Da natureza na obra de Villa-Lobos
ed. A.A.Bispo

Revista

BRASIL-EUROPA 169

Correspondência Euro-Brasileira©

 
Lindlar. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright

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Lindlar. Fotos A.A.Bispo 2017©Arquivo A.B.E.

 


N° 169/11 (2017:5)




Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Gilberto Freire (1900-1987)
Da natureza na obra de Villa-Lobos como fator de sua presença atual
à concepção de „cantor do universo tropical“
Lembrando Eurico Nazaré Nogueira França (1913-1992)

Reflexões de outono no museu de cultura tradicional e ecologia de Lindlar (Alemanha) pelos 25 anos de falecimento de Nogueira França e 30 anos do falecimento de Gilberto Freire no centenário de Villa-Lobos (1987)

 
Há 25 anos falecia Eurico Nazaré Nogueira França, médico, professor, crítico musical e personalidade de alta erudição e de influência no meio musical do Rio de Janeiro, autor de obras sobre assuntos musicais de grande divulgação no Brasil.

O seu falecimento deu-se no ano da realização do II Congresso Brasileiro de Musicologia, levado a efeito no Rio de Janeiro por motivo dos 500 anos Descobrimento da América, ao qual contribuiu nos anos de sua preparação, mas do qual não chegou a participar. Neste congresso esperava-se que retomasse, sob o aspecto mais amplo da questão de fundamentos da cultura musical, reflexões que apresentara durante o I Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado em São Paulo no ano do centenário de Villa-Lobos (1887-1959).

Nogueira França no Congresso de Musicologia no Centenário de Villa-Lobos

O centenário de Heitor Villa-Lobos, em 1987, dando ensejo à realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, foi celebrado com reflexões e debates que visaram considerar a situação dos estudos e pesquisas de natureza musicológica no Brasil.

Não só a obra e o pensamento de Villa-Lobos na sua contextualização político-cultural deveriam ser alvo de atenção, como também a permanência ou não de concepções que marcaram a sua época e a sua criação artística e educativa.

A participação de estudiosos de diferentes tendências e áreas de atividades deveria contribuir à constatação ou não de continuidades ou mudanças paradigmáticas, a um balanço do estado das reflexões teóricas e de orientações.

Com esse escopo, nele não deviam apenas tomar a palavra especialistas na sua obra e aqueles ainda de convicções estéticas e educativas de cunho nacionalista, mas sim também pesquisadores de outras fases da história, da música contemporânea, de questões filosóficas, etnomusicológicas e sistemáticas.

No Congresso, Nogueira França foi convidado a presidir uma de suas seções, aquela dedicada à Musicologia Aplicada, à Musicologia e Interpretação, Musicologia e Crítica, Relações com a Educação e outras Artes e Musicologia e Vida Musical.

Os seus pronunciamentos focalizaram mais especificamente o desenvolvimento e a atualidade do pensamento concernente à personalidade e à obra criadora de Heitor Villa-Lobos.

Como conhecedor do compositor e sua obra, autor de Villa-Lobos, síntese crítica e biográfica (Rio de Janeiro 1974). acompanhara o desenvolvimento das reflexões e iniciativas por décadas, distinguindo-se sobretudo pelo seu empenho quanto à permanência de Villa-Lobos e de sua criação após a sua morte. Significativamente, o conceito da presença de Villa-Lobos adquiriu uma particular importância nas suas considerações, o que se refletia também na sua colaboração ao Museu Villa-Lobos com a sua publicação Presença de Villa-Lobos.

Atualidade de uma rediscussão de questões tratadas por Nogueira França

O recrudescimento do nacionalismo na Europa, nos EUA e em outras regiões do globo no presente exige a atenção não só de observadores políticos como também daqueles voltados à análise de processos culturais. Essa exigência diz respeito também e sobretudo a estudos relacionados com o Brasil, uma vez que o pensamento, as artes - em particular a música - , a historiografia e a pesquisa cultural do Brasil do século XX foram marcadas por concepções e visões nacionalistas - assim como pela sua crítica ou tentativas de diferenciação e redefinições.

Os fenômenos que se observam na atualidade retomam sob novo signo e novos contextos epocais concepções e questões conhecidas do passado e familiares de forma particular àqueles que se dedicam a estudos brasileiros.

Também na análise de movimentos políticos, político-sociais e -culturais de hoje o observador confronta-se com uma multiplicidade de tendências, com afinidades, relações e diferenças que exigem observações mais atentas.

Nem sempre pode-se distinguir com clareza motivos, preocupações e intuitos daqueles que se congregam em determinados grupos e movimentos. Estes aproximam ou mesmo agregam de forma complexa e mesmo difusa nacional-conservadores, social-nacionais, nacional-socialistas, defensores de concepções povistas, identitátarias, etnopluralistas, em geral sob o signo da defesa da civilização e cultura cristã-ocidental, de valores e tradições, dos próprios interesses econômicos e de poder, do patriotismo e dos elos à terra natal. 

Um dos aspectos que contribuem a aumentar as dificuldades de análise desses desenvolvimentos é o de suas relações com a natureza. Alguns desses grupos, partidos ou movimentos colocam a defesa do ambiente explicitamente na sua agenda de defesa da terra natal, o que traz preocupações quanto a instrumentalizações políticas prejudiciais da problemática ambiental e da proteção da vida animal. Por outro lado, criticam medidas de proteção à natureza de dimensões mais amplas, negam o papel do homem na problemática ambiental, na mudança climática e suas consequências, colocando interesses nacionais acima de intuitos e iniciativas voltadas à conservação do planeta.

Sensações de perda de segurança em época marcada por intensa globalização parecem ser uma das razões que explicam incoerências e paradoxias entre intuitos de defesa do torrão pátrio e posições de distância para com a problemática ecológica nas suas dimensões ultrapassadoras de fronteiras nacionais.

O exame dessa problemática atual do recrudescimento do nacionalismo nas suas diferentes acepções e manifestações pode e deve ser assim conduzido à luz dos estudos de relações Cultura/Natureza. (Veja)

Cumpre recordar, neste sentido, que a discussão dessas relações não é recente no âmbito os estudos relacionados com o Brasil. Ela relacionou-se estreitamente com o debate relativo às relações entre o nacionalismo e as dimensões „universais“ do pensamento e da obra de Heitor Villa-Lobos.

Nogueira França no desenvolvimento das reflexões teóricas em São Paulo

Entre os livros de Eurico Nogueira França considerados em cursos de História da Música em conservatórios de São Paulo na década de 1960 encontrava-se a sua Música do Brasil (Rio de Janeiro, 1951 c/ várias reedições)

Nessa época, as preocupações voltavam-se a problemas resultantes da historiografia e dos estudos folclóricos marcados por concepções e orientações estéticas nacionalistas e que estabeleciam uma perspectivação na consideração de processos histórico-culturais, desvalorizando grande parte do passado mais remoto.

O seu estudo Lorenzo Fernandez, compositor brasileiro (Rio de Janeiro, 1950) foi tratado a partir de obras do compositor em estudos que foram encerrados com apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, em 1966.

Textos de Nogueira França foram discutidos no âmbito do movimento de renovação dos estudos teórico-musicais que levou à fundação da sociedade voltada a processos culturais (Nova Difusão) e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia, em 1968.

Na então oficialmente introduzida área da História da Música no Brasil, discutiu-se, a partir da sua obra A música no Brasil (Rio de Janeiro: MEC. Serviço de Documentação, Departamento de Imprensa Nacional, 1953, Cadernos de Cultura 54), a questão do tratar-se de música do ou no Brasil, assim como as posições de Nogueira França.

Essa atenção manteve-se nas décadas que se seguiram, uma vez que as suas publicações não tanto documentam um desenvolvimento de seu pensamento, mas também constantes retomadas, repetições e republicações de textos, tornando-se assim necessário considerar as primeiras expressões de suas concepções e convicções para situá-las adequadamente em processos temporais.

Nogueira França foi especialmente considerado no contexto da crise do ensino do Canto Orfeônico e o da respectiva formação de professores em 1969/1970, o que relacionava-se estreitamente com a questão da vigência de concepções de Heitor Villa-Lobos após dez anos de seu falecimento. Nogueira França, que terminara em 1940 o curso de formação de professores e música e Canto Orfeônico na então Universidade do Distrito Federal, surgia como representante significativo de concepções do ensino musical a serviço de formação
cívico-patriótica do passado político que era então encerrado e que dava lugar a uma Educação Musical concebida sob outros critérios.

No seu Do lado da Música (Rio de Janeiro: MEC. Serviço de Documentação, Departamento de Imprensa Nacional 1957, Cadernos de Cultura 108), Nogueira França levantava uma questão que constituiu um dos motivos condutores do seu pensamento e que se relacionava estreitamente com conceituações de cultura e de educação.

Nela, colocava em dúvida, ao contrário do sempre ufanisticamente afirmado, se o povo brasileiro seria realmente musical: „somos um povo musical?“ (pág. 109) Para Nogueira França, como reafirmado repetidamente, não havia dúvida que a música sempre desempenhou um importante papel social no Brasil, este significado, porém, estaria diminuido de forma crescente, sendo assim a educação musical um fator corretivo desse processo e de elevação cultural do povo.

Nessa obra, salienta a personalidade de músico, militar e político João Alberto Lins de Barros (1897-1955), interventor federal em São Paulo em 1930/1931, que dera „mão forte“ a Villa Lobos e que foi, como o próprio Nogueira França, discípulo do pianista espanhol Tomás Teran (1896-1964). (pág. 16)

Expressa-se, assim, de forma positiva sobre uma personalidade e época marcada pelo golpe de 1930 e que precederam a Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo. É sob o pano de fundo desses referenciais político-culturais assim expressamente manifestados por Nogueira França que as suas colocações sobre Villa Lobos foram consideradas, nas quais salientava o seu papel como „educador musical da coletividade“.

A questão „é o brasileiro um povo musical?“ e que se encontra à base da conceituação de cultura e da educação musical de Nogueira França, foinovamente tratada em conferência proferida em 1973 no IX Ciclo de Palestras do Festival Villa-Lobos e posteriormente republicada.

Como Nogueira França observava, essa questão era respondida sempre com uma afirmativa indubitável, mas que apenas devia ser considerada como expressão de sentimento ufanista patriótico. Ela não correspondia ao quadro melancólico da cultura musical no país.

Para Nogueira França, o brasileiro teria sido no passado um povo musical, mas estaria deixando de sê-lo à medida que crescia. O povo mais culto, musicalmente, e de maior musicalidade, seria aquele que mais amaria a música pura ou elevada. Na escalada do desenvolvimento no Brasil, não haveria esforço válido de prosperidade econômica sem o crescimento dos valores espirituais.

Visões nacionalistas e o „processo de ruptura“ na significância de Villa Lobos

Uma das obras mais destinadas a um grande círculo de leitores de Nogueira França foi publicada por ocasião dos 200 anos do Pe. José Maurício Nunes Garcia: Música do Brasil: fatos, figuras e obras (Rio de Janeiro: 1967, Coleção Brasileira de Ouro). A obra teve como escopo sintetizar a história da música no Brasil, com ênfase no movimento nacionalista culminando em Villa-Lobos.

Tratando dos traços gerais a historia da composição musical de „tendência nativista“, o autor afirma que pela sua riqueza criadora e importância técnica, a escola brasileira preponderaria em todo o continente. A floração da música moderna nacional seria resultante da confluência de valores do momento, e relacionar-se-ia com os recursos naturais do meio. Tratar-se-ia de um estágio evolutivo correspondente a um amalgamento das diferentes „parcelas raciais da população“.

Para o autor, uma consciência musical capaz de se espelhar em uma escola brasileira só teria sido, a rigor, plenamente atingida no século XX. Compositores do passado tinham sido subsidiários de escolas européias. O movimento nacionalista, recente, manifestaria sínteses de numerosas faces da musicalidade brasileira, exprimindo traços anímicos de um novo tipo humano (pág. 26 e 27). A música seria brasileira não apenas pelo aproveitamento direto do material folclórico, mas sim porque o compositor teria a sensibilidade voltada para o seu país.

De importância para a discussão dessas colocações foi o prefácio de Ernani Braga que, em parte, as relativa. Nele, constata-se que após a morte de Villa-Lobos, a sua obra sofrera um processo de ruptura no plano internacional. A reintegração do Brasil no panorama contemporâneo não se faria através do nacionalismo capaz de seguir as pegadas de Villa-Lobos, mas tinha como condição indispensável colocar a música dentro da estrita contemporaneidade - música que deveria ser considerada como brasileira porque brasileiros são os seus autores.

A luta pela permanência da herança de Villa Lobos em Nogueira França

Em artigo publicado no Correio da Manhã, a 28 de janeiro de 1972, ano os sesquicentenário da Independência e do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, Nogueira França salientou o ciclo de conferências promovido pelo Museu Villa Lobos com ênfase no estímulo ao civismo possibilitado pelo ensino do Canto Orfeônico sob a égide de Villa Lobos. Essa fase de educador musical a serviço do civismo teria começado em São Paulo quando, à época da revolução de 1930, tinha sido chamado pelo interventor João Alberto.

No plano da criação, Nogueira França salientou o contato íntimo de Villa-Lobos com o folclore no seu sentido mais amplo, com a absorção de materiais que iriam desde o canto urbano carioca ao indígena do Alto Purus. Neste contexto, porém, salienta um dos motivos condutores do seu pensamento: Villa Lobos alimentou-se também do espetáculo dos rios, das matas e das montanhas, ou seja, da realidade do homem e da paisagem. („A sobrevida de Villa-Lobos“, Presença de Villa-Lobos 7, Rio e Janeiro: MEC DAC-Museu Villa-Lobos 1972, 81-83)

Relativações: nenhum compositor é obrigado a escrever música brasileira

Uma atenção especial mereceu, nas reflexões da década de 1970, o fato de que Nogueira França passara também a relativar o significado do nacionalismo na linguagem musical na composição contemporânea, apesar de ser êle próprio um dos intelectuais que mais se empenhavam na presença do compositor na atualidade.

Essa relativação foi de importância sobretudo para as discussões em São Paulo, pois traziam também um distanciamento relativamente a colocações de Mário de Andrade (1893-1945). Para Nogueira França, considerando as relações entre Villa-Lobos e o escritor paulista, assim como um desentendimento que teria havido entre êles, a frase segundo a qual o compositor que não escrevesse música nacionalista seria uma „reverendíssima cavalgadura“ era completamente desatinada, embora compreensível na época que fora proferida. Na atualidade, porém, aquele que escrevesse música com características nacionalistas seria motivo de suspeita. (Presença de Villa-Lobos 9° vol, Museu Villa-Lobos, MEC/DAC 1974, 69-71).

A presença de Villa Lobos apesar do nacionalismo musical ser ultrapassado

Em palestra realizada em 1976, Nogueira França admitiu explicitamente que o nacionalismo estaria ultrapassado em termos históricos.   (Presença de Villa-Lobos 11° vol. Rio de Janeiro:MEC/SEAC/Museu Villa-Lobos 1980, 85-92). O texto inicia lembrando que Villa-Lobos permaneceria sendo o maior compositor brasileiro, assim como em todo o continente americano, além de ser uma das grandes figuras da música do século XX. Correspondendo à sua grandeza intrínseca, a sua presença só poderia se ampliar.

A „corrente anti-Villa-Lobos“ poderia tornar-se vitoriosa segundo Nogueira França, e essa corrente se exprimiria em termos e anti-nacionalismo. O anti-nacionalismo seria a características de festivais internacionais que se então se realizavam no Brasil e que se consideravam como sendo de vanguarda. A música de vanguarda seria, porém, para Nogueira França estéril, sendo escrita com o propósito de aturdir os ouvintes.

A argumentação de Nogueira França era de que a música de Villa-Lobos ganharia uma dimensão cada vez maior graças à sua universalidade. Na luta de facções adversas por mercados musicais, o seu vulto poderia ficar ofuscado se não fosse o museu dirigido por Arminda Villa-Lobos. Esta seria a instituição que muito contribuia à sua difusão universal.

A „vigilância artística“ a favor de Villa-Lobos seria tanto mais necessária por ser a música a expressão artística mais típica do Brasil, a que mais exprime a „alma“ brasileira. Esse fato diferenciaria o Brasil relativamente a todos os outros países, inclusive a Alemanha, onde a filosofia seria talvez a principal característica, superando em dimensão a própria música. Para Nogueira França, ainda que a música de Villa-Lobos revelasse „aculturações“, o compositor teria sido o primeiro a libertar a música brasileira do modelo europeu.

Na sua obra premiada no 2° Concurso Nacional sobre o Estudo Técnico, Estético e Analítico da Obra Camerística de Villa-Lobos, organizado pelo Museu Villa-Lobos, em 1976  (A Evolução de Villa-Lobos na Música de Câmara. SEAC/MEC-Museu Villa-Lobos, 2a. ed. 1979), haveria uma evolução na maneira de sentir e compreender a música de Villa-Lobos que permaneceria viva. Ela não só resistia ao tempo mas o tempo trabalhava a seu favor. Quanto o mais o Brasil crescia, Villa-Lobos mais se afirmaria como seu cantor, porque na sua obra haveria um sopro profético. Haveria razões psicológicas e emocionais que explicariam o fenômeno.

O homem Villa-Lobos através da sua obra - perspectivas psicológicas

Uma das principais questões que se colocaram no debate sobre o nacionalismo ou não- nacionalismo na música - também designado como villalobiano ou anti-villalobiano, é aquela que diz respeito às suas relações com visões do homem e com a psicologia.

Esta questão foi também um foco das trocas-de-idéia com Eurico Nogueira França a partir de seu texto „Villa-Lobos: o Homem através da Música“, escrito primeiramente para o periodico japonês Guitar Music, em 1976, e republicado no órgão do Museu Villa-Lobos (Presença de Villa-Lobos 11° vol. Rio de Janeiro:MEC/SEAC/Museu Villa-Lobos 1980, 99-101).

Partindo da idéia da máxima de que „o estilo é o homem“ - altamente questionável - Nogueira França afirma que a mesma se aplicaria rigorosamente a Villa-Lobos. Êle se confudiria com o seu estilo musical na diversidade de seus aspectos.

O homem, assim, determinaria o processo criador. Essa afirmação não seria óbvia, pois nos mestres do passado haveria uma discrepância entre o homem e a criação musical, como procura considerar nos exemplos de Bach, Haydn, Mozart e Chopin. Ao contrário, Villa-Lobos escreveria uma música „villalobiana“, onde os traços „barrocos“ de sua personalidade, a exuberância, a energia desbordante, o colorido pitoresco, afirmativas como „o folclore sou eu“ e suas reações imprevistas se encontrariam presentes.

O que Villa-Lobos manifestava em palavras o realizava musicalmente, levando a uma confluência entre o homem e o artista. Êle próprio afirmava que „compunha por imperativo biológico“. Teria sido, para Nogueira França, um dos compositores mais espontâneos que jamais houve, e, portanto, apenas podia deixar criar com um acento pátrio. A música, emanando do homem Villa-Lobos, constituiu assim um retrato musical do Brasil.

O amor ao Brasil significava também para êle o amor à natureza, havendo vários exemplos na sua obra de identificação com a natureza do Brasil.

Festival Villa-Lobos após 20 anos de seu falecimento (1959-1979)

Essas perceptíveis mudanças de acentos na interpretação de Villa-Lobos no pensamento de Nogueira França, - nem sempre porém sem ambivalências e incoerências -, foram discutidas em meios musicológicos europeus desde o início do programa euro-brasileiro em 1974. Elas diziam respeito a problemas teóricas de relevância sob muitos aspectos.

A dúvida que levantava relativamente ao ser ou não o brasileiro um „povo musical“ ou a sua opinião de que este perdia a sua característica de povo musical revelava determinada concepção de cultura, de educação e formação cultural que não poderiam deixar de ser debatidas. Foram, assim, discutidas em encontros com personalidades e instituições voltadas à pedagogia e ao ensino musical, entre outros em encontros na Rheinische Musikschule - Konservatorium der Stadt Köln, em particular por ocasião dos 20 anos do falecimento de Villa-Lobos em 1979.

Correspondendo à sua preocupação quanto à permanência de Villa-Lobos, Nogueira França foi uma das personalidades que mais se destacaram na consideração dessa data, colocando a questão de sua presença novamente no centro das atenções. Como por êle manifestado em conferência proferida para a Ordem dos Músicos do Brasil, em 1979, a atualidade de Villa-Lobos seria tão evidente que não precisaria ser demonstrada (Presença de Villa-Lobos 11° vol. Rio de Janeiro:MEC/SEAC/Museu Villa-Lobos 1980, 103-105).

Neste ano, as suas colocações foram discutidas no Rio de Janeiro por ocasião da realização do Festival Villa-Lobos, um evento que contou com personalidades de relêvo nacional e internacional, entre elas os membros do juri Abelardo Magalhães, Carlos Euardo Prates, Cleofe Person de Matos, Jen Laforge, Juan Orrego-Salas, Oscar Zander, Roberto de Regina e Tomás Marco.

O „retrato do Brasil“ em Nogueira França e questões de imagens

Um outro aspecto do pensamento de Nogueira França repetidamente considerado nos estudos euro-brasileiros foi aquela referente ao conceito de „retrato do Brasil“.

No seu artigo de título Villa-Lobos, Nogueira França, como em outros textos, parte da constatação de que Villa-Lobos não só era o maior dos compositores brasileiros, destacando-se também no panorama internacional, como também era a sua obra essencialmente um „retrato musical no Brasil. Villa-Lobos partira da música popular, do folclore, e pela transfiguração sucssiva dos seus elementos, chegara à „grande obra de arte musical“. Para isso, o compositor tratara a matéria sonora de partida, que encontrara „em estado virgem“ com domínio e liberdade de „senhor absoluto“, perscrutando-lhe a potencialidade, reconhecendo as possibilidades que se encerram por exemplo na síncopa ou na liberdade polifônica de um típico conjunto instrumental. (Villa-Lobos, Presença de Villa-Lobos 11° vol. Rio de Janeiro:MEC/SEAC/Museu Villa-Lobos 1980, 93-97)

As suas colocações a respeito deram impulso à atenção a questões de imagem que marcaram os trabalhos euro-brasileiros de décadas.

Problemas da imagem do Brasil foram tematizados na Primeira Semana Teuto-Brasileira e Música do Leichlinger Musikforum, em 1982, quando tratou-se, entre outros, da necessária superação de estereotipos e da consideração da transformabilidade da imagem do Brasil no decorrer do tempo, tornando inadequadas absolutizações de imagens do presente como características imutáveis da fisionomia e identidade do Brasil e suas projeções na interpretação do passado.

A discussão de questões relacionadas com o „retrato do Brasil“ teve prosseguimento em encontros, simpósios e seminários, refletindo-se, entre outros, na escolha do tema „Música e Visões“ para o congresso de abertura de triênio internacional pelos 500 anos do Brasil em 1999.

Significado de Nogueira França sob a perspectiva do binômio Cultura/Natureza

Nas suas publicações, em particular nas suas colocações por ocasião dos 20 anos de falecimento de Villa-Lobos em 1979, Nogueira França, perante o fato de ser obrigado a constatar que um nacionalismo na criação musical segundo conceitos e procedimentos do passado já não era atual e não poderia ser critério da presença de Villa-Lobos, passou a acentuar o papel desempenhado pela natureza na sua obra.

A difusão de sua obra estaria em pleno desenvolvimento, mas processar-se-ia sob outro signo. As referências e os elos com a natureza em muitas de suas composições e mesmo no seu pensamento vinham de encontro à atualidade da atenção a questões ecológicas. Numa época em que tanto se considerava as relações entre o homem e o meio ambiente, era oportunida afirmar ter sido Villa-Lobos um „criador ecológico“.

Como Nogueira França salienta, a ecologia sempre tinha sido considerada no sentido negativo de uma destruição da natureza pelo homem, cujo exemplo mais triste é a devastação da Amazônia. Considerando-se Villa-Lobos, porém, a atenção é dirigida a um aspecto positivo no tratamento das relações entre a natureza e o homem, uma vez que a sua criação reflete um „sentido telúrico de brasilidade“.

Villa-Lobos teria sido um homem sensível não só ao homem na sua multiplicidade étnica, mas também aos rios, às matas, às montanhas e aos pássaros. A música de Villa-Lobos era brasileira não pela temática folclórica, mas pelas sugestões que emanavam de um universo marcado por relações entre a cultura e a natureza.

Com essa afirmação, Nogueira França traz novamente à pauta, em contexto atualizado, um pensamento que marcou estudiosos do passado, podendo-se lembrar do texto „Sinfonia da Terra“ que abre a História da música brasileira de Renato Almeida (1895-1981) (Rio de Janeiro, 2a. ed. corrigida e aumentada 1942, 1a. ed. 1926).

Considerando a atualidade de Villa-Lobos sob este aspecto, Nogueira França afirmava que, se Villa-Lobos tivesse feito um nacionalismo superficial, baseado apenas em material folclórico e popular, estaria ultrapassado. Nele teria havido porém a gestação de um novo mundo sonoro que tornara-se autônomo, passando à categoria de música pura. Essa seria a atualidade maior de Villa-Lobos. Se não seria assim de interesse para compositores mais jovens seguir caminhos do passado quanto a referências do folclore e do popular no processo criador, uma orientação ecológica abriria novas perspectivas, mantendo-se aqui a presença de Villa-Lobos.

Apesar das relativações: visão nacionalista da história de Nogueira França

Ainda que Nogueira França - confrontado com a realidade da criação musical mais recente - tivesse passado a reconhecer que a linguagem musical nacionalista referenciada segundo o folclore estava ultrapassada e que nela não residiria a atualidade de Villa-Lobos, continuou a manter a principal característica de uma ideologia historiográfica que marcou o pensamento nacionalista: a perspectivação da história determinada por uma referencia epocal que desqualifica o desenvolvimento anterior como sendo apenas precedente à configuração de uma música com características brasileiras.

Assim, mesmo reconhecendo que os estudos do passado brasileiro demonstravam a intensidade das manifestações musicais no Brasil, estas seriam formas de música transplantaas da Europa. A partir da segunda metade do século XIX a „corrente diferenciada da nossa popular, fruto da miscigenação complexa“, teria começado a impor-se  e só no século XX ter-se-ia atingido a „consciência musical brasileira, capaz de espelhar em uma escola brasileira de composição“.

Como Nogueira França expressamente continuou a defender, a consideração do desenvolvimento da criação musical devia orientar-se apenas segundo caracterização nacional da música do Brasil. O nacionalismo artístico esboçado por Brasílio Itiberê, Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno seria o de precursores. Se um compositor como Henrique Oswald ainda esteve total e superiormente voltado para a cultura européia, Na música erudita, haveria toda uma constelação de valores ao redor de Villa-Lobos, citando Claudio Santoro, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez, Radamés Gnatali, Guerra Peixe e Marlos Nobre. (Presença de Villa-Lobos 11° vol. Rio de Janeiro:MEC/SEAC/Museu Villa-Lobos 1980, 89-92)

Villa-Lobos como intérprete musical do Trópico - Gilberto Freire

Uma atenção especial merece as relações de proximidade entre Nogueira França e o sociólogo e antropólogo Gilberto Freire, amigo de Villa-Lobos.

Segundo êle, Gilberto Freire, na abertura do Festival Villa-Lobos de 1982, teria proferido a mais bela conferência jamais feita sobre o compositor. Salientara que Villa-Lobos era o intérprete musical do Brasil e, no sentido da universalidade da obra do músico, o intérprete musical do trópico: o compositor seria o „cantor do universo tropical“.

O papel desempenhado pela natureza na obra do compositor - reconhecido por Nogueira França como garantia de sua atualidade em época marcada pela preocupação ecológica - adquiria uma nova dimensão: o elementar, o telúrico na sua música correspondia à „instabilidade cósmica dos primeiros dias da Criação“.

Gilberto Freire salientara que Villa-Lobos, além de evocar os mistérios e maravilhas da natureza, teria cantado as raças e os cruzamentos da população.

Segundo Nogueira França, haveria uma afinidade entre Gilberto Freire e Villa-Lobos, entre o homem da ciência social e o homem da música. Gilberto Freire lembrara o fenômeno da empatia para descrever a assimilação do meio brasileiro por Villa-Lobos, uma empatia auditiva em homem de sensualidade viva, ávido de vida.

„Somada ao meio ambiente, a miscigenação faz de Villa-Lobos um tipo brasileiro híbrido, daquela estirpe eugênica que Gilberto Freyre aponta, ao contrário do que supunham os racistas, nos indivíduos oriundos de misturas étnicas“ uma vitalidade e energia, um elan vital, fonte de energia criadora. („Villa-Lobos, intérprete musical do Trópico“, Ciência & Trópico 11/1(1983), 9-29)



Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A.“Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Gilberto Freire (1900-1987). Da natureza na obra de Villa-Lobos como fator de sua presença atual à concepção de „cantor do universo tropical“. Lembrando Eurico Nazaré Nogueira França (1913-1992)“
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 169/11(2017:5).http://revista.brasil-europa.eu/169/Nogueira_Franca_e_Bispo.html


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