_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Gamelang Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Gamelang Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

Gamelang Bali. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright



Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 168/ (2017:4)



N° 168/7 (2017:4)


A música de Java e Bali em relações com estudos dos próprios conhecimentos
Questões de história colonial
o museu da antiga Batavia segundo o austríaco Joseph von Lehnert (1841-1896)
em viagem de circum-navegação em direção ao Rio de Janeiro

 

Nas trocas de idéias com músicos balineses durante o ciclo euro-brasileiro dedicados às ilhas de Sonda no corrente ano, tematizou-se a questão das relações e interações entre os estudos culturais e aqueles da própria observação.

Essa preocupação - que constitui o escopo da A.B.E. - não é recente, tendo marcado as reflexões e os debates das últimas décadas. É uma orientação originada no Brasil na década de 1960 e levou a discussões não isentas de tensões na Europa, em particular na área da pesquisa musical.

O direcionamento da atenção a processos implica, entre outros aspectos, numa maior consideração do fator histórico nos conhecimentos obtidos na observação empírica e na contextualização histórica da própria ciência.

Essa orientação a processos implica em esforços de ultrapassagem de limites entre o europeu e o extra-europeu na determinação de áreas de estudos. Ela implica, também na relativação de uma visão do desenvolvimento dos conhecimentos que distingue uma fase anterior à institucionalização acadêmica de áreas de estudos extra-europeus daquela „pré-científica“ que a antecedeu.

Essa distinção entre uma fase pré-científica e uma científica é explicável por motivos humanos de auto-consideração de pesquisadores, alguns muito cientes de si, do seu saber e posição. Ela traz em si porém  o risco de perspectivações artificiais de desenvolvimentos e desqualificações do passado. Representa um problema sobretudo para a Etnomusicologia.

As observações em textos do passado - em particular em relatos de viajantes exigem tanto ser consideradas no seu contexto histórico respectivo como os estudos daqueles que já pertencem a uma fase marcada pela institucionalização universitária da área.

Considerá-los - assim como outras fontes históricas - na perspectiva de uma fase „pré-científica“ e „eurocêntrica“ da pesquisa, sobretudo por serem anteriores a técnicas de gravação, é arbitrário, insustentável do ponto de vista dos próprios estudos da ciência.

A crítica de eurocentrismo também é em geral recurso usado meramente para a desqualificação de colegas e unilateral, pois justamente a fase institucionallzada academicamente na área foi e é estreitamente relacionada com contextos político-culturais europeus e por êles marcada. Aqueles assim que desqualificam pesquisadores e aproximações como eurocêntricos são, em geral, aqueles mais „eurocêntricos“, mas presos a desenvolvimentos, a correntes de pensamento e a estruturas de poder acadêmico do Ocidente.

Essa mudança de orientação teórica e de revalorização de fontes históricas torna-se particularmente necessária com a intensificação do intercâmbio cultural e científico em dimensões mundiais e da globalização.

Foi com esse objetivo renovador tanto da área etnomusicológica como da musicologia histórica que realizou-se, de 1997 a 2002, na Universidade de Colonia, com o apoio do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S.e.V.) e posteriormente na Universidade de Bonn uma série de cursos voltados a processos culturais em contextos globais.

Nesses cursos, a música de Java e Bali recebeu particular atenção por diversas razões. O Gamelan, que sempre exerceu uma grande fascinação tanto em observadores do passado como do presente, marcou de forma intensa os estudos etnomusicológicos, levando até mesmo à constituição de ensembles instrumentais em universidades norte-americanas e européias, um fato já em si demonstrativo de processos receptivos.

A importância dessas expressões da Indonésia levou a que pesquisadores especializados, em particular também na Alemanha, passassem a ter posições de particular prestígio e autoridade, determinando com suas posições teóricas o ensino e o desenvolvimento da pesquisa, mesmo relativamente a questões que de muito ultrapassavam a esfera de sua atualização e competência.

Marcaram desenvolvimentos político-universitários e foram assim co-responsáveis de situações altamente questionáveis que depõem hoje contra toda uma área de pesquisa em países como a Alemanha.

Essa dissidência quanto a concepções e posições marcou de forma conflitante o relacionamento com esses estudiosos desde 1977 quando da fundação de instituto de estudos etnomusicológicos com a participação brasileira em Colonia/Maria Laach, perpetuando-se através das décadas.

Troca de idéias com músicos de Bali acerca do conhecimento de observações externas

Nos diálogos com os músicos de Bali, em 2017, constatou-se mais uma vez essa necessidade de renovação de concepções.

Ao contrário de constituirem apenas objeto de observação, os balineses manifestaram-se conscientemente interessados, bem informados e empenhados no estudo de expressões de sua própria cultura, assim como também naquele de correntes musicais internacionais.

A atenção foi dirigida à discussão da procura de conhecimentos a partir de diferentes perspectivas e à exigência de reler-se resultados de textos de especialistas considerando os seus condicionamentos culturais.

Neste sentido, a consideração de fontes que permitem análises de contextos nos quais se inseriram os observadores assume particular significado. Elas permitem em alguns casos revelar fatos e decorrências esquecidas ou mesmo silenciadas ou apagadas no decorrer da história, muitas vezes por motivos políticos.

Questões de relação entre pesquisa, história colonial e de-colonizações

Lembrou-se nos diálogos, em particular, das atividades de pesquisas da cultura musical de Java do período colonial holandês e de que estas não se iniciam em décadas mais recentes do século XX.

A personalidade, a obra e as concepções de Jaap Kunst (1891-1960), marcaram a história dos estudos etnomusicológicos respectivos com publicações como De toonkunst van Bali (1924) e De toonkunst van Java (1934), e, de forma ampla, a própria Etnomusicologia em geral. A memória de Jaap Kunst continua a ser celebrada, bastando lembrar da denominação do „Centro Jaap Kunst“ da Universidade de Amsterdam.

Essa posição relevante da pesquisa nos Países Baixos relativa à Indonésia necessita ser mais diferenciadamente avaliada considerando com maior atenção as suas inserções na história colonial.

Os desenvolvimentos dos estudos nos Países Baixos surgem sob novas perspectivas se considerados à luz de décadas precedentes de interesses pela cultura musical da antiga colonia, sobretudo por parte de holandeses da própria Batavia.


Lembrando o interesse de holandeses de Batávia pela música da colonia

A existência de estudos, publicações e até mesmo de um museu com grande coleção de instrumentos musicais em Java já em meados do século XIX tornou-se conhecida na Europa através do relato de viagens, em dois volumes, do admiral austríaco Joseph von Lehnert (1841-1896).

Esse relato, publicado em 1878, descreve com pormenores as suas observações durante uma viagem ao redor do mundo com a corveta „Erzherzog Friedrich“ em 1874, 1875 e 1876. (Josef Lehnert, Um die Erde. Reiseskizzen von der Erdumseglung mit S.M. Corvette „Erzherzog Friedrich“ in den Jahren 1874, 1875 und 1876, II, Wien: Alfred Hölder 1878).

Esse autor austríaco tornou-se conhecido por publicações de natureza militar, em particular da marinha na época em que a Dupla Monarquia ainda possuia portos de importância como Trieste e Veneza, desempenhando assim papel relevante no tráfico marítimo mundial. Significativamente, Jose Lehnert dedicou-se em particular ao estudo de portos e da vida portuária no mundo, colaborando, entre outros, com a obra Die Seehäfen des Weltverkehrs, editado por A. Dorn, em 1891.

A leitura da obra de Lehnert pressupõe a época e o contexto em que viveu e atuou o militar. Nascido em Milão, na Lombardia então austríaca, Joseph von Lehnert representa um tempo e uma configuração político-cultural praticamente esquecida da Europa. Com formação militar, atuou em diferentes naves e tomou parte de batalhas marítimas.

A viagem ao redor do mundo da Corvette „Erzherzog Friedrich“ incluiu portos da América do Sul, entre êles no Chile e no Uruguai, foi, porém, obrigada a não visitar o Brasil. O programa da viagem previa uma parada no Rio de Janeiro antes do retorno à Europa, encerrando a volta ao mundo; as condições sanitárias da capital do Império eram porém tão desfavoráveis devido à febre amarela que os austríacos a evitaram.

„Zwar hätte nach dem Programme der Reise as herrliche Rio e Janeiro angelaufen werden sollen, allein die sanitären Vehältnisse der brasilianischen Kaiserstadt waren die möglichst ungünstistigen; es grassirte dort as gelbe Fieber, so daß auf eine gestellte Anfrage unsere Gesandtschaft ernstlich von dem Besuche Rios abrieth.“ (op.cit. 1030)


Anteriormente, a viagem levara J. Lehnert ao Sudeste da Ásia, da qual deixou relatos de alto interesse histórico-cultural e mesmo ambiental.

Os registros de Lehnert, neste contexto, são particularmente significativos pelo fato de documentar o interesse dos holandeses que viviam em Batavia pelas tradições musicais locais.

Prova desse interesse era a coleção de instrumentos musicais que encontrou no museu da principal cidade da colonia. No seu texto, Lehnert oferece descrições de instrumentos e de modos de execução.

„O que nos interessou primeiramente no museu foram os instrumentos musicais, que em grande número enchiam o fundo de uma grande sala; são aqueles do singular Gamelang dos javaneses,dos quais há vários tipos. Os mais comuns são os gongos afinados musicalmente - são pratos de metal de boa sonoridade com uma protuberância no centro; um conjunto dos mesmos é constituído de oito a doze peças, que em diferentes tamanhos são presos a molduras de madeira de pouca altura e que os músicos percutem com uma ou duas baquetas de madeira. Outros são canos de bambús de diferentes comprimentos e larguras, suspensos, parecendo uma espécie de órgão, ou peças largas de metal penduradas por cordões e que também são percutidas com pauzinhos. Gongos grandes com um diâmetro de um metro, flautas e violinos de duas cordas encontravam-se pendurados nas paredes. Na verdade, o Gamelang não é outra coisa do que uma orquestra de sinos que produz um efeito surpreendente com os sons potentes do gongo.“ (op.cit. 772 ss., trad. A.A.Bispo)

Significativo é também o fato de Lehnert registrar um fundamental pentatonismo nas formações escalares, o que indica a sua formação musical. Nessa sua constatação, lembra que o pentatonismo também ocorria em outros contextos culturais.

„A escala dos instrumentos é como aquele que se tira quando se toca apenas as teclas pretas de um piano e nela estão compostas as melodias dos javaneses. Também os cantos dos chineses e algumas das melhores melodias indianas ou norteamericanas são construídas dessa forma.“ (loc.cit.)

Para além da coleção de instrumentos do museu de Batávia, Lehnert registra o significado da biblioteca ali existente. Nela encontravam-se publicações de autores e sociedades voltadas ao estudo de tradições na colonia e que já há quase 100 anos ali tinham sido criadas. Com isso, Lehnert documenta que o interesse pelos estudos de tradições populares do século XIX não se limitou à Europa, mas também extendeu-se a regiões coloniais asiáticas.

„Com o amplo departamento etnográfico do museu relaciona-se a biblioteca; ali se encontram revistas relativas à terra e à etnografia da colonia que são publicadas desde quase cem anos por várias sociedades holandesas. Elas são um demonstração expressiva da atividade científica dos holandeses que vivem em Java.“ (loc.cit.)

Por fim, reafirmando opiniões de outros autores, salienta o significado da música para os javaneses em comparação àquele de outros povos e a impressão extraordinariamente positiva que causava aos europeus. Como característico do pensamento do século XIX voltado a progressos e evoluções, viu nesse fato um sinal do maior desenvolvimento.

A música era para êle a arte na qual esse povo demonstrava o maior progresso em comparação com a maior parte dos povos asiáticos. As melodias javanesas eram estranhas, lamentosas e mais agradáveis aos ouvidos europeus do que qualquer outra música asiática, nem mesmo excetuando-se a dos persas. (op.cit. 772-223)

Estudo da literatura sobre Java, Bali e sua música: John Crawfurd (1783-1868)

Lehnert demonstra aqui ter estudado a literatura relativa a Java, uma vez que cita John Crawfurd, autor que considerara a música de Java, em particular o Gamelan. (History of the Indian Archipelago. Containing an Account of the Manners, Arts, Languages, Religions, Institutions, and Commerce of its Inhabitants. With Maps and Engravings. In Three Volumes, Archibald Constable & Co., Edinburgh, 1820, 327 ss; Descriptive Dictionnary of the Indian Islands, London 1856, 289/290).

„Medicine and music, the one by necessity, the other for amusement, have made more progres, or been more practised. Of the first they are, indeed, like other barbarians, extremely ignorant as a science, but in the last they have made a progress unusual in their state of society“ (History...opc.ti. 327/328).


Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. Ed.). „ A música de Java e Bali em relações com estudos dos conhecimentos. Questões de história colonial: o museu da antiga Batavia segundo o austríaco Joseph von Lehnert (1841-1896)
em viagem de circum-navegação em direção ao Rio de Janeiro“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 168/7(2017:4).http://revista.brasil-europa.eu/168/Musica_de_Java_e_Colonialismo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
Corpo administrativo: V. Dreyer, P. Dreyer, M. Hafner, K. Jetz, Th. Nebois, L. Müller,
N. Carvalho, S. Hahne




 



Música de Java e Bali na história colonial
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 168

Correspondência Euro-Brasileira©