras de renome da música brasileira em passagem por Brasília. Os ítens que se seguem traçam os caminhos do reconhecimento dos choros de Avena de Castro em dimensões nacionais, através de viagens e da produção fonográfica. Entre os grandes projetos, pode-se salientar aquele desenvolvido em 1979 com a flautista Odette Ernest Dias, o oboísta Carlos Ernest Dias e outros músicos em cidades-satélites de Brasília. Entre os concertos, salienta-se a „Noite de Avena de Castro“ na Sala Funarte de Brasília, em 1981. O mais extenso tópico tratado é o da carreira discográfica de Avena e Castro.

No quarto capítulo da obra, a atenção é voltada ao tema „cítara e citaristas no Brasil“. Neste texto, procura-se enquadrar a vida e obra de Avena de Castro no contexto maior da história do instrumento e do estado das pesquisas musicológicas. Entra-se em detalhes organológicos, considerando-se a cítara de concerto derivada da cítara alpina e o instrumento de Avena de Castro. Como documento de particular interesse histórico, a autora menciona a mais antiga referência encontrada sobre a presença da cítara em salas de concerto no Brasil, o 1° Grande Concerto de Cítara realizado no Salão Steinway, em São Paulo, no dia 7 de janeiro de 1889. Um dos músicos que nele participaram, Carlos Tyll, é considerado com mais detalhes em ítem dedicado aos professores de Avena de Castro, a êle seguindo-se Nikolaus Schaack.

Para a autora, a história da cítara no Brasil é, na realidade, dupla. Uma está ligada às colonias alemãs e austríacas no sul do país, outra estreitamente vinculada à Avena de Castro. Entretanto, deve-se considerar que essas duas correntes históricas relacionam-se e interagem sob diversos aspectos, como o demonstra os professores de Avena de Castro. Considerando a inclusão do seu nome num Handbuch der Zither publicado em Munique, em 1963, o estudo termina salientando o signicado de Avena de Castro como o „brasileiro que empreendeu uma cruzada solitária em favor da cítara, fazendo com que ela ressoasse pelos quatro cantos do país e para além da colônia germânica.“ (pág. 115)

A publicação encerra-se com o registro das fontes utilizadas - extensa bibliografia, artigos acadêmicos, dissertações e teses, artigos em periódicos e notícias em jornais, DVDs, Depoimentos, Acervos pessoais, Arquivos e Sites. Em dois apêndices, apresentam-se quadro das composições de Avena de Castro com data, título, gênero, forma, dedicatória e observações, e a discografia. Esta, em ordem cronológica, é dividida em gravações de Avena de Castro, de composições suas gravadas por outro artistas e CDs Sábado à Tarde, gravados no âmbito do projeto de mesmo nome patrocinado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Distrito Federal, em 2016.

Por todas as suas qualidades, essa publicação surge como exemplar e indispensável para os estudos musicológicos de orientação cultural do presente. Esse seu significado não se limita a Brasília e nem mesmo ao Brasil, mas diz respeito tanto ao mundo de formação cultural portuguesa, tão marcado por expressões afins àquela do choro brasileiro como também à esfera de cultura alemã. É uma contribuição sobretudo de relevância para o desenvolvimento e renovação teórica dos estudos organológicos, uma vez que estes deveriam ser conduzidos em relações com análises de processos culturais.

Antonio Alexandre Bispo


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. (Res.) „Beth Ernest Dias: Sábado à tarde. Avena de Castro, a Cítara e o Choro em Brasília“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/16 (2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Avena_de_Castro.html


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