Sínteses e simbioses islâmico-cristãs?
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 174
Correspondência Euro-Brasileira©
Sínteses e simbioses islâmico-cristãs?
ed. A.A.Bispo
Revista
BRASIL-EUROPA 174
Correspondência Euro-Brasileira©
Fotos A.A.Bispo 2018©Arquivo A.B.E.
N° 174/7 (2018:4)
Sínteses e simbioses islâmico-cristãs?
A questão do „estilo normânico-árabe-bizantino“
sob a perspectiva de processos culturais da Reconquista no Mediterrâneo
Reflexões na Catedral de Monreale, Palermo
Estudos mediterrâneos pela celebração de Valletta como „Capital Européia da Cultural 2018“
Os estudos no Mediterrâneo por motivo da celebração de La Valetta como „Capital Européia da Cultura 2018“, confrontaram-se necessariamente com as seculares tensões entre o Islão e o Cristianismo que marcaram profundamente a história dessa esfera do globo. (Veja)
Uma consideração mais aprofundada dessas tensões no seu significado para o estudo de expressões culturais e da história das arte não pode iniciar-se no século XVI, quando a Ordem dos Joanitas, premida pelos muçulmanos, transferiu-se para Malta (Veja), mas sim deve voltar-se a séculos iniciais da expansão islâmica na área mediterrânea e àqueles marcados pela recuperação ou reconquista de territórios por cristãos.
A consideração desses processos decorridos em remoto passado abrem perspectivas para um tratamento mais diferenciado da história cultural e das artes. Estas, por sua vez, tem consequências para diferentes áreas de estudos - também para os da História da Arte no Brasil.
Entre muitos outros aspectos, as perspectivas que assim se abrem são de significado para considerações mais aprofundadas de exemplos da arquitetura e das artes que demonstram a recepção de correntes estético-culturais do assim-chamado neo-bizantino em fins do século XIX e início do XX em algumas cidades brasileiras e do qual o interior do igreja do Mosteiro de São Bento de São Paulo é significativo exemplo.
Essa recepção não deve ser considerada apenas como expressão do historismo do século XIX e da restauração católica remontante ao Concílio de Trento, mas sim nos seus fundamentos, ou seja, nos modêlos de mais distante passado a que se referem e que também se inseriram em complexos desenvolvimentos eclesiásticos e políticos.
Problemas na consideração de „estilos“ sob a perspectiva de processos históricos
Esses estudos de processos culturais em remoto passado na área mediterrânea contribui também para a tomada de consciência de como concepções voltadas a „estilos“ podem ser superficiais se estes não forem considerados na sua dinâmica, processualidades internas e inscrições contextuais.
Um dos principais exemplos da necessidade de consideração mais diferenciada de estilos é o daquele „normano-árabe-bizantino“ da história da arquitetura na Sicília.
Em textos de História da Arte e da Arquitetura da Idade Média, salienta-se constantemente a peculiaridade de formas construtivas e da linguagem estética de monumentos dessa região itálico-mediterrânea e que a teria distinguido de outras partes do Ocidente.
Essa peculiaridade, explicável pela situação geográfica e pelos desenvolvimentos históricos, resultaria de uma mistura, síntese ou simbiose de elementos normanos, bizantinos e islâmicos. Principais exemplos desse „estilo normano-árabe-bizantino“ seriam a catedral de Monreal e a da capela palatina de Palermo, assim como a catedral de Cefalù.
O „estilo normano-árabe-bizantino“ e problemas de uma idéia de síntese
Nas reflexões encetadas na catedral de Monreale, considerou-se criticamente essa concepção de síntese ou simbiose na consideração do „estilo normano-árabe-bizantino“.
A percepção dos problemas desses conceitos apenas tornou-se possível sob o pano de fundo das discussões a respeito de misturas e sincretismos que, há décadas, vem marcando os estudos euro-brasileiros.
A problemática do conceito de sincretismo, tanto na consideração de expressões culturais vivas no Brasil, como também da Antiguidade tardia, foi tratada em diversas ocasiões e sob diferentes aspectos em estudos, colóquios e simpósios.
Salientou-se que, na maior parte dos casos, a consideração de misturas e processos vistos como sincréticos é superficial e indiferenciada, não atentando a complexos processos de harmonização e sintonias de elementos culturais de diferentes proveniências a partir de fundamentos tipológicos e, sobretudo, de processualidades transformatórias internas do próprio sistema e de suas referenciações históricas. Essa noção superficial de sincretismo e de simbiose levou a graves mal-entendidos de expressões culturais.
Atualidade da problemática no presente: expansão do Islão no Ocidente
O tratamento dessa problemática teórica no exemplo do „estilo normano-árabe-bizantino“ adquire particular atualidade no presente.
Com o grande número de migrantes muçulmanos na Europa e a correspondente expansão do Islão no Ocidente, constata-se de muitos lados expectativas que as interações culturais levem a uma configuração cultural cujas tensões e arestas sejam subsumidas em nova unidade decorrente de misturas e sínteses.
Nessa visão, oposta no seu otimismo àquela que dirige a atenção a uma islamização que apenas poderia ser sustida com uma nova evangelização, procura-se exemplos de sínteses e simbioses no passado, e um desses poderia ser o da mistura „normano-árabe-bizantina“ da Idade Média.
Rededicações de espaços como evidência de fundamentais mudanças culturais
Entre os procedimentos que manifestam da forma mais evidente relações entre processos religiosos, políticos e situações de poder encontra-se o da rededicação de locais e espaços. Essas transformações podem ser constatadas já em remotas épocas. Após a crucificação, os romanos dedicaram a deuses o local onde se levantou a cruz e o do nascimento em Belém. Os cristãos, posteriormente, transformaram em várias regiões antigos templos em igrejas.
A expansão islâmica foi acompanhada pela profanização de igrejas e seu uso como mesquitas. A Reconquista, por sua vez, foi marcada pela reversão desse processo com a cristianização de mesquitas, reedicando-as em geral ao culto mariano. (Veja)
Esse processo foi de especial significado na Península Ibérica, em particular também em Portugal e na presença portuguesa no norte da África. Marcou a memória e formas de veneração - sobretudo de Maria - em várias regiões, irradiando-se ao Novo Mundo. Basta lembrar o culto de Nossa Senhora de Antigua no Caribe para se constatar o significado desses atos recristianizadores de mesquitas como referenciais histórico-culturais e de identidade. (Veja)
Transformações quanto à autoridade doutrinária - processos educativo-corretivos
Um aspecto que merece especial atenção no estudo dessas transformações de espaço em islamizações e (re-) cristianizações é aquele relacionado com o conceito de cátedra e sé episcopal. Em vários casos, tratou-se nesse processo de catedrais. Esse fato evidencia relações com a autoridade doutrinária e de ensino, sendo assim de relevância para estudos voltados à história cultural, do saber, dos conhecimentos e do magistério.(Veja)
Um dos principais e mais antigos exemplos dessas relações é o da Sicília. Quando os árabes tomaram o poder em Palermo, no ano de 831, und de seus atos foi o de transformar em mesquita a sé episcopal. Com isso, estabeleceram um sinal não só da mudança de situações de poder, como também religiosa e de domínio intelectual. Demonstrava-se assim que as funções da cátedra local, sobretudo aquelas da propagação da doutrina e do ensinamento, passavam a ser exercidas pelos eruditos muçulmanos..
A transformação da catedral de Palermo em mesquita adquire particular significado no estudo dass transformações de sentidos e funções da arquitetura eclesial no decorrer da islamização pelas suas consequências e irradiações.
A tradição histórica conta que o bispo de Palermo, expulso pelos árabes, não querendo afastar-se da sua veneranda catedral, estabeleceu-se em pequena aldeia nas colinas de Palermo, aquela que viria a ser o futuro Monreale.
Nesse exílio, em precária igreja, continuou o seu ministério episcopal junto a uma pequena comunidade. Compreende-se assim o significado que essa localidade adquiriu no decorrer da história, uma vez que foi ela a garantia da continuidade doutrinária sob o domínio muçulmano, ou seja, a permanência da antiga catedral no seu mais profundo sentido, ainda que no exílio quanto à sua localização e ao espaço construído.
Essa situação perdurou quase dois séculos e meio, sendo que só em 1076 os normanos conseguiram expulsar os árabes das Sicília. Com a tomada do poder, a mesquita de Palermo foi recristianizada, voltado a ser a catedral.
Recatolização - Monreale, processos político-eclesiásticos e elos ibéricos
A construção da monumental igreja de Monreale, assim como as suas características arquitetônicas e sua linguagem visual, surgem como relevantes manifestações dos fundamentos imateriais, de concepções e imagens que determinaram o processo cultural transformatório ou de re-conquista espiritual.
A sua história relaciona-se estreitamente com um dos maiores vultos da história da Sicília, o rei Guilherme II, o „Bom“, (ca.1153-1189), o segundo filho de Guilherme I, o „Mau“ (1120-1166), este filho de Elvira de Castela. O rei Guilherme II que, como a sua alcunha expressa, alcançou renome pelas suas qualidades de caráter, pela sua beleza e pela sua religiosidade, foi marcado pelos elos com a sua mãe e pela sua devoção mariana.
Alcançando a maioridade e assumindo o poder em fins de 1171, Guilherme II deu ordens a que se construisse um complexo conventual com características fortificadas e uma igreja dedicada a Santa Maria Nuova na localidade que garantira, através dos séculos, a continuidade do cristianismo.
Esse complexo abrangia também um palácio episcopal, um palácio real e um mosteiro beneditino, para o qual vieram monges do mosteiro de La Cava.
As dimensões políticas dessa fundação manifesta-se no desenvolvimento que levou a que o mosteiro passasse a ser submetido diretamente à Santa Sé e que a igreja tenha sido elevada a sé episcopal, modificando a estrutura eclesiástica da região.
A sua elevação a sé foi alcançada sob Lucius III (ca.1100-1185) em 1183, um pontífice com estreitos elos com os Cistercienses e que entrou na história pelo seu empenho no combate a heresias, em particular aos cátaros. É compreensíve, assim,l que questões doutrinárias tenham assumido grande relevância nessa época de luta contra aqueles vistos como heréticos e na missão interna de natureza corretiva.
Para a elevação de significado de Monreale, criou-se um arcebispado, passando os bispados de Siracusa e Catania a sufragâneos. Nessa organização eclesiástica, surge como significativo os estreitos laços criados entre a cátedra episcopal e a tradição monástica beneditina. Na nova arquidiocese, o abade passou a ser arcebispo e o convento a desempenhar as funçõesde capítulo catedralício.
Santa Maria Nuova de Monreale e a tradição mariana na Sicília
Tudo indica que o local já estava há décadas marcado no seu sentido numinoso pelo culto mariano. Situado nos altos sobre a cidade à beira-mar, Monreale corresponde na sua localização topográfica às muitas localidades que. nos mais diferentes contextos, se tornaram centros de devoção mariana, em particular daqueles voltados à Assunção de Nossa Senhora nas suas relações com a celebração da Imaculada Conceição.
Significativamente, a igreja do monte, terminada em 1183, foi dedicada a Maria sob o aspecto do mistério celebrado no dia 15 de Agosto, uma das principais festas do calendário religioso.
A representação central do programa teológico da igreja é Maria no trono, apenas abaixo do Cristo Pantocrator. A entrega do templo a Maria pelo rei é representada num de seus mosaicos.
Os mosaicos de Monreale à luz das relações político-culturais com Bizâncio
As relações da Sicília da época de Guilherme II com Constantinopla inserem-se em amplo contexto europeu.
Para além de laços explicáveis por uniões, - teve inicialmente como noiva Maria Komnena da dinastia bizantina, pode-se lembrar que Guilherme II tomou partido do Papa e das cidades lombardas contra o imperador Frederico I, Barbarossa (1122-1190), com o qual posteriormente estabeleceu pazes. Como Barbarossa planejava uma incursão contra o império bizantino devido a perseguições de italianos em Constantinopla, deu-se uma aproximação entre o rei e o imperador.
A pedido do pretendende bizantino Alexios I Komnenos (1048-118), Guilherme II ordenou em 1185, um ataque, sendo porém o seu exército derrotado a caminho de Constantinopla. Também uma batalha contra os egípcios foi perdida, falecendo Guilherme II durante os preparativos para uma terceira cruzada.
Considerações sob traços árabes na arquitetura de Monreale
O conflito com o Islão e o seu combate marcaram os seus intentos, sendo impensável que pudesse haver intentos de sínteses ou simbioses, apesar da importância de eruditos árabes na sua época. O fato de Guilherme II ter empregado mão de obra e artesãos árabes não pode ser visto como sinal de intentos de simbiose.
Tem-se argumentado dizendo que os normanos apenas teriam constituido o círculo dirigente da sociedade, sendo os artistas e artesãos resultantes de uma mistura de camadas populacionais de origem greco-bizantina e árabe. Embora o significado desses trabalhadores. da presença de eruditos árabes e da continuidade do uso de expressões, práticas e usos na Corte tenha sido relevante, a sua consideração não pode ofuscar o reconhecimento de que o projeto foi fundamentalmente inscrito em processo recatolizador.
A ocorrência de elementos da tradição árabe na sua obra magna, vistos por exemplo nos arcos cegos e nos trabalhos de incrustração artística nas partes externas refletem condicionamentos culturais, devem porém ser analisados nos seus sentidos no corpo geral de umna arquitetura fundamentalmente românica. Nesse sentido, cumpre lembrar que se encontram na parte externa, onde, na arquitetura medieval, constatam-se antes figuras grotescas, animalescas ou demoníacas.
No interior, o que domina é a linguagem estética e artística bizantina na magnificência dos mosaicos sob pano de fundo dourado. Elementos geométricos e vegetais das partes inferiores são sobrepostos por uma profusão de representações bíblicas do Velho e do Novo Testamento que evidenciam a igreja como uma verdadeira cátedra de ensinamentos doutrinários.
Poucos são os exemplos da arquitetura ocidental que manifestam de forma tão impressiva a função de sede episcopal sob a imagem da sede ou trono de Maria como modêlo máximo. Todo o interior da igreja surge como um livro, cujo texto pode ser lido nas representações dos mosaicos, surgindo Monreale como monumento da maior relevância para estudos da linguagem visual e de processos cristianizadores e recartolizadores.
A designação de estilo ou arte normânico-árabe-bizantina revela-se assim como expressão de uma aproximação interpretativa superficial, inadequada e mesmo errônea. A idéia de uma cultura miscigenada cristã-islâmica na Sicília que, suplantada pela arte normânica, teria levado a um estilo normânico-siciliano como síntese ou simbiose deve ser questionada e substituída por concepções mais voltadas a processos transformatórios.
De ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. „Sínteses e simbioses islâmico-cristãs? A questão do „estilo normânico-árabe-bizantino“
sob a perspectiva de processos culturais da Reconquista no Mediterrâneo“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 174/7(2018:4).http://revista.brasil-europa.eu/174/Simbioses_islamico-cristas.html
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2017 by ISMPS e.V.
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha
Editor: Professor Dr. A.A. Bispo, Universität zu Köln
Direção gerencial: Dr. H. Hülskath, Akademisches Lehrkrankenhaus Bergisch-Gladbach
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