Cemitérios ingleses no Brasil Colônia


Revista

BRASIL-EUROPA 171

Correspondência Euro-Brasileira©

 


N° 171/18 (2018:1)



Publicação

Tolerância religiosa:
criação dos „cemitérios ingleses“ no Brasil Colônia
de Heraldo Batista da Costa


 
Uma publicação de especial relevância para os estudos de processos culturais referentes às relações entre o Brasil e a Inglaterra é o estudo de Heraldo Batista da Costa de título Tolerância religiosa: criação dos cemitérios ingleses“ no Brasil Colônia: Rio de Janeiro 1808-1811, editado no Rio de Janeiro pela Editora Metodista Chama, em 2014 (ISBN 978-85-66631-13-5, 128 págs., ils).

Heraldo da Costa é estudioso de Teologia e História da Igreja, autor de livros e artigos em periódicos e jornais, dedicados a temas como Discipulado e Evangelização (1995, 1997, 2000); Nihil Obstant (Maria: mulher, mãe bem-aventurada); Doxa, contribuição cristã: Paulo de Tarso nos caminhos de Damasco (Vocação ou conversão); História e Legendas: Universalidade da Igreja e Na barriga do Peixe.

A obra é ilustrada com imagens da primeira igreja anglicana no Rio de Janeiro, construída nas proximidades do posterior Teatro Municipal; da igreja anglicana na Rua dos Barbono (1819); da capela anglicana - cemitério inglês em Salvador; do cemitério dos ingleses no Recife; do Hospital Marítimo Santa Isabel, incluindo uma vista geral do Saco da Gamboa, uma vista geral e lateral da capela e do  cemitério dos ingleses.

Na Apresentação, explica-se que o livro apresenta as condições e situações que permitiram aos ingleses construir cemitérios próprios na América portuguesa, especialmente no Rio de Janeiro, a partir de dois tratados de 1810. O autor considera as diferenças entre concepções de morte e atitudes diante da morte no Catolicismo e no Protestantismo, em particular no Anglicanismo como ponto de partida do seu estudo dos acordos e tratados entre Portugal e a Inglaterra que levaram a permissões de culto e práticas anglicanas na esfera portuguesa.

A obra é aberta com uma Introdução e dividida em três capítulos, seguindo-se uma Conclusão e Referências Bibliográficas.

Na Introdução, o autor expõe o seu intuito de oferecer ao leitor uma análise das condições e situaçõe que permitiram a construção, no Rio de Janeiro, em 1811, de uma capela e um cemitério protestante. Lembra, em primeiro lugar, o papel do Catolicismo para Portugal, a particular situação jurídico-eclesial fundamentada no secular direito do Padroado.

A seguir, em pertinente lógica da argumentação - e que caracteriza toda a obra - considera as circunstâncias políticas da época napoleônica, o Bloqueio Continental e a abertura dos portos do Brasil às nações amigas, o que favoreceu as relações comerciais e políticas com a Inglaterra. Salienta, que para além dessas relações, questões de culto e de práticas como a de enterros foram objetos de acordos entre a Inglaterra e Portugal. Assim considerando, o autor procura de início tratar de conceitos de morte tanto no Catolicismo como no Protestantismo, referenciando-se aqui segundo trabalhos de Cláudia Rodrigues.

É o próprio autor que oferece, na sua Introdução, sumários dos capítulos do seu livro, manifestando assim a coerência e a refletividade do seu procedimento.

No primeiro capítulo, considera diferenças entre concepções católicas e protestantes, orientando-se aqui segundo aproximações teóricas de Jean Delumeau relativas a temas de mêdo, morte e Reforma, concentrando-se nas singularidades da cultura anglicana, uma vez que foi o Anglicanismo que teria sido o principal favorecido com a instalação do cemitério protestante no Rio de Janeiro.

Descrevendo o conteúdo do seu segundo capítulo, o autor expõe o seu intento de analisar representações em torno de relações entre portugueses e ingleses com o objetivo de melhor compreender as relações políticas e diplomáticas entre Portugal e a Inglaterra. Segundo êle, não se poderia afirmar que tivesse havido uma predominância dos ingleses sobre os portugueses, uma vez que também Portugal obtebve vantagens dos acordos.

No terceiro capítulo, o autor dirige a sua atenção à presença inglesa no meio social e político nos centros urbanos do Brasil e a criação do cemitério dos ingleses no Rio de Janeiro. Nele, analisa a influência britânica junto ao plenipotenciário português para a efetivação do fixado no artigo 12 do Tratado de Comércio e Navegação, de 1810, e que previa a permissão de capelas e cemitério. Lembra, nesse contexto, problemas e tensões surgida em diversas regiões do Brasil entre moradores católicos e profissionais protestantes contratados pela Coroa, mencionando o caso de Iperó, onde o próprio Príncipe Regente interviu. Difíceis situações assim surgidas na Bahia, em Pernambuco e em outras regiões acentuaram intentos de criação de capelas e cemitérios anglicanos, analisando o autor neste sentido casos de Jaraguá (Alagoas), Gongo Soco (Minas Gerais), Santos, São Paulo e Niterói. 

Heraldo da Costa considera relatos de viajantes que estiveram no Rio de Janeiro e visitaram o cemitério dos ingleses. Trata de tensões entre catóiicos e protestantes de outras denominações, não ingleses, inclusive brasileiros, e que tinham o desejo de serem enterrados no cemitério da Gamboa e que passou a ser considerado pela legislação como de uso exclusivo de ingleses.

O autor utilizou, para o seu estudo, fontes primárias, manuscritos e impressos, assim como materiais documentais conservados em arquivos de várias instituições, entre outras do British Burial Fund do cemitério dos ingleses no Rio de Janeiro com os seus registros de 1811. No sentido mais amplo, estudou textos bíblicos e eclesiásticos, o catecismo católico e o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana, assim como o sermão para a preparação à morte e do sofrimento de Cristo de Martinho Lutero.

Na Conclusão, o autor sumariza o seu trabalho, lembrando que tratara de como tornou-se possível aos ingleses obter concessão para a instalação de capelas e cemitérios na América portuguesa. Partindo de aproximações quanto a diferenças relativas ao conceito de morte, o autor procurou compreender as razões que explicam a atenção a questões religiosas nas negociações diplomáticas entre a Inglaterra e Portugal. Assim, a instalação da capela e do cemitério foi garantida por um artigo específio no Tratado de Comércio e Navegação. Significativamente, questões religiosas foram acordadas em tratado de navegação e comércio, não no Tratado de Amizade e Aliança de 1810.

Nas suas palavras, essas questões de religiões inscreveram-se „numa linha complexa de tolerância religiosa“ que foi assegurada em tratado de comércio e navegação, o que permitiu compreender um aspecto importante das relações luso-britânicas. A inserção de questões religiosas em contexto do comércio e navegação permite reconhecer um „tecido de idéias liberais e reformistas“ que os britânicos teriam construído ao longo dos tempos e dos tratados, „numa espécie de pressão sistemática junto aos portugueses, no intuito de obterem a definição de tolerância“. (pág. 122)

O autor estudara referências quanto à efetivação do estabelecimento da capela e do cemitério no Rio de Janeiro, na Bahia e no Recife, assim como em outras regiões. Procurara conhecer as razões pelas quais uma Carta Régia de 1812 teria sido necessária para solucionar relações entre moradores de Sorocaba e metalúrgicos suecos. Reestabelecendo relações, esse documento tornou possível a construção de um cemitério próprio para britânicos e suecos, assim como „a defesa de consciência como parte da tolerância religiosa“ na colonia.

Concluindo o seu estudo, procurara demonstrar que o cemitério dos ingleses no Rio de Janeiro tornou-se referência para a instalação de outros no Brasil. Através da leitura de relatos de viajantes da primeira metade do século XIX, tentara obter uma visão histórico-arquitetônica do cemitério no passado, comparando, na medida do possível, com a sua configuração atual. Por fim, considerara as razões pelas quais protestantes não-britânicos tiveram que requerer junto a autoridades permissão para sepultamentos no cemitério da Gamboa. Práticas e doutrinas dos anglicanos no Brasil puderam ser conhecidas através do cotidiano dos ingleses no Rio de Janeiro e nas regiões por ondem passaram.

***

A obra de Heraldo Batista da Costa representa uma substancial contribuição a estudos de um complexo temático que vem despertando particular atenção no presente.

Nos trabalhos referenciados segundo o Brasil desenvolvidos em diferentes contextos e regiões do mundo marcadas pela presença portuguesa, constatou-se o significado da questão do enterramento de católicos em meios não-católicos e de não-católicos em meios católicos. Relativamente às relações luso-britânicas e ao Anglicanismo, pode-se salientar o significado de cemitérios nos Estreitos do Sudeste Asiático, em particulr em Malaca e Singapura, como relatado em artigos da Revista Brasil-Europa. Mais recentemente, nos trabalhos levados a efeito no Caribe, como relatados na presente edição, constatou-se a importância dos cemitérios anglicanos nos países e territórios marcados pela presença inglesa.

St.John/Antigua. Foto A.A.Bispo 2017. Copyright ABE
O cemitério junto ao primeiro assentamento em St. Kitts, por exemplo, com os seus túmulos do fundador da primeira colonia britânica nas Antilhas e o do ancestral de Thomas Jefferson é um dos principais bens do patrimônio arquitetônico, artístico e cultural do país, de significado também para toda a esfera do Caribe e para os Estados Unidos.
O mesmo pode ser constatado em Antigua, onde o cemitério ao lado da catedral Anglicana, em posição privilegiada nos altos de St. John, com as suas lápides e monumentos funerários de valor artístico e histórico, é valioso pelas fontes que apresenta para estudos genealógicos e de reconstrução do passado.

Em ambos os casos - como no da Gamboa - esses cemitérios anglicanos, localizados em encostas, em regiões elevadas, em meio a árvores, possibilitando amplos panoramas do mar situam-se em posições privilegiadas paisagisticamente, o que mereceria ser estudado também sob o aspecto da tradição inglesa de de parques e jardins.

Restos mortais e relitos materiais em túmulos do hospital do English Harbour em Antigua, recuperados em trabalhos de cunho arqueológico-cultural, forneceram materiais e subsídios para estudos do cotidiano de marinheiros e portuários, levantando questões - algumas de difícil solução como o do sepultamento de adultos com crianças - que são tematizadas no Dockyard Museum.

A consideração dos desenvolvimentos no Caribe, marcados que foram por alternância de predomínios coloniais, demonstram a complexidade da questão da tolerância religiosa. Há referências que católicos não apenas foram coibidos na prática de culto e de expressões para-litúrgicas e festivas como também - em St. Kitts - levados a abjurar convicções para que pudessem ser admitidos a serviço inglês.

Estudos mais diferenciados dessa problemáticas nas colonias inglesas exigem a consideração de tendências, correntes e tensões no Anglicanismo na própria Inglaterra, que conheceu controvérsias como a de intuitos vistos como re-catolizadores ou de revivamento reformatório. Sobretudo não podem ser esquecidas diferenças entre a Church of England e congregacionalistas, e, no caso do Caribe, do significado de wesleyanos, Herrnhuter e metodistas.

O conceito de tolerância, de tanto significado para o presente, não pode ser tratado naturalmente apenas sob a perspectiva de uma intolerância católica para com igrejas reformadas: já a história européia é repleta de exemplos de extrema intolerância em regiões protestantes. O conceito exige ser considerado sob perspectivas independentes de posicionamentos e visões confessionais, o que levaa análises das próprias bases da religião, da sua inserção em edifício de concepções e imagens, de visões do mundo e do homem.

Trata-se aqui, na problemática atual, sobretudo da questão de uma necessária não-tolerância por parte do Estado e da sociedade esclarecida perante intolerâncias religiosas e nas religiões, independentemente de suas designações, de suas auto-fundamentações teológicas e argumentações justificativas segundo Escruturas ou tradições.

Também no sentido desse debate que ultrapassa fronteiras, contextos e estudos de relações, a obra de Heraldo Batista da Costa, na exemplaridade da sua coerência interna, na precisão de suas argumentações e na riqueza dos seus dados oferece subsídios e reflexões de grande relevância, não podendo mais deixar de ser considerada.

Antonio Alexandre Bispo

Indicação bibliográfica para citações e referências:

A.A.Bispo. „Tolerância religiosa: criação dos „cemitérios ingleses“ no Brasil Colônia de Heraldo Batista da Costa“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 171/18(2018:1).http://revista.brasil-europa.eu/171/Cemiterios_Ingleses_no_Brasil.html



 

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