Dulce Martins Lamas: Música popular gravada
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 


N° 169/13 (2017:5)




Música Popular gravada na segunda década do século XX
Excertos de comunicação de Dulce Martins Lamas (1941-1992)
ao I Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de H. Villa-Lobos (1887-1959)


texto relido e rediscutido no âmbito das reflexões de outono europeu de 2017  pelos 25 anos de seu falecimento

 


O que pretendemos aprciar superficialmente sobre a música popular gravada, no início do século, tem como referência uma coleção de 468 discos gravados na fase mecânica, em 78 rotações.

Estes discos pertenceram à seção de registro autoral da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foram transferidos no decênio de cinquenta, por solicitação do Prof. Luiz Heitor Correa de Azevedo, para o Centro de Pesquisas Folclóricas da Escola Nacional de Música (atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde se encontram devidamente catalogados.

Todos os que se dedicam à pesquisa da música popular, nos primeiros decênios do século, sabem das dificuldades encontradas em relação à autoria as músicas. Para se constatar tal fato, é bastante que se consulte um catálogo, como o „Catálogo Geral da Caa Edison e 1920“ em que grande parte dos discos relacionados apresentam unicamente o título da música, o gênero e o intérprete. Quando se trata de conjuntos, por vezes, são citados apenas como „Grupo Malaquias“, „Grupo Irmãos Eymard“, não mencionando os instrumentos que os constituem.

A coleção em pauta se compõe de 26 discos da Columbia Record; 3 discos Odeon; 245 Odeon Record e, gravados de um só lado, 80 discos Phoenix e 115 Favorite Record.

Ocorre que todos os discos que aparecem na coleção, sem a indicação do autor, foram pesquisados nos velhos livros e registro da Biblioteca Nacional de onde procederam. Podemos, então, constatar que todos eles foram gravados entre os anos e 1910 e 1916 (tivemos, neste trabalho árduo, a colaboração da professora Rosa Maria Zamith).

Devemos ressalta que nesta série mais de 50% dos discos não mencionam os autores das músicas. Averiguamos, contudo, que o primeiro disco registrado foi (BN 1181) „Registro requerido por Fred Figner americano, estabelecio nesta capital, Oracélia (valsa) de Basílio de Assis Andrade. Em disco phonografico gravado em Abril de 1910. E para constar lavrei o presente termo que assigno aos 28 dias de dezembro de 1911“. Assinado sobre estampilha de 2 mil reis, Constancio Alves (Secretário“. (O livro de Direitos Autorais é o primeiro da Biblioteca Nacional e foi iniciado em 1898, terminando em 1913).

Parece-nos ter, por essa altura, surgido alguma portaria que estabelece a obrigatoriedade do registro da música gravaa. Pois até então se encontram muitas músicas registradas, porém, em manuscrito ou em chapas de música.

Mas, é preciso ressaltar se de um lado são omitidos os nomes dos compositores das músicas, de outra parte a coleção serve como uma amostragem muito expressiva para revelar como se vai impondo, já não apenas as valsas, polcas, schottisches, mazurkas, importadas da Europa, porém, também os lunduis, maxixes, tangos requebrados, canções sertanejas, etc.. E, sobretudo, os grupos denominaos choros, formados por vários instrumentos e cujas execuções requeriam dos intérpretes um cert virtuosismo pelas improvisações. E isso se tornava um manancial dos mais ricos para a criatividade e cristalização dos modismos, dos caracteres da música popular urbana.

Devemos lembrar que a palavra choro no período das gravações desta coleção (!910/1916) ainda não tinha adquirido uma identidade própria. É aplicada no sentido mais de um grupo de intrumentistas ou à maneira de execução.

Daí se encontrar um grande número de gravações em que a palavra choro vem com um apodo, ou seja, polka-choro, tango-choro, valsa-choro, etc..

Não podemos deixar de avaliar o papel do disco como meio de divulgação num tempo em que os recursos de comunicação eram bastante precários; não havia o rádio e o cinema começava a dar os seus primeiros passos. Enquanto a música gravada e executada através do gramofone torna-se acessível ao povo e também um excelenete recurso de lazer. Como não podia deixar e ser a procura é grande e, com isso, o disco se transforma num produto cultural caracteristicamente nacional.

É necessário lembrar, contudo, que grande parte dessa música popular era criada anonimamente. As pessoas que a compunham, na sua maioria, pertenciam a uma classe de estratificação social das mais modestas - numa época de um elitismo ainda mais rigoroso - que contribuia para o compositor popular ser discriminado, ser considerado da „ralé“. Parece ser essa a razão mais forte do anonimato. Encontram-se em muitas partituras para piano desse tempo compositores assinando-se de maneira irônica, como é o caso de „Isto é provocação“ (maxixe carnavalesco) editada pela casa Vieira Machado, n° 1749, cujo autor dos versos é Dr. Phosphato e da música Koringa & Cia.

Apesar das discriminações aparece uma Chiquinha Gonzaga que, pairando acima de todas as convenções, assume a autoria das suas „polkas brasileiras“, tangos, maxixes, enfim, tudo que reflete os modismos, as características nacionalizantes da sua época. Aina que tudo isso lhe custe severas críticas. Poderíamos lembrar um trecho de Rui Barbosa, citado por J. Efegê, acerca do „Corta-Jaca“ de Chiquinha Gonzaga, executado numa recepção do Palácio do Catete, em 1914, por Nair de Teffé, mulher do Presidente Hermes da Fonseca: „Mas, o Corta-Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê, e do samba. Mas nas recepções presidenciais, o Corta-Jaca é executado com todas as honras de música e Wagner e não se quer que a consciência deste pais se revolte, que as nossas faces se enrubeçam e que a mocidade se ria!“ (Maxixe - A dança excomungada, Pub. Conquista, Rio 1974, p. 161).

(Audição do Corta Jaca na interpretação a própria Chiquinha Gonzaga com o seu grupo, disco XR 11781-1-1, gravao em 1915).

Irineu de Almeida foi um compositor muito apreciado no seu tempo, mas cujas gravações das suas músicas, com raríssimas exceções, omitem a sua autoria. Foi muito ligado a Pixinguinha que declara no su depoimento ao MIS ter realizado a sua primeira gravação justamente com o Grupo Carioca de que participava, com o oficleide. (As vozes desassombradas do Museu. Publ. Museu da Imagem e Som, Rio 1970, p.20)

Ouçamos „São João debaixo d‘agua“ (tango) que está gravado no disco da Faulhaber 1.45006. Foi gravado em 1911 e não, como um engano de Pixinguinha que informa entre 1914 e 1918. Na execução tem-se ainda os irmãos de Pixinguinha, China e Leo (violões) e Henrique (cavaquinho) e Pixinguinha (flauta).

Dos mais surpreenentes é o fato que ocorre com a celebérrima melodia „Cabocla di Caxangá“. Temo-la gravada no disco Odeon Record 120521, registrada (BN 2481) por Fred Figner como batuque-sertanejo de Catulo da Paixão Cearense. Gravada em 1912. No rótulo do disco está como Bahiano e Grupo da Casa Edison. Na realidade, trata-se de Eduardo das Neves como é anunciado no disco.

(...)

Dissemos ser Nazareth um marco pelo fato e ser logo seguido por um Villa-Lobos (não fosse ele participante dos grupos de choros) que na série dos seus Choros, desde o primeiro para violão até o último (Choros 14 para Orquestra, Banda e Coro) procurou estilizar o gênero de criatividade da gente carioca.

Outros compositores, no universo da música, chamada erudita, se abebeiraram da fonte do choro. Podiamos lembrar Lorenzo Fernandez com „Impressões seresteiras“ para pequenos conjuntos instrumentais de sopro; Francisco Mignone comn a série de „Valsas de esquina“ para piano e tantos outros.

O estudo dessa coleção nos serviu para apreciar um ângulo muito expressivo da música popular brasileira, isto é, a afirmação da arte musical de feição carioca com projeção na música culta. E, ao mesmo tempo, descobrir inúmeros compositores, até mesmo de outros Estados da Federação, cujos nomes estavam inteiramente esquecidos na memória da música popular brasileira.



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Martins Lamas, Dulce. „ Música Popular gravada na segunda década do século XX“. Excertos de comunicação de Dulce Martins Lamas (1941-1992) ao I Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de H. Villa-Lobos (1887-1959)
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/13 (2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Musica_Popular_e_Villa-Lobos.html


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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501


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Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha

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