Mentalidade musical paulista e Villa-Lobos

ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Bruehl. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Brühl. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 169/8 (2017:5)




Villa-Lobos, São Paulo e paulistanismos
A „mentalidade musical“ de São Paulo no pensamento
e suas implicações na literatura, nas artes e na universidade
Lembrando Guilherme Figueiredo (1915-1987)

Reflexões de outono em Brühl, Alemanha, pelos 20 anos do falecimento de Guilherme Figueiredo (1915-1987)  e 30 anos de sua participação no
Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de Villa-Lobos

 

Transcorridas duas décadas do falecimento de Guilherme de Oliveira Figueiredo, personalidade que se distinguiu em muitas áreas do saber, das artes, da literatura, da história político-cultural, diplomática e universitária do Brasil, cumpre trazer à memória o papel por êle desempenhado no âmbito dos estudos euro-brasileiros desenvolvidos pela A.B.E. e pelo ISMPS.

Importante momento nessa atuação de décadas deu-se dez anos antes de seu falecimento, quando foi convidado a proferir discurso como paraninfo de honra e presidir uma das sessões do Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado em São Paulo pelo centenário de Heitor Villa-Lobos em 1987.

A posição relevante desempenhada por Guilherme Figueiredo nesse congresso explicava-se sobretudo do fato de ser originado de São Paulo, consciente de forma manifesta de sua identidade paulista, embora vivendo e atuando no Rio de Janeiro, onde desempenhava a função prominente de reitor universitário.

Poucas personalidades podiam ser assim mais adequadas a um congresso que, realizando-se em São Paulo em ano comemorativo de Villa-Lobos, dirigia necessariamente a atenção ao papel de São Paulo na vida, na obra e na ação educativa do compositor.

As relações entre São Paulo e o Rio de Janeiro nos estudos culturais que focalizam Heitor Villa-Lobos podiam ser assim tratadas não apenas abstratamente, mas sim personalizadas no vulto de um intelectual que como poucos manifestava com orgulho a sua paulistanidade e, ao mesmo tempo, atuava em dimensões nacionais a partir da antiga capital do Brasil.

A paulistanidade nas suas relações com sentimentos nacionais de Guilherme Figueiredo derivava da sua própria tradição familiar, marcada que foi pela vida militar de seus antepassados, tanto na Guerra do Paraguai como e sobretudo na Revolução Constitucionalista de 1932, onde o seu pai, General Euclides e Oliveira Figueiredo, destacou-se na oposição a Getúlio Vargas, tendo sido preso e exilado dorante o Estado Novo.

Essa história familiar trazia à consciência dos congressistas a necessidade de uma consideração mais diferenciada do complexo político-cultural representado entre uma identidade paulista tão marcada pela Revolução de 1932 e Villa-Lobos nas suas estreitas relações com Getúlio Vargas e a sua atuação no Estado Novo.

A discussão dessas complexas relações político-culturais adquiria atualidade já pelo fato de seu irmão, o General João Baptista de Oliveira Figueiredo, ter sido até há pouco Presidente do Brasil.

Significado dos pronunciamentos de Guilherme Figueiredo no congresso de 1987

Nos seus pronunciamentos, Guilherme Figueiredo expôs e defendeu opiniões e posições que merecem ser recordadas, pois exprimem aspectos fundamentais do seu pensamento, motivos condutores de suas atividades, assim como das reflexões comuns encetadas no Brasil e na Europa.

Elas surgem como significativas sobretudo pelo fato de darem exemplar testemunho de visões e interpretações que representaram tendências do pensamento, questionamentos e ideários de mais ampla abrangência e difusão na história intelectual do Brasil do século XX. Elas adquirem assim interesse para a história do pensamento e da pesquisa nas suas relações e interações com os próprios estudos das culturas e das artes.

Em congresso que tinha como objetivo constatar a situação dos estudos de cunho musicológico no Brasil, cumpria tematizar idéias condutoras que tinham marcado interpretações e iniciativas por décadas, registrar a sua permanência e vigência no presente e discutí-las a serviço de um prosseguimento esclarecido das reflexões.

Os seus pronunciamentos no congresso pelo centenário de Villa-Lobos ganham sobretudo em significado se considerados a partir de um desenvolvimento de décadas na pesquisa músico-cultural, iniciado em São Paulo e prosseguido em contextos internacionais.

Antecedentes: o programa „Musicologia Paulista“ da década de 1960

Esse desenvolvimento remontava ao programa de pesquisas de „Musicologia Paulista“ no contexto do movimento de renovação teórico-cultural de estudos de processos (Nova Difusão) e que levou à fundação do Centro de Pesquisas em Musicologia.

No âmbito desse programa, o levantamento de fontes e estudos levaram a uma particular consideração do contexto regional em que se inseriu Guilherme Figueiredo na sua formação, em particular Campinas, Itú e cidades vizinhas.

Sobretudo a revalorização - e mesmo redescoberta - de Elias Álvares Lobo não poderia ter sido realizada sem estudos pormenorizados da vida cultural e musical da região. Esses esforços de análise diferenciadora de contextos nas suas características regionais sobretudo relativamente àqueles do Vale do Paraíba não se resumiram a considerações históricas na sequência de desenvolvimentos de expansão econômica e de colonização no Estado, mas sim voltaram-se a questões de mentalidade, psicológico-culturais, de „ethos“, de consciência e de auto-imagem.

A importância dessa região na história da música e da organização profissional de São Paulo manifestou-se na realização do primeiro congresso de músicos da província um século antes do congresso, fato lembrado pelo editor na sessão inaugural do evento. Também nete sentido, surgia como altamente significativa a presença de Guilherme Figueiredo.

Esses desenvolvimentos relacionaram-se também estreitamente com Cleofe Person de Mattos (1913-2002), pesquisadora de renome pelos seus estudos histórico-musicais, regente e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Veja)

Desde a segunda metade da década de 1960 criaram-se relações de colaboração e amizade que foram desenvolvidas e aprofundadas em muitas ocasiões no Brasil, na França e na Alemanha.

Esses intuitos interdisciplinares disseram respeito não apenas às relações entre disciplinas do estudo e do ensino musical, mas também àquelas da música com outras áreas dos conhecimentos e das artes. Reflexões teoricamente fundamentadas relativamente à interdisciplinaridade representavam uma exigência em anos marcados por anelos de polivalência no ensino e na formação de professores de Educação Musical e Artística.

A potencialidade de tais intentos e os riscos que já se delineavam de sua compreensão superficial e de uma aplicação diletante foram objeto de encontros em diversas ocasiões nos anos que se seguiram.

O programa euro-brasileiro a partir de 1974 e a interdisciplinaridade

Guilherme Figueiredo, nas suas intensas atividades como adido cultural da Embaixada do Brasil na França, promovia eventos que abrangiam e relacionavam entre si diferentes esferas da literatura, do teatro, das artes em geral e da música.

A sua própria obra como escritor e dramaturgo manifestava um pensamento abrangente, relacionando literatura, crítica, arte dramática, dança, música e estudos clássicos, assim como uma atitude que sugeria ultrapassagens de fronteiras, do trágico e cômico, do erudito e popular.

Essas reflexões, por diversos caminhos, intensificaram-se durante os anos que Cleofe Person de Mattos foi presidente da Sociedade Brasileira de Musicologia e nos quais tiveram lugar os preparativos para a realização do primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, efetivado porém já sob nova diretoria.

Na sua preparação, considerou-se que a problemática da interdisciplinaridade e de um papel especial que caberia à música segundo antiga tradição de pensamento, deveria ser tematizada já na abertura o evento, uma vez que surgia como decisiva no âmbito dos esforços e das iniciativas voltadas à institucionalização da musicologia no Brasil.

A esse desejo veio de encontro Guilherme Figueiredo já na abertura da sua conferência inaugural, pedindo aos pesquisadores presentes que permitissem que êle, convidado como paraninfo do Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, afirmasse que, não sendo músico, não só seria um engano a sua presença por uma razão fundamental: a música não é feita para músicos. A música é para ser ouvida, também por aqueles que não são músicos.

Ainda que não considerando-se músico, Guilherme Figueiredo possuia aptidão e formação musical. Tinha até mesmo uma composição que alcançara sucesso em gravações, escrita em 1961 juntamente com Geysa Bôscoli - Maria Chiquinha.

Paulistanismo de Guilherme Figueiredo e significado musical de S. Paulo

Como mencionado, um dos motivos que fêz com que a presença de Guilherme Figueiredo adquirisse particular significado nesse primeiro congresso foi o fato deste ter lugar em São Paulo. Nascido em Campinas, de história familiar marcada pela participação de seu pai e sua na Revolução Constitucionalista de 1932, era personalidade profundamente vinculada a São Paulo, ainda que grande parte de sua carreira tivesse sido no Rio de Janeiro. Tornou-se um estudioso da história da antiga capital do Brasil, tendo sido um de seus contos premiado no concurso de histórias sobre a cidade do jornal Correio da Manhã em 1963.

O seu paulistanismo, porém, ia mais longe, vendo a escolha da própria cidade de São Paulo para sede desse primeiro congresso como justificada pelo papel que nela representou a música desde os seus primórdios.

Nessas considerações preliminares, Guilherme Figueiredo retomava pensamentos que marcavam a sua compreensão de arte dramática nas suas relações com a música referenciada segundo antigas concepções helênicas e que manifestara, entre outros, nos seus diálogos publicados em Xântias - Diálogos sobre a Criação Dramática (Ed. Civilização Brasileira).

Já em 1949 tinha apresentado Um Deus Dormiu Lá em Casa, abrindo uma série de realizações inspiradas na antiga mitologia. Esse interesse pela antiga cultura decorreu das suas atividades como professor de história do teatro na Escola do Serviço Nacional de Teatro em 1949.

Da história do teatro ao papel do teatro na missão dos Jesuítas em São Paulo

Monumento Anchieta. Sao Paulo. Foto A.A.Bispo 2007. Copyright
É sob o pano de fundo dessa compreensão da antiga cultura que valoriza o emprêgo de meios teatrais nos procedimentos missionários dos Jesuítas, vendo nesse método a origem de uma mentalidade musical que caracterizaria São Paulo.

„(...)  a cidade de São Paulo e o próprio Brasil foram fundados sob o signo da arte de representar, a arte do teatro de José de Anchieta. Em São Paulo, mais do que em qualquer outro lugar do Brasil, esse procedimento missionário gerou uma mentalidade musical que, partindo das raízes mais populares, alcançou mais do que qualquer outra arte, e no menor espaço e tempo, uma projeção que a faz a maior de todas as Américas.

O Brasil independente ainda não tinha meio século e já dava ao mundo o paulista que se tornou até hoje o maior compositor de ópera das Américas, Antonio Carlos Gomes. O
Brasil esteva festejando a sua Independência quando ali se realizou a primeira Semana de Arte Moderna, que fêz com que se pensasse sobre os valores nacionais de uma música nacional criada por brasileiros de todas as raças. Em São Paulo nasceu a afirmação nacionalista de Heitor Villa-Lobos. Ali nasceu o pensamento nacionalista de Mário de Anrade. Ali nasceu a música tão altamente expressiva de Francisco Mignone, compositor que falecera há um ano. Em São Paulo, aprendera ouvir, na infância, em Campinas, Elias Lobo e Alexandre Levy.“

São Paulo e o papel privilegiado da música na universidade

Na sua exposição, Guilherme Figueiredo foi mais longe, afirmando que foi essa sua convicção da posição excepcional que caberia a São Paulo como cidade musical e capital de um país musical que determinava a orientação que seguia como reitor da antiga Universidade do Brasil.

São Paulo é uma cidade musical e, neste sentido, capital de um país musical.“

A atenção privilegiada que dera à música nessa universidade derivava de sua formação paulista e devia ser vista como expressão ou extensão dessa tradição paulista.

Música nacional de „brasileiros de todas as raças“ e o violão na Universidade

Ao mesmo tempo, porém, Guilherme Figueiredo, como expressara anteriormente, relacionava o seu paulistanismo com convicções nacionalistas „de uma música nacional criada por brasileiros de todas as raças“.

Nesses intentos concernentes a valores nacionais, expressões e práticas populares desempenhariam um papel determinante, e isso explicava a atenção que dera ao ensino do violão na Universidade.

„Assim sempre pensou e, por isso, a universidade que dirigia colocara a música em primeiro lugar. Por uma vontade muito sua e de todos aqueles que tinham decidido colaborar com essa idéia, a minha universidade tornou-se a primeira que, no Brasil, incluiu o violão nos cursos de Graduação. O violão foi até então visto com um certo menosprezo, precisamente por ser o mais popular, o mais rueiro de todos os instrumentos musicais. Tinha tido a honra de poder assim contribuir à sua valorização.“

Duas artes que deveriam andar juntas: teatro e música

Como presidente da sessão dedicada a Generalidades, Guilherme Figueiredo levantou um problema que acreditava estar na mente de muitos dos participantes.

Tinham sido até então examinados vários aspectos de estudos musicais, de atividades das diversas instituições e de universidades, haveria porém um outro aspecto que seria de interesse focalizar mais uma vez e que para muitos poderia parecer inédito.

Devia-se considerar que no Brasil a arte era por demais dividida em compartimentos estanques. O frequentador de um aspecto da arte em geral não comparecia a evento de outras artes. Era muito difícil ver um pintor em concerto, muito difícil ver um arquiteto em palestra literária. Cada um tratava da arte como se ela fosse uma especialidade. Por isso, duas artes que deviam mais do qualquer outra deviam caminhar juntas, o teatro e^ a música, não tinham tido até então esse privilégio apesar de todos os esforços particulares.

Esses esforços eram pequenas contribuições de grandes homens que ficavam pequenas por não alcançarem a compreensão do grande público e daquilo que se chamaria a inteligência nacional.

Tinha sido com grandes dificuldades, por exemplo, que conseguira criar numa escola de teatro e música um grupo de alunos para a interpretação da ópera Dido e Eneias de H. Purcell, fazendo cenários, o guarda-roupa, executando a música e explicando o sentido a ópera, a sua importância e traduzindo-a para a platéia. Essa iniciativa tinha sido uma contribuição da sua universidade.

Uma outra contribuição - acreditava ter sido a única verdadeiramente inédita e singular - fora a de realizar a primeira tradução da Cantata do Café de J.S. Bach, interpretada por músicos e cantores da UNIRIO. Essa iniciativa procurara criar algo que associasse o evento artístico ao quotidiano do Rio.

Na época, com o Museu Villa-Lobos, preparava-se uma curiosa cantata, a cantata do Centenário da Abolição para ser apresentada em 1988. Essa cantata, com dois coros, um negro e um branco, com instrumentos populares, instrumentos de rua e mais um piano para representar o salão que seria o da princesa Isabel. Essa cantata seria uma obra por assim dizer de natureza didática: uma cantata para ensinar a expressão cívica, política e social da abolição da escravatura há um século atrás. Um outro grande esforço pessoal deu-se quando teve a honra e o desprazer de dirigir o Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

A apologia do ballett na visão de Guilherme Figueiredo

Os pronunciamentos de Guilherme Figueiredo no primeiro congresso brasileiro de musicologia culminaram com um apelo a favor do ballett.

O significado que emprestava ao ballett, por êle repetidamente salientado em diferentes ocasiões e mesmo característica do seu pensamento, embora parecendo singular, não era simples expressão de uma preferência, paixão ou capricho pessoal, mas sim consequência de um edifício de concepções que unia nos seus fundamentos imagens da Antiguidade às suas convicções nacionalistas. Como, com os seus interesses pelos estudos clássicos orientava-se por último no modêlo da união do teatro e da música na tragédia e comédia da antiga Grécia, o movimento, o gesto e a dança eram resultantes desse todo compreendido como íntegral.

Essa referência à Antiguidade em sistema de concepções que incluiam diferentes formas de expressão e surgia como fundamento da dança não era novo, e já à época de nascimento de Guilherme Figueiredo no início do século XX procurara-se, até mesmo no Rio de Janeiro, uma renovação da dança a partir de similares concepções defendidas internacionalmente por artistas de orientação progressista.

O pensamento de Guilherme Figueiredo, porém, diferenciava-se dessas tendências mais remotas pelo escopo nacionalista que via na dança. Se na Antiguidade o sentido intrínseco às representações era sobretudo expresso na mitologia, no seu pensamento o conteúdo resultava do emprêgo de assuntos nacionais. Em ambos os casos, porém, levaria a uma intensificação dos laços do público com o edifício cultural.

O conceito de ballett que utilizava na expressão de suas idéias causava assim estranheza, pois com esse termo associa-se antes o ballett clássico com a sua linguagem de movimentos estilizada, distinguindo-o da dança contemporânea ou modern dance, assim como de outras formas experimentais de teatro-dança.

A arte de dança de palco por êle idealizada correspondia antes àquela de bailados nacionais conhecidos de determinados países e que servem à sua representação e à intensificação de sentimentos de amor à terra, regionais e patrióticos.

Talvez a sua experiência como adido cultural no Exterior tenha levado a uma intensificação de suas convicções relativas ao papel que desempenha a dança vinculada a um enrêdo na imagem de determinadas nações.

É nesse sentido que pode-se compreender que Guilherme Figueiredo via o ballett no Brasil em estado altamente insuficiente. De todas as „artes de palco“, „a mais infeliz, a mais relegada a um plano secundário seria precisamente a mais viva e a mais moça.“ Referia-se aqui naturalmente ao ballet adjetivado como brasileiro ou compreendido como nacional, não ao ballett clássico e a outras formas de dança já de muito mais antiga tradição.

Esse „ballett brasileiro“ não teria, para Guilherme Figueiredo, mais do que 50 anos. Tinha sido sempre criação de uns poucos artistas, e os temas nacionais empregados, os movimentos da dança popular e a géstica do povo brasileiro nas suas características nas diversas regiões do país tinham permanecido em geral em plano amadorístico.

Essa crítica de uma situação que via como deficiente de Guilherme Figueiredo não fazia jus devidamente a muitas iniciativas de dança mais progressistas que se registravam no Brasil. Referiu-se, nas suas explanações, apenas ao ballett intitulado „Os olhos de Degas“, onde pensara-se num ballett como teatro aberto, sem cenários, à frente do fundo do palco, o que via como uma tentativa curiosa.

Podia mencionar outros trabalhos, nos quais também em parte co-participara, que, tendo um cunho mais brasileiro, tinham sido mais difíceis. Um deles, o „Sarau da Sinhá“, realizara em colaboração com Anísio de Alencar Pinto, compositor, pianista e pesquisador. Nessa obra, tratava-se de uma reunião de danças familiares durante um sarau. Nele, um grupo de hippies descobriu velhas coisas de uma velha casa. Vestindo-se como na época do sarau, os jovens passaram a caricaturar os seus avós, integrando-se porém pouco a pouco no mistério do próprio bailado.

Um projeto acalentado por Guilherme Figueiredo, embora não realizado, foi o de um Bumba-meu-boi. Conseguira que Francisco Mignone criasse uma composição para o mesmo. Teria sido um ballett extraordinário, baseado em obra de Jorge Amado.

Após essas dificuldades em realizar esse projeto do Bumba-meu-Boi, passou a fazer apelos - que voltava a repetir no Congresso - para que todos procurassem incentivar músicos e escritores no sentido que esses passassem a aprender a técnica da escrita de roteiros de ballett.

Para isso, segundo Guilherme Figueiredo, não seria preciso saber termos técnicos ou os passos, não seria preciso saber o registro gráfico das coreografias. Bastava saber armar a estória de tal modo que o coreógrafo, lendo, sentisse como aquilo poderia ser realizado. Imaginava que fosse possível fazer um ballett por exemplo de O Navio Negreiro, um ballett chamado Juca Mulato que incluisse o samba rural paulista, um ballett sobre o Caso do Vestido de Carlos Drummond de Andrade ou um ballett sobre Essa Nega Fulô de Jorge Lima.

No ano Villa-Lobos - um apelo a favor da união da música e da literatura na dança

Guilherme Figueiredo terminou os seus pronunciamentos com um apêlo aos congressistas em favor do ballett. Haveria muitos assuntos novos que podiam ser tratados no congresso, e entre eles se inscreveria o „casamento da música e da literatura para a criação do ballett“. Se em outros países até mesmo obras de Shakespeare seriam transformadas em ballett, um autor que representaria a palavra pura, onde da obra retirava-se a palavra para ficar só o gesto, por que razão não se poderia também fazer algo similar no Brasil? Por que não seria possível por exemplo tomar a Inocência de Taunay „para um ballett que fosse ainda mais inocente do que a própria Inocência, dançado por uma figura feminina, uma caipirinha encantadora?“

O apelo de Guilherme Figueiredo aos participantes do congresso era que deste resultasse uma manifestação a favor do ballett nacional.

Lembrou por fim que Villa-Lobos tinha sido um entusiasta do ballett, tendo feito grandes esforços para criar um ballett nacional. O mesmo fora Francisco Mignone, que criara alguns balletts extraordinários, que não estavam sendo aproveitados e repetidamente realizados. Também Lorenzo Fernandez tinha-se dedicado ao ballett.

Com as suas palavras, Guilherme Figueiredo retomava um apelo do próprio Villa Lobos. Este, em fevereiro de 1932, entregou um memorial ao Presidente Getúlio Vargas, Chefe do Govêrno Provisório, no qual dizia:

E a arte da pintura? a escultura? a dança elevada? Esta nem existe entre nós que seja uma afirmação; quando a arte da dança elevada é, justamente, uma das que o Brasil poderia cultivar com superioridade sobre os demais países, porque: é notória a beleza plástica da mulher brasileira; a flexibiliade dos nossos atletas; o rítmo singular e obstinado da nossa música popular, o amor que possuímos pelos livres movimentos físicos diante da nossa incomparável natureza, e o gosto pela fantasia delirante demonstrada, sobejamente, na predileção, quase maniaca pelas fetas do Carnaval carioca.(...)“ („Apelo ao Chefe do Governo Provisório da República Brasileira, Memorial entregue aop Presidente Getúlio Vargas em 12/2/1932“,  Presença de Villa Lobos 7, ME/AC, Museu Villa-Lobos 1972, 85-87)



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“ Villa-Lobos, São Paulo e paulistanismos. A ‚mentalidade musical‘ de São Paulo no pensamento e suas implicações na literatura, nas artes e na universidade. Lembrando Guilherme Figueiredo (1915-1987)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/8 (2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Guilherme_Figueiredo_e_Bispo.html


Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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