Lobisomem e Drácula/Brasil-Romênia. BRASIL-EUROPA 134/7. Bispo, A.A. (ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS
Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
Lobisomem e Drácula/Brasil-Romênia. BRASIL-EUROPA 134/7. Bispo, A.A. (ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS
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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 134/7 (2011:6)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência
e institutos integrados
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2816
Imagens da crueldade e do beber sangue em povos associados à barbárie no mundo antigo
Da "capital do lobisomem" no Brasil e do Drácula na imagem da Romênia
Ciclo de estudos euro-brasileiros na Valáquia. Snagov, 2011
No intuito de contribuir à conservação do patrimônio imaterial do Brasil, alguns pesquisadores brasileiros vêm promovendo nos últimos anos iniciativas várias relativas a um tema que pode causar estranheza e ser questionado: o lobisomem.
Fundamentando-se em estudos de narrativas da tradição oral e que salientaram a permanência de noções e mesmo crenças relativas ao lobisomem no interior de São Paulo, em particular na região limítrofe a Minas Gerais, centralizado na cidade de Joanópolis, desenvolveram-se iniciativas de folclore aplicado que levaram, entre outros aspectos, à produção de imagens artesanais que contribuem ao fomento do turismo e à designação da localidade como "capital nacional do lobisomem".
Esse movimento pode causar estranheza, uma vez que uma imagem de conotações negativas da tradição oral passa a ser usada positivamente para fins de promoção turístico-cultural e mesmo de criação de marca para uma localidade que traz contrastantemente no seu nome referência a um santo: cidade de São João Batista.
Para os estudos culturais, não tanto o estudo das noções e das expressões regionais relativas ao lobisomem surgem como principal objeto de atenções, mas sim e sobretudo uma iniciativa que torna presente tal imagem, valorizando-a, ainda que de forma transformada.
Em ambos os casos, tanto no estudo do mito em si, como no do fenômeno de promoção e modificação de seus sentidos e valorações, estudos em contextos globais pode contribuir a elucidações, cabendo aqui uma consideração especial daqueles relacionados com a Romênia.
Também a Romênia é marcada, e de forma muito mais abrangente do que o caso brasileiro, pelo uso de uma imagem de conotações altamente negativas em iniciativas voltadas à cultura, à promoção turística e comercial: a de Drácula.
A figura de Drácula e a Romênia: problemas de imagem
A própria imagem do país foi em parte marcada por essa imagem, sobretudo duas de suas regiões, a Transilvânia e a Valáquia, o que foi e é fomentado internacionalmente por publicações e filmes. A intensidade desse fenômeno na Romênia explica-se pelo fato de ser a imagem respectiva vinculada a uma figura da história do país.
Esse elo foi um produto de obra literária do século XIX, a do escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912), que no seu romance Dracula, de 1897, vinculou à figura histórica de Vlad III Tepes (ca. 1431-1476/7) concepções e expressões da tradição oral. Dessa forma, os locais mais relacionados com a vida da figura histórica passaram a ter a sua imagem marcada pela de Drácula, com museus e outros pontos de interesse onde uma história de crueldades se mistura com macabra fantasia, cujo fascínio se manifesta na presença de grande número de visitantes de todo o mundo.
Entre essas localidades, salienta-se Schäßburg na Transilvânia, onde o Drácula histórico teria nascido, e onde um projeto de criação de uma espécie de parque cultural a êle dedicado apenas pôde ser impedido pelo empenho da população.
O principal exemplo de construção histórica e reinterpretação cultural para fins turísticos-comerciais é o do castelo de Bran, conhecido por "castelo de Drácula". Apesar de ter poucas relações históricas com Vlad III Tepes, esse monumento, um dos mais importantes do patrimônio histórico e arquitetônico da Romênia, e onde viveu a princesa Maria da Romênia (1900-1961), é procurado por visitantes de todo o mundo devido à sua imagem. O surgimento de comércio turístico relacionado com essa figura aos pés do monte no qual se ergue e a sua própria consideração no castelo levanta problemas de cunho patrimonial.
Também encontra-se no roteiro turístico-cultural de Drácula a igreja na ilha de Snagov, onde teria sido enterrado, ainda que, ao abrir-se a sepultura nada ali se tivesse encontrado.
Esses fatos levam a que se coloque a questão, sob o ponto de vista teórico-cultural, se não seria necessário reconsiderar-se a relação entre a figura do romance do século XIX e a de Vlad III Tepes. Não se trataria aqui, no caso de Vlad III, de uma atualização de imagem-tipo transmitida pela tradição na sua época?
Fundamentos: a crueldade na Trácia e na Barbárica em geral
A identidade romena, definida por vínculos de língua e histórico-culturais com o Império Romano e, assim, com os povos latinos (vide https://revista.brasil-europa.eu/134/Tropaeum-Traiani.html), implica na existência de um campo de tensões entre a época iniciada pela vitória romana e a anterior, aquela dos dácios e de outros povos considerados como bárbaros da região. Esse campo de tensões não era novo, pois já há séculos vigorava nas colonias gregas do Mar Negro, onde a cultura helênica se posicionava de forma contrastante àquela dos escítios e outros povos (vide artigo sôbre Histria).
Isidoro de Sevilha (ca. 560-636), registrando convicções gerais, documenta que o próprio nome dos trácios remontava à crueldade dos seus costumes (traeches seria derivado de truces = cruéis). (Etymologiae XIV/4, 4-6) Essa explicação, ainda que possa ser terminologicamente inaceitável, não deve ser considerada como errônea, como estudos de orientação filológica fazem supor. Sob ponto de vista teórico-cultural, surge como tentativa de explicação terminológica de uma imagem, o que é antes fundamental para a compreensão das concepções. Essa imagem, por sua vez, apenas pode ser explicada na sua inserção no edifício de visão do mundo e do homem.
Isidoro afirma explicitamente que os trácios tinham sido sempre considerados como os mais cruéis de todos os povos. Sôbre êles existiam narrativas que descreviam fatos terríficos, referindo-se não apenas ao fato de sacrificarem os prisioneiros no culto de seus deuses, como também àquele de beber sangue humano, utilizando-se para isso de crâneos como vasos. Eram não só cruéis como ávaros. Isidoro baseia-se, nessa informação, na admoestação de Virgilio: Heu fuge crudeles terras, fuge litus avarum (En. 2,44).
Essa imagem da Trácia valia também para outros povos de toda uma região que era conhecida, segundo Isidoro, como Barbárica. Esse designação, justificada pelos povos bárbaros que nela habitavam, era, segundo Isidoro, a da Esquítia inferior, a "primeira região" da Europa. Essa região, partindo das lagunas Meótidas, entre o Danúbio e o oceano setentrional, se prolongava até a Germania. A sua primeira parte era a Alania, que se extendia até as lagunas Meótidas, vindo depois a Dácia, onde se achava incluida a Gotia, e, a seguir, a Germania, cuja maior parte havia sido ocupada pelos suevos. A Trácia, em particular, se limitava a leste com a Propóntide e a cidade de Constantinopla, ao norte com o Ister ou Danubio inferior, ao sul, com o mar Egeu, extendendo-se, a oeste até à Macedônia, Essa ampla região, no passado, havia sido habitada pelos bessos, masagetas, sármatas, escitas e outras nações.
A imagem do lobo e do homem que se transforma em lobo
Ovidio, que ali passou a sua vida de exílio, manifesta de forma explícita e pormenorizada o contraste entre a cultura romana e a dos povos não-romanos do Ponto, descrevendo o horror em viver em situação constantemente ameaçada por guerras, violências e mortes (vide https://revista.brasil-europa.eu/134/Ovidio-no-Mar-Negro.html). Essa situação correspondia ao domínio de Marte como deus da guerra sobre a terra no Mar Negro. A própria aparência dos getos, que Ovidio descreve como um povo sem paz, teria a aparência selvagem de Marte. Os homem não fariam jus ao nome de humanos, pois, em cólera e semblante fechado eram mais do que lobos. Não havia temor às leis, valendo o direito do mais forte (Tristia V, 7,27-7,58). Ovidio compara o lobo à guerra: se o lobo era o animal que ameaçava o cordeiro, era ali a guerra que o fazia aos homens de paz (Tristia V, 10,9-10,40) Perante essa situação, também o poder agia de forma violenta, sendo os prisioneiros cruelmente executados.
Também é Ovidio que oferece, no primeiro livro das Metamorfoses, uma das mais divulgadas tradições relativas à transformação de homem em lobo. Referindo-se a antigo mito já relatado por Hesiodo e em outras fontes, cita Lykaon, rei da Arcadia, em cujo monte através dos séculos se faziam sacrifícios humanos. Segundo diferentes versões do mito, a transformação em lobo é devida justamente à crueldade de Lyakon e que se manifesta sobretudo no servir carne humana. Êle teria sido até mesmo o patriarca de toda uma geração de homens arrogantes e cruéis, que teriam sido transformados em lobos. Ainda que as várias referências apresentem diferenças quanto a pormenores, o núcleo das concepções permanece coerente. Segundo Ovidio, Lykaon, que teria cozido e em parte fritado a carne de prisioneiro, oferecendo-a a Zeus, é que teria sido transformado em lobo, Segundo Eratosthenes, Lyakon teria matado um jovem parente; este, recomposto por Zeus, foi colocado como constelação nos céus, ou seja, transformado como paradigma de um tipo humano. ("Lupus" in A.A.Bispo, Christliche Musikanthropologie: Eine Einführung, Liber Annuarius Musices Aptatio 1992/93, Rom 1997, 221-223)
Atualização histórica de imagens-tipo. Draco e Vlad III Țepeș
Entretanto, não se tem considerado as características da imagem do dragão de acordo com o mecanismo tipológico-antipológico do sistema de ordenação de imagens. O dragão, a "velha serpente", era imagem do diabo desde tempos remotos, e vivia na tradição hagiográfica cristã também como representação do Islão. Também no romeno, o termo "drac" significa demônio, em correspondência à terminologia greco-latina. É possível que, em eufemismo, comum nas designações do demônio, tenha-se passado a utilizar o termo eslavo-romeno Dragul, com o significado de querido ou amado. Também se sabe que Vlad III comportava-se austuciamente apresentando-se de forma amiga e de compadrio, para, ao obter o que desejava, agir impiedosamente. Amigo do álcool, teria uma vez convidado amigavelmente bojares para, embriagados contarem a sua opinião sobre a sua pessoa e informações sobre atos corruptos. A seguir, foram impalados.
A imagem histórica de Vlad III é marcada por características de personalidade e comportamento aparentemente contraditórias. Na sua oposição ao Islão e à expansão turca, foi um representante da Cristandade; combateu rigidamente a corrupção e procurou fortalecer o seu poder e estabelecer a ordem no seu reino, governando com mão de ferro e medidas implacáveis. Tornou-se conhecido na Europa e na Rússia pelas suas inumeráveis e cruéis execuções, sobretudo através de impalações. (Veja a respeito de impalações artigo sôbre o Tropaeum Traiani)
Os métodos dracônicos e cruéis de Vlad III serviram ao apavoramento dos turcos e, assim, aos interesses cristãos. No seu combate aos bojares e na proteção que dava ao homem do povo associou-se com a inversão de situações de poder. Esse fato apenas pode ser compreendido se Vlad III for visto sob o pano de fundo de uma imagem-tipo, também existente no sistema de concepções do homem vigente na cultura cristã. ("Draco", in in A.A.Bispo, Christliche Musikanthropologie: Eine Einführung,op.cit., 240 ss.),
Aproximações à determinação da imagem-tipo
Ponto de partida nas tentativas de compreensão da imagem-tipo de Vlad III é o seu elo com concepções relacionadas com o diabo. Na tradição interpretativa da Genesis, correspondia às trevas que foram separadas da luz, sendo, agora individuadas, denominadas de noite. O período do ano marcado pelas trevas é aquele posterior ao equinócio do outono no hemisfério norte, quando as noites se tornam mais longas do que o dia. As noites mais longas são aquelas ao redor do solstício de inverno, e que equivale ao nascimento do dia. A individuação das trevas como noite corresponde, assim, ao período do ano representado pelo signo do capricórnio.
Na tradição mitológica e vigente em práticas agrárias, essa época do ano era relacionada com Dionísio (Liber). Também esse deus surge nas narrativas com características que se associam com crueldade, sendo que os seus seguidores chegavam a comer animais vivos. O culto de Dionísio estava estreitamente vinculado à imagem da Trácia e de outros povos bárbaros em geral. No período de orientalização cultural da Antiguidade tardia, foi relacionado com Sabazius. (vide artigo a respeito de Histria) Essa divindade era caracterizada pela crueldade com que punia aqueles que não o cultuavam à altura. Tinha, assim, a consciência de ser considerado em primeiro lugar.
As duas imagens, a do lobo e a do dragão, ainda que diversas, surgem como estreitamente relacionadas entre si, inseridas num mesmo complexo. O lobo associa-se à guerra, ou seja, à Marte, o "filho do dragão" à terra sob a guerra e ao homem que se transforma em lobo.
Círculo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Imagens da crueldade e do beber sangue em povos associados à barbárie no mundo antigo
Da capital do lobisomem no Brasil e do Drácula na imagem da Romênia". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 134/7 (2011:6). https://revista.brasil-europa.eu/134/Lobisomem-e-Dracula.html
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