Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Azulejos em Mindelo.Portur. Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E








 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/12 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2983





Leopoldina - a cidade com o nome da Primeira Imperatriz do Brasil em Cabo Verde
à luz da presença da Áustria na política científico-cultural na esfera atlântica à época da Restauração

História urbana do Porto Grande de São Vicente
nas suas inserções em contextos político-culturais globais
e em suas relações com o Brasil II


Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses

 

Em considerações sôbre as múltiplas e estreitas relações entre o Cabo Verde e o Brasil, pouco é lembrado que uma das cidades caboverdianas - justamente aquela que hoje é considerada a sua "capital cultural" - Mindelo no Porto Grande, ilha de São Vicente - foi designada com o nome de Leopoldina, a primeira imperatriz do Brasil (1797-1826).

A razão da pouca atenção dada a esse fato, singular e mesmo surpreendente, reside na curta existência da povoação assim designada e que faz com que surja como uma ocorrência histórica  sem maiores consequências.

A designação de Leopoldina não pode, porém, por diversos motivos ser vista apenas como uma curiosidade histórica sem maior significado. Pelo contrário, ela dirige a atenção a contextos políticos e científico-culturais globais que relacionam a Europa do início do século XIX com o universo insular atlântico e o Brasil, testemunhando de forma expressiva a inserção do Atlântico e configurações e processos políticos em época decisiva de conflitos e de reorganização do Velho Mundo após a Revolução Francesa e o período napoleônico.

Considerá-la surge até mesmo como pressuposto para o entendimento de contextos político-geográficos que tornam compreensível a sua designação futura de Mindelo. Ambas as designações surgem relacionadas com D. Pedro, o proclamador da Independência do Brasil, seu primeiro imperador e rei de Portugal.

As duas denominações, porém, indicam situações e tendências distintas, desenvolvimentos políticos que dizem respeito a Portugal e ao Brasil, à esfera atlântica na qual Cabo Verde se insere.

A tentativa de povoamento por madeirenses e açorianos e seus sentidos

Em exposição na Torre de Belém de Mindelo dedicada aos espaços urbanos do Cabo Verde da Comissão Nacional das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Torre-de-Belem.html), o povoado designado como Leopoldina é considerado no contexto de uma história de tentativas falidas de assentamento de camponeses no Porto Grande.

Nesse panorama histórico abrangente, surge como compreensível que o govêrno português tenha sentido a necessidade de povoar o Porto Grande devido ao risco experimentado no passado de ali aportarem corsários e navios de nações inimigas, como os holandeses à época das suas ações no Nordeste do Brasil.

Uma tentativa de povoamento sistemático da ilha de São Vicente, ordenado em 1781, ocorreu à época de D. Maria I (1734-1816), uma rainha que entrou na história pela sua religiosidade extremada ("a Piedosa"), clericalismo e reacionarismo anti-iluminista manifestado na demissão de Sebastião José de Carvalho e Mello, Marquês de Pombal (1699-1782), cujas medidas de coibição da excessiva influência da Igreja em assuntos do Estado em parte desativou.

Considerando essa atmosfera de reconscientização de fundamentos religiosos da ação política do período é compreensível que se tenha pensado primeiramente num povoamento da ilha de São Vicente com colonos da Madeira e dos Açores, uma vez que se criaria no Atlântico Sul mais um centro populacional marcado por profundo Catolicismo.

Essa iniciativa levaria também a uma renovação de cunho restaurador do Catolicismo no arquipélago, uma vez que a vida religiosa das ilhas, nas suas expressões e festividades derivadas de processos históricos de sua formação étnica, social e de procedimentos missionários do passado teria assumido características sentidas como exteriorizantes, heterodoxas e necessitadas de uma reforma que possibilitasse correção de abusos e maior disciplina moral.

Essas razões religioso-culturais surgem como mais plausíveis do que aquela de um simples intento de se criar um Cabo Verde menos africanizado a norte como sugerido na Exposição.

A cidade de D. Rodrigo como empreendimento no contexto da política colonial

A essa tentativa de fixação de ilhéus madeirenses e açorianos na ilha de S. Vicente, que teria fracassado sem deixar muitos traços, seguiu-se uma outra iniciativa, melhor preparada, de povoá-la com camponeses do próprio arquipélago.

A Secretaria de Estado da Marinha, sob a direção de D. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), um político português que desempenharia influente papel na política do Reino à época da sede da Corte no Brasil, onde viria a falecer.

Se a iniciativa anterior de povoamento de S. Vicente por ilhéus da Madeira e dos Açores teria levado à criação ou intensificação de uma esfera de relações humanas e comerciais entre regiões coloniais, por assim dizer um mercado interno insular atlântico, o plano apoiado por D. Rodrigo de Souza Coutinho sugere antes concepções de política colonial que defendiam um estreito vínculo econômico das colonias com a metrópole, sendo as produções coloniais diretamente com ela comercializadas, fomentando-se, ao mesmo tempo, a exportação de seus produtos às colonias.

Compreende-se, assim, que se cogitasse antes um desenvolvimento agrícola da ilha, o que explicaria o apoio concedido por D. Rodrigo de Souza Coutinho à proposta de João Carlos de Fonseca Rosado (+1815), um abastado empreendedor agrícola que atuava na ilha do Fogo em levar para a ilha de S. Vicente 20 casais e respectivos escravos, obtendo em troca o título de capitão-mor de S. Vicente e a isenção de pagamento de dízimos pelo espaço de dez anos.

Diferentemente do espírito que a iniciativa anterior sugere, tratava-se aqui de um projeto antes marcado por concepções econômicas de cunho mercantilista e de fomento do progresso comercial no âmbito das relações entre as colonias e Portugal.

Que essa orientação do plano correspondia às concepções de D. Rodrigo de Souza Coutinho isso manifesta-se na própria denominação da povoação assim criada segundo o seu nome: D. Rodrigo. Já aqui, portanto, evidenciam-se as dimensões amplas de uma denominação e que também adquire particular significado para o Brasil, uma vez que D. Rodrigo viveu e atuou posteriormente na Corte fixada no Rio de Janeiro.

O fracasso dessa tentativa baseada em desenvolvimento agrícola a partir de concepções político-coloniais explica-se pelas condições naturais da ilha, acometida que foi por grandes sêcas entre 1805 e 1807 e 1810 e 1813, o que levou à ruína do seu empreendedor. Esse insucesso da cidade que trazia o seu nome não poderia ter deixado de ser sentida por D. Rodrigo de Souza Coutinho, repercutindo na Côrte que se encontrava no Brasil.

Um esboço desenhado da cidade criada conservado em documento do Arquivo Histórico Ultramarino, apresentado na exposição  sobre os Espaços Urbanos do Cabo Verde, permite que se reconheça um traçado refletido de área urbana delimitada por muros, reticulada e centralizada em praça marcada por grande igreja, cujas dimensões superavam de muito aquelas das moradias. Essa desproporção no tamanho dado à igreja indica que também nessa iniciativa de fundamentação antes econômica e de fomento do progresso a vida religiosa continuou a representar o principal fator de coesão e identidade comunitária.

Os colonos vindos da ilha do Fogo, marcada na sua história por calamidades naturais, fomes e sêcas, eram culturalmente marcados por expressões religiosas seculares, remontantes ao início da colonização do arquipélago, salientando-se sobretudo aquelas do culto mariano.

Na povoação de D. Rodrigo, esse marianismo ter-se-ia manifestado sobretudo na devoção a Nossa Senhora da Luz, vindo de encontro às afinidades entre a natureza marítima do Porto Grande e a linguagem de imagens marianas e a relações com um culto sobretudo festejado no Algarves, ao qual parece remeter o  sobrenome Rosado do seu fundador (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Mindelo-Povoamento.html).

Elos entre o mundo marítimo-comercial austríaco e o português no Cabo Verde

A iniciativa subsequente de desenvolvimento da ilha de S. Vicente e do assentamento urbano do Porto Grande insere-se no novo contexto internacional determinado pelo fim da era de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e reorganização da Europa sob o espírito restaurador, do Congresso de Viena (1814-1815), dirigido pelo Ministro do Exterior austríaco nascido na cidade alemã de Koblenz, K. W. N. L., Príncipe von Metternich-Winneburg zu Beilstein (1773-1859).

É sob essa perspectiva de uma época restauradora da antiga ordem, de princípios monárquicos, de tendências anti-nacionais e anti-liberais, de supremacia das nações vencedoras, em particular da  centro-européia austríaca que deve ser considerada a nova tentativa de desenvolvimento da ilha de S. Vicente nas suas relações com um contexto atlântico no qual o Brasil se inseria de forma relevante como sede do Reino Unido Brasil-Portugal-Algarve.

Esse estreitamento de vínculos com a Europa Central de língua alemã da esfera atlântica manifesta-se no principal vulto relacionado com a nova iniciativa de desenvolvimento urbano do Porto Grande: António Pusich.

Nascido de tradicional e abastada família em Ragusa (Dubrovnik),  provindo assim do principal porto adriático do comércio do Mediterrâneo, em particular com cidades italianas, e centro cultural do sudeste europeu adriático - a "Atenas da Croácia" -, que passaria a pertencer à Áustria por decisão do Congresso de Viena, António Pusich foi preparado para uma carreira na Marinha, obtendo sólida e diversificada formação, obtida sobretudo em cidades italianas.

Em Turim, António Pusich travou conhecimento com D. Rodrigo de Souza Coutinho, então embaixador de Portugal. Foi a seu convite que veio a Lisboa. A sua introdução nas esferas mais altas da sociedade portuguesa deu-se a partir do interesse de D. Maria I de adquirir imagens italianas para a Basílica da Estrêla, então em construção. Uma imagem de Santa Teresa de Jesus, por êle trazida, contribuiu a seu prestígio junto à família real, o que também se manifestou no fato de ter acompanhado a vinda do Cardeal que viria a ser mestre dos filhos de D. Maria I. Em recepção em Queluz conheceu Ana Maria Isabel Nunes, filha de Manuel Nunes, também do mestre dos infantes, com a qual se casou em 1791.

Transferindo-se definitivamente a Portugal, entrou a serviço da Marinha. Em 1798, dirigia o brigue Dragão, em 1799, o bergantim Balão, alcançando com essa nave o arquipélago do Cabo Verde, dando início à sua carreira relacionada com as ilhas. Em 1801 foi nomeado Intendente da Marinha das Ilhas de Cabo Verde, elevado a Capitão-de-Fragata. Após o término do período napoleônico, em 1818, Antóno Pusich foi nomeado a Governador do Cabo Verde.

Um ano após a sua nomeação a Governador, Pusich tomou a iniciativa, em 1819, de revitalizar o povoado de D. Rodrigo no Porto Grande. Se a população local havia sido constituída por famílias trazidas do Fogo, o Governador procura agora repovoá-lo com camponeses pobres da vizinha ilha de Santo Antão. Dava continuidade, assim, à intenção de desenvolvimento local através de deslocamentos de camponeses do próprio arquipélago para lides agrícolas, tendo porém o cuidado de dotá-los de ferramentas, sementes.

Criando uma estrutura administrativa que diferia daquela do empreendimento privado anterior por ser vinculada ao Govêrno, já considerava, como homem da Marinha, a posição privilegiada do Porto Grande para o comércio marítimo, o que se manifesta no fato de instituir alfândega, feitoria, além de milícia e igreja. Também essa fundação não teve o sucesso desejado devido às graves sêcas que destruiram os esforços agrícolas e, sobretudo, pelo retorno de Pusich a Portugal, forçado pelos desenvolvimentos revolucionários liberais de 1820.

Cultura austríaca no Cabo Verde, formação intelectual feminina e a cidade de Leopoldina

Tendo vivenciado o período de tensões de uma região que havia sido ocupada pelas forças napoleônicas, a seguir pelas austríacas e incorporado à Áustria na Restauração, compreende-se os seus vínculos com países e cidades relacionados mais estreitamente com o poder austríaco.

Com a sua formação humanística adquirida em grandes centros europeus, religioso e amigo das letras e das artes, Pusisch agiu no sentido de civilizar práticas que via como bárbaras no tratamento dos naturais pelas autoridades nas ilhas, entre elas as de castigos corporais em público, e no auxílio à população pobre e sujeita às sêcas.

Uma atenção especial merece à valorização da mulher que se reflete na educação aprimorada que o Governador do Cabo Verde deu às suas filhas. Essa atitude perante a mulher, que contrastava com aquela da sociedade tradicional caboverdiana, apenas pode ser compreendida a partir do ambiente que vivenciou nos círculos mais altos da sociedade européia, onde, em particular na Áustria, muitas personalidades femininas destacavam-se pela sua formação cultural, pela sua personalidade e pelo papel que desempenhavam na sociedade e mesmo no Estado.

O cuidado dado à formação de suas filhas é testemunhado por Antónia Gertrudes Pusich, uma personalidade de múltiplas aptidões da história feminina portuguesa, que empenhou-se pelo ensino de meninas e jovens para além de prendas domésticas e de artes, e que deixou registrada a biografia de seu pai. Nascida no Cabo Verde em 1805, teve como padrinho de batismo nada menos do que o próprio príncipe regente. Em recordação desse ato, levantou-se a capela de Santo António dos Navegantes, no Porto da Preguiça, São Nicolau.

É nesse contexto da vida e da inserção político-cultural de Pusich que deve ser visto o fato de ter mudado o nome da povoação para Leopoldina. Com esse ato, prestava uma homenagem àquela que mais representava os laços entre o mundo austríaco do qual provinha e o português. Para êle, o estrangeiro que fizera carreira em Portugal com o apoio da família real e que por isso era nem sempre bem visto pelos portugueses na colonia, a Arquiduquesa da Áustria que se tornara princesa de Portugal e do Brasil necessariamente adquiria um significado transcendente no contexto internacional da nova ordem política estabelecida pela Restauração.

As negociações para o seu casamento iniciaram-se no início do período da Restauração, em 1816, e inserem-se nas estrategias da política européia estreitamente vinculada com o nome do Príncipe K. W. L. von Metternich. Já a 13 de maio de 1817 celebrou-se o casamento, em representação, em Viena. No dia 16 de novembro do mesmo ano deu-se a celebração no Rio de Janeiro.

D. Leopoldina como modêlo de personalidade feminina de intelecto e as ciências

A filha do Imperador Francisco surgia como um exemplo de personalidade feminina de sólida e diversificada formação, não só pelas suas aptidões em desenho e no domínio de vários idiomas, mas também em ciências naturais, sendo conhecida pelo seu interesse pela Botânica,  Lepidopterologia e Mineralogia. Ela correspondia assim ao elevado nível cultural que era reconhecido em personalidades femininas da Côrte de Viena.

É significativo, assim, que o seu casamento com o príncipe D. Pedro coincida com a época em que a Europa Central passou a sentir a necessidade de adquirir maior conhecimento do país que abrigara uma Côrte européia no exílio - justamente uma das mais conservadoras representantes da antiga ordem - e que se transformara em centro do império português de dimensões mundiais. Esses conhecimentos tornavam-se necessários na procura de artigos de comércio para a Europa e de animais e plantas que poderiam ser aclimatados no Velho Mundo.

Explica-se, assim, o fato extraordinário de ter-se constituído uma expedição científica para acompanhar D. Leopoldina na sua viagem ao Brasil. Também promovida por von Metternich, o empreendimento foi organizadoi sob a direção de Karl Franz Anton von Schreibergs (1775-1852), um naturalista  nascido em Pressburg, diretor do Gabinete Real e Imperial de Ciências Naturais da Côrte austríaca, famoso por ter dirigido as colecões de História Natural de Viena. Doutorado em Viena, em 1798, tendo estudado também Botânica, Mineralogia e Zoologia, visitara importantes museus em diversos países europeus, atuara como assistente de História Natural e Ciências Agrícolas na Universidade de Viena e dedicava-se às mais diversas questões científico-naturais, salientando-se, entre elas, ao estudo de meteoritos e de anatomia de anfíbios.

Com Leopoldina viajou o seu professor Rochus Schüch. Da expedição participaram vários outros cientistas de renome na Europa Central, salientando-se o zoólogo Johann Natterer, os botânicos Henrich Wilhelm Schott, jardineiro da Flora da Áustria, e o mineralogista e botâncio Johann Baptist Emanuel Pohl, da Boêmia (1782-1834), e o preparador Ferdinand Dominik Sochor. Dela tomaram parte também o pintor paisagista Thomas Ender, responsável pelo registro visual do observado, e o desenhista Johann Buchberger. A direção foi confiada a Johann Christian Mikan, doutor em Medicina e professor de Botânica de Praga.

O rei Maximiliano I da Baviera, tomando conhecimento da expedição, enviou ao Brasil com a expedição o conservador Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius. O Grão-Duque da Toscana enviou o botânico florentino Giuseppe Raddi (1770-1829).

A viagem de D. Leopoldina e da expedição científica: sibas e urzelas de Cabo Verde

Antes de chegar ao Brasil em novembro de 1817, no decorrer de sua viagem marítima de três meses, a princesa, a caminho do Brasil, passou pela Madeira e pelas águas do Cabo Verde.

Johann Emanuel Pohl, descreve na sua obra, a recepção dada a D. Leopoldina em Funchal. (Johann Emanuel Pohl, Viagem no interior do Brasil; trad. M. Amado e E. Amado, Belo Horizonte/S. Paulo: Itatiaia/USP, 1976)

No relato, o cientista, descrevendo a continuidade da viagem e acentuando o calor crescente que tornava a viagem quase que intolerável para os austrícos, menciona a passagem pelas águas do Cabo Verde. As suas palavras testemunham o interesse dos cientistas em adquirir novos conhecimentos sob a perspectiva de um possível aproveitamento comercial.

Ao descrever o peixe-tinta ou polvo, abundante nessa região, dá particular atenção ao fato ou não de ser comestível, afastando porém a possibilidade de virem de encontro ao paladar europeu pela sua consistência e aparência.

"Em 22 de setembro achamo-nos na Ilha de Cabo Verde e tínhamos Boa Vista diante de nós. Acompanharam-nos algumas gaivotas terrestres. O calor tornava-se cada vez mais sufocante e era quase intolerável quando começou a calmaria no dia 23. (...)

Nesses dias foram apanhadas, em baldes, várias sibas, que nadavam em grande quantidade à volta do navio. Sªao comestíveis, mas só grande fome poderia torná-las iguaria apropriada ao nosso paladar europeu. Seus oito braços verrugosos, os seus tentáculos pontiagudos, sua cauda terminada em ferrão, toda a sua massa gelatinosa, tudo, enfim, torna o animal muito asqueroso. (...) (Johann Emanuel Pohl, op.cit.,26)

Uma referência de Pohl que merece particular atenção diz respeito à urzela (Rocella tinctoria), que crescia abundantemente na região. Devido à tinta azul-violeta dela produzida, era procurada nos rochedos em que cresciam das ilhas atlânticas das Canárias, Madeira, Açores e Cabo Verde.

A urzela era sobretudo comercializada com a Inglaterra, onde já em meados do século XVIII desenvolvera-se procedimento químico para a produção industrial da tinta. Em Cabo Verde, ocorria, entre outras, na ilha de Santo Antão, próxima de S. Vicente.

A referência de Pohl registra o comércio de urzela com a Inglaterra em fins da década napoleônica. De 1812 a 1815, exportaram-se para a Inglaterra por contrato 240 tonéis desse líquen, trazendo um lucro de 11.564 libras esterlinas. (op.cit. pág. 26)

O relato do cientista documenta, assim, a importância de elos comerciais do Cabo Verde com a Inglaterra já antes da época marcada pelo carvão para o abastecimento de vapores, explicando-se assim talvez a necessidade já então sentida de estabelecer-se uma alfândega na povoação que passou a ser designada como Leopoldina.

Repercussões em Cabo Verde das transformações políticas em Portugal

Uma análise mais diferenciada das transformações ocorridas na década de 20 do século XIX no contexto atlântico nas suas relações com desenvolvimentos políticos europeus permite considerar mais adequadamente os presupostos locais da nova fase que se iniciaria no Porto Grande.

Ao pouco sucesso de iniciativas anteriores de desenvolvimento devido a grandes sêcas na ilha associou-se uma transformação de referenciais políticos em contextos internacionais.

António Pusich desenvolveu as suas atividades em contexto político e político-cultural claramente definido como homem da Restauração e da monarquia, apoiado por D. Maria I (1734-1816) e D. João VI (1767-1816), não do movimento liberal que teria a sua expressão na Revolução Liberal no Porto em 1820.

Pusich recusou-se a jurar a Carta Constitucional sem a ordem expressa do rei, enviando para isso o seu filho Pedro António ao Brasil para obtê-la de D. João VI que, entretanto, já partira para Portugal. Essa ida de Pedro António Pusich ao Brasil indica a intensidade dos laços de lealdade do austríaco nacionalizado português ao rei e à esfera política conservadora que sempre o apoiara.

Também o Cabo Verde foi alcançado pelas tensões políticas entre liberais e conservadores, sendo os primeiros, apoiados por pessoas mais abastadas, contrários a Pusich. Este foi, por fim, obrigado a retornar a Lisboa em 1821, onde pôde desembarcar apenas com a intervenção e pagamento de fiança por parte do próprio rei.

Política e redenominação da cidade. De Leopoldina a ato histórico de D.Pedro

As tensões políticas em Portugal intensificaram-se, alcançando um ponto crítico em 1824; os conservadores, apoiados pela rainha e pelo príncipe D. Miguel (1802-1866), procuravam reverter resultados da Revolução Liberal. Com a morte de D. João VI em 1826 e a subida ao trono de D. Pedro como D. Pedro IV, criava-se difícil situação pelo fato de Pedro recusar-se a retornar do Brasil.

Nesse período de regência da sua irmã Isabel Maria (1801-1876), D. Pedro outorgou a Carta Constitucional, mal recebida pelas forças conservadoras, inclusive pela regente. Em 1826, declarou permanecer no Brasil, pretendendo que a sua filha Maria II (1819-1853) assumisse o trono. A guerra dos dois irmãos, Pedro e Miguel marcou o início da década de trinta do século XIX (1832-1834) e teve consequências para o Cabo Verde. Após abdicar do trono brasileiro a favor de seu filho Pedro II (1825-1891), proclamou assumir a regência em Portugal pela sua filha Maria II. Apoio para o seu empreendimento alcançou por parte da França através do "rei-cidadão" Louis-Philippe (1773-1850).
Se o papel dos Açores tem sido sempre considerado nas Guerras Liberais, colocando as ilhas fora da esfera de influência das forças anti-liberais, pouco tem-se salientado o fato de D. Pedro ter entrado novamente em terra portuguesa através do mundo insular com a sua chegada
aos Açores em 1832, onde formou um exército com o qual entrou em Portugal continental. Tendo as suas forças derrotadas em 1834, D. Miguel retorna para o seu exílio na Áustria.

A chegada das forças liberais de ca. 7.500 soldados sob D. Pedro a norte do Porto, na praia dos Ladrões em Arnosa de Pampelido entre Lavra e Perafita, no dia 8 de Julho de 1832, entrou na história sob o título de "Desembarque do Mindelo" e os combatentes liberais de "Bravos do Mindelo". Tratava-se de uma tropa formada com grande maioria de mercenários estrangeiros, entre êles ingleses, franceses, poloneses, italianos, alemães e espanhóis.

A similaridade do mar profundo de Mindelo - razão por que foi escolhido como local de desembarque das tropas liberais - e o Porto Grande da ilha de S. Vicente oferece apenas uma elucidação superficial para o nome de Mindelo no Cabo Verde.

Mais significativo é considerar a associação do nome com a vitória e a nova referenciação política no contexto europeu. Após a tomada de poder liberal em Portugal, em setembro de 1835, passou a governar a ilha Joaquim Pereira Marinho. Significativamente, já em 1836 a ilha foi visitada pelo inglês John Lewis. O seu objetivo era o do estudo das condições do Porto Grande no sentido de transformá-lo em local de escala e abastecimento dos navios britânicos.


O desejo de que a nova cidade comemorasse com o seu nome o desembarque das praias de Mendelo foi expressado no decreto de 11 de Junho de 1838, assinado pela rainha D. Maria II. Ao mesmo tempo, a ereção da cidade deu-se no sentido de uma mudança da capital do arquipélago de Praia na ilha de Santiago ao Porto Grande na ilha de São Vicente, justificada pela malignidade do clima da capital.


A designação de Mindelo relembra e traz conotações múltiplas com processos histórico-políticos e desenvolvimentos econômicos sobretudo relacionados com a Grã-Bretanha. Surge, em visão retrospectiva, em contraste com o nome de Leopoldina, marcada que foi pela Restauração instaurada pelo Congresso de Viena, pela tradição dos Habsburgs e, assim, pelos elos com a Europa Central austríaca.

Esses vínculos e essas associações com o Liberalismo necessitam ser consideradas diferenciadamente no conturbado contexto político de Portugal e refletidas no estudo de Mindelo, oferecendo perspectivas para análises das características de sua vida cultural marcada pela internacionalidade e cosmopolitismo. Não se pode, porém, esquecer que também em Cabo Verde vigararam forças conservadoras, documentadas da forma mais expressiva no fato de ter possuído um austríaco como Governador e uma cidade denominada segundo a Arquiduquesa da Áustria.

Se o nome de Leopoldina da cidade de Pusich indica claramente elos com o Brasil, o mesmo diz respeito a Mindelo, local marcado pela aura do empreendimento ousado de D. Pedro. De Leopoldina a Pedro, não apenas dois nomes, mas duas orientações político-culturais, inseridas em configurações e tendências conflitantes, um campo de tensões no casal imperial do Brasil e que se reflete nas denominações da cidade no Porto Grande.

Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Leopoldina - a cidade com o nome da Primeira Imperatriz do Brasil em Cabo Verde
à luz da presença da Áustria na política científico-cultural na esfera atlântica à época da Restauração". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/12 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Leopoldina-Cabo-Verde.html