Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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©Arquivo A.B.E.


 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 144/10 (2013:4)
Professor Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 3014




Que tipo de Ser há dentro da flauta que transforma o sôpro em fogo aniquilador?
O ney e o mentor plenamente desenvolvido na tradição Mevlevi e suas repercussões no ensino no Brasil

Fundamentos antigos de concepções do Sufismo considerados a partir da tradição religioso-cultural brasileira IV


Turquia no Ano Brasil/Alemanha 2013 da A.B.E. (III)

 

Muitos dos brasileiros que atualmente em grande número visitam a Turquia (Veja http://revista.brasil-europa.eu/144/Turquia-Alemanha-Brasil.html) têm a oportunidade de presenciar execuções de música tradicional turca e tomar um primeiro contato mais atento com uma cultura musical que lhe parece distante e enigmática sob muitos aspectos.

Um deles reside na surprêsa que lhe causa constatar o extraordinário significado concedido à flauta de cana (nãy/ney) na tradição islâmica, não apenas pela própria música, pelas características distintas do instrumento e do modo de execução, mas sim e sobretudo pela atitude de profunda introspecção do instrumentista e as deferências que é alvo.

Foto A.A.Bispo©

Esse significado não corresponde à imagem que o visitante possui da flauta em geral, marcada antes por associações de leveza e mesmo brejeirice, de vivacidade de bandas de música, idílico-bucólica ou sentimental de serestas e choros. Corresponde menos ainda a imagens que possui dos pífaros da tradição popular ou, mais drásticamente, da flauta doce empregada no ensino musical que tanto o marcou o instrumento como simples instrumento escolar e infanto-juvenil.

O uso do instrumento por professores de jardins da infância, escolas primárias e músico-terapeutas com poucos conhecimentos e aptidões musicais, defendido e propagado por muitas razões já há décadas no contexto de determinados métodos pedagógicos e na formação de professores de Educação Musical, levou a que o instrumento passasse a ser desprezado como de fácil execução, primário e mesmo ridicularizado devido à insuficiência técnica e musical dos instrutores que os utilizam.

Essa imagem da flauta-doce, que desperta pela ingenuidade bem intencionada de seu uso anedotas e comentários irônicos acompanhados por sorrisos condescendentes, relaciona-se com uma depreciação da autoridade daqueles que os empregam no desempenho de papéis de mentores.

A influência dessa imagem desvalorizante do instrumento na recepção de repertório musical de passado mais remoto vem preocupando há décadas instrumentistas e cultores de música antiga. Nessas tentativas de valorização do instrumento, tem-se procurado salientar as potencialidades sonoras e técnicas da flauta-doce na criação musical contemporânea e na prática artística do presente, também por parte de compositores brasileiros.

Mesmo tendo conhecimento dos extraordinários esforços mais recentes de revalorização e mesmo nobilitação do instrumento e do seu tratamento em conjunto, aproximando-o da música de órgão, como empreendidos pelo organista e compositor Calimério Soares (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Aquarela-Brasileira.html), o visitante brasileiro da Turquia constata uma profunda diferença não apenas quanto à música na sua realidade sonora , mas sim quanto a seus sentidos mais profundos ou velados, da atitude do executante e da autoridade que lhe é reconhecida.

A flauta e o chapéu (külah, sikke) nas suas relações - o mentor plenamente desenvolvido

Em cartazes e reclames de CDs que por muitos lados anunciam improvisações de nãy - p.e. de Süleyman Yardim na tradição derviche, por ela marcada ou imbuída do seu espírito (Dervished music) - o visitante ocidental atento surpreende-se em constatar uma relação entre a flauta e o chapéu cônico do seu executante , ambos surgindo juntamente como emblema ou símbolo.

Em visita ao museu-mausoléu de Konya, antigo centro da tradição musical dos derviches, local da tumba do fundador da Ordem Mevlevi (Veja artigo a respeito nesta edição ), o visitante ocidental obtém então esclarecimentos a respeito dessa à primeira vista incompreensível relação entre a flauta e o chapéu.

Nas câmaras que expõem instrumentos musicais e seu uso na ordem através de quadros encenados, pode ler cartazes que, em diferentes idiomas, reproduzem frases de misticos e eruditos poetas de renome do passado e que indicam o sentido espiritual do nây.

Essas referências demonstram a necessidade de uma atenção mais aprofundada a concepções e imagens da mística islâmica para a compreensão do instrumento, de seu simbolismo, dos sentidos subjacentes à sua música e da função daquele que o executa.

Somente a partir das inserções do instrumento no complexo universo do Sufismo nas suas interações de percepção sensorial e sentidos espirituais e de interpretações religiosas e poéticas é que se pode compreender o seu uso emblemático ao lado do chapéu. Essa relação é expressamente tematizada no museu, salientando-se que o tocador de nây assemelha-se ao mentor totalmente desenvolvido (mürshid-i kamil).

As elucidações do sentido dessa aproximação do instrumentista ao mentor, que torna compreensível a sua preeminência e autoridade, exigem esforços ainda maiores de entendimento por parte do observador ocidental, pois indicam um relacionamento com a sepultura e, assim, com a morte.

O chapéu cônico do derviche, que pode ter um turbante à sua base, é elucidado como uma imagem de tumba, correspondendo à representação de coberturas de cabeça em sepulcros muçulmanos. Essa imagem é elucidada no sentido de indicar a superação do ego tal qual tumba pelo derviche no caminho à Unidade e Perfeição e no seu retorno transformado ao mundo. 

O sikke é sinal dos Mevlevis e mesmo inscrições com palavras de oração e palavras de benção podem apresentar a forma desse capuz de derwisch, como tratado e ilustrado no fundamental livro de Annemarie Schimmel (Mystische Dimensionen des Islam: Die Geschichte des Sufismus, 2a. ed., Munique: Diederichs 1992, 1a. ed. alemã 1985; The University of North Carolina Press, Chapel Hill 1975, 458 e 461).

As relações entre a flauta e o capuz podem ser elucidadas a partir do sama', ritual que constitui o cerne da vida mística da Ordem Mevlevi e que é apresentada em quadros encenados em tamanho natural no museu/mausoléu de Konya.

Essa prática presentifica o morrer e o renascer em amor (A. Schimmel, op.cit. 459) experimentado pelo derviche na união mística no cume do vôo ascensional. Essa viagem é uma viagem interior, ao coração, ao "mar da alma".

Não podendo permanecer no estado de êxtase da vivência da Unidade, onde participa de mistérios inexpressáveis, é obrigado a separar-se, trazendo a lembrança dessa esfera inefável, repleto de saudades de retorno.

Concepções antropológicas: a flauta de cana como símbolo da alma

Na linguagem de imagens de Rumi, o poeta e místico venerado no mausoléu de Konya, o homem surge como instrumento executado por Deus. Êle é instrumento de corda, que soa quando os Seus dedos tocam, êle é flauta que expressa os Seus mistérios quando infusa com o sôpro divino. (op.cit. 238).

Essas imagens, conhecidas da Antiguidade em diferentes contextos e narrativas, manifestam os remotos fundamentos da linguagem visual da prática mística islâmica.

Se essas concepções foram expressas em antigos mitos, também no contexto místico islâmico são elucidadas poeticamente em estórias. Assim, o poema introdutório do Mathanawi é o "canto da flauta de cana". A cana lamenta ter sido cortada do canavial onde vivia às margens de um lago e tem saudades de casa. Ela fala do mistério da união divina e do amor a todos aqueles que "têm ouvidos para ouvir". (op.cit. 448)

Como A. Schimmel salienta, o conteúdo dessa narrativa não era novo, sendo já conhecido de narrações, dizeres e provérbios antigos. Uma delas narra que o confidente de um rei sofria pelo fato de ter-lhe sido vedado contar os segrêdos a êle confiados; dirigindo-se a um mar solitário, ali o anunciou, sendo ouvido pela cana que crescia às margens. A cana, porém, foi cortada e transformada numa flauta, passando a revelar a todo o mundo o mistério. (ibidem)

A flauta de cana, como transmitido poeticamente nessas narrativas, lamenta em saudades pelo local de onde foi cortada, é plena de anelos de retorno à união. Tocada pelo sópro de um amigo, torna-se capaz de manifestar os mistérios que, caso contrário, permaneceriam velados (op.cit. 449).

Assim, a flauta de cana é estreitamente relacionado com o sentimento e o conceito de saudades nos seus mais profundos significados, pois ela canta a saudade da terra natal (op.cit. 466). Nesse sentido, compreende-se também ter sido o instrumento relacionado figurativamente com a razão, desde que esta anuncia a música da Divina Sabedoria (op.cit. 550).

Martin Braunwieser.Foto A.A.Bispo©

A flauta e o sôpro que deflagra o fogo - Pneuma e alma

A partir dessas elucidações, o visitante do museu/mausoléu de Konya sente-se mais em condições de aproximar-se ao sentido de uma questão que é colocada num dos quadros informativos: Qual é o tipo de Ser que haveria dentro do nây que faz com o sôpro se transforme em fogo destruidor?

Nessa indagação pode-se reconhecer concepções conhecidas da Antiguidade e da tradição cristã relativas ao Pneuma. Nela e nas concepções acima citadas trata-se do sôpro, do espírito, e que, sem poder ser compreendido apenas como ar, surge na linguagem figurada como vento (animus), e nos dizeres do museu de um ar fogoso ou que deflagra ou aumenta o fogo que queima. A compreensão da flauta de cana como uma imagem da alma relaciona-se aqui com a concepção de alma-sôpro.

A menção ao fogo que queima e destrói pode ser entendida no sentido do "morrer antes da morte", ou seja, da separação do derviche e do iniciado quanto ao mundo, levando-o a represenciar a ascensão no ritual. É esse fogo que figurativamente queima aquilo a que se prendia no mundo, tais como ídolos que são fundidos.

A menção a um fogo que destrói - e que é imagem que causa maior estranheza a um observador ocidental - pode ser entendida das relações do instrumento com o chapéu e este com a tumba. Se esta diz respeito ao derviche que morre para o mundo, que dele se separa, que não tem bens e mendiga, ou que, na sua atuação para com os homens está morto para o mundo, tendo superado os impulsos do seu ego, a destruição causada pelo fogo refere-se ao que é aniquilado no mundo no caminho que dirige ao alto.

Imagens orientais vistas pelo observador ocidental

O visitante ocidental que se confronta com essas imagens e concepções relacionadas com o ney na Turquia em geral, e em Konya em particular, toma consciência do significado que estudos da tradição mística islâmica pode adquirir para a consideração mais aprofundada da sua própria cultura.

Muito do que aprende e observa surge como familiar, existente na sua própria cultura e e tradições, ainda que de modo fragmentário e menos refletido. Êle reconhece que muitas concepções transmitidas poeticamente em linguagem visual são conhecidas de remoto passado, levando a fundamentos resultantes de uma visão do mundo e do homem que seriam comuns. Considerá-los poderia levar a compreensões mais profundas de sentidos de próprias expressões, e mesmo a recuperações e reconstruções de um todo cultural.

O observador ocidental conscientiza-se, também, que esse impacto causado pelo confronto com a tradição mística islâmica não é novo, que a sua redescoberta no Ocidente já tem séculos, deu margem a estudos e a correntes de pensamento, passando elas próprias por transformações. Considerar esse desenvolvimento surge como pressuposto para um posicionamento consciente e para o prosseguimento das reflexões.

Essa exigência diz respeito em particular ao Brasil, uma vez que o país contou com a atuação por décadas de uma personalidade que como poucas da história da música do Ocidente no século XX procurou, partindo de uma concepção da flauta marcada pelo Sufismo, não apenas contribuir a uma compreensão mais profunda do instrumento como também à formação de mentores plenamente desenvolvidos para o ensino musical: Martin Braunwieser (1901-1991).

Oriente visto do Ocidente em círculos musicais antroposóficos na Europa de língua alemã

A influência do Sufismo relacionadas com a música e o ensino musical no Brasil apenas pode ser compreendida através de sua recepção em meios musicais na Europa Central de língua alemã, em particular na esfera da antiga Dupla Monarquia, o império plurinacional austro-húngaro.

Um dos principais centros marcados pela renovada atenção à cultura musical oriental, em particular do Extremo Oriente foi o Mozarteum de Salzburg quando da sua reestruturação sob Bernhard Paumgartner (1887 -1971) a partir de 1917, como programas de audições escolares e concertos. O seu melhor discípulo - e amigo - foi Martin Braunwieser, estudante de flauta de Anton Schöner e que, dedicando-se ao estudo da literatura e música oriental, salientou-se pelos seus esforços de recuperação de uma compreensão mais profunda do instrumento e de sua música. (A.A.Bispo, Martin Braunwieser: Spiritualität, Neue Sachlichkeit, Klassischer Humanismus und die Musiktraditionen des Orients und Okzidents in Pädagogik und Künstlerischem Schaffen - Ein Beitrag zum Österreichischen und Deutschen Einfluß auf die Musik Brasiliens des 20. Jahrhunderts, Köln: Luthe 1991)

A recepção de correntes do pensamento oriental deu-se por intermédio e por influência de correntes teosóficas e a seguir antroposóficas transmitidas sobretudo por Felix Petyrek (1892-1951) a partir de 1919. Este, que trabalhara com Bernhard Paumgartner nos anos da Guerra na Central Histórico-Musical do Ministério de Guerra da Dupla Monarquia, foi principal mestre de Tatiana Kipmann, a futura esposa de Martin Braunwieser. Esta o acompanhou durante os seus três anos de permanência em Abbazia e ambos como professores a Atenas, quando, a partir de 1926, passou a dirigir a classe de piano do Conservatório. Em 1926, Martin Braunwieser compôs em Atenas a primeira de suas Melodias Orientais (Orientalische Melodien) para orquestra, que mais tarde também seria denominadas pelo compositor no Brasil de Melodias Grécias (sic).

Martin Braunwieser apresentou-se como compositor dedicado a problemas da música oriental em concerto realizado no dia 3 de maio de 1928.  Nêle, apresentou duas das canções (2 e 5) do ciclo composto sobre textos persas, em 1921 (5 Mélodies d'aprés les poésies de Omar Kaijam), e opartes de duas obras novas, compostas respectivamente em 1927 e em 1928: 6 Tableaux orientaux, para flauta e piano (1, 2 e 3) e Suite pour instruments à vent (II, III e IV movimentos). A obra, apresentada ao público grego sob o título francês 6 Tableaux orientaux, recebeu posteriormente diferentes denominações. 

Como compositor marcado por concepções orientais M. Braunwieser voltou a ser lembrado em Salbzurg em 7 de fevereiro 1930. A sua peça Aus dem Orient, para flauta e pequena orquestra, dedicada a seu professor Anton Schöner, foi por este executada em concerto dirigido por B. Paumgartner em 1930.

O programa do concerto esclareceu os objetivos da obra, salientando que Aus dem Orient dava à flauta o lugar de preeminência, servindo a orquestra apenas como corpo de acompanhamento, devendo acomodar-se o mais suavemente à execução do instrumento solista. O concerto foi comentado no Salzburger Volksblatt, de 8 de fevereiro de 1930, que salienta ser uma música nervosamente sutil, de colorido um tanto místico (...) Ao instrumento parece que é próprio um certo tédio de vida. (op.cit. 94)

Presença de concepções do Sufismo no ensino e na formação de professores no Brasil

Essa proximidade de Martin Braunwieser ao Sufismo, obtido também por intermédio de sua proximidade a ciclos teosóficos e antroposóficos, explica muitas de suas atitudes, modos de procedimento e formas de atuação no ensino musical e na formação de professores de Canto Orfeônico no Brasil e que, não bem compreendidas, deram motivo a uma inadequada apreciação de sua personalidade e obra.

A sua profunda concepção do papel do instrumento de sôpro, em particular da flauta, manifestou-se não apenas nas suas composições, como também no ensino. Os fundamentos dessa concepção residiam na concepção do sôpro, do ar como portador de um espírito vivificador, um fogo espiritual de amor, mas que, levando à espiritualização, contribuia à queima de elos do homem com o mundo material.

A sua atitude pessoal, e aquela que procurava transmitir aos professores de música que com êle se formavam, mal-compreendida como simples expressão de modéstia e simplicidade, era fundamentada em concepções místicas do mentor plenamente desenvolvido.

Para a discussão dessa concepção místico-filosófica da prática instrumental e do ensino musical nas suas contextualizações histórico-culturais, realizou-se, por ocasião da sua última visita à Europa, em 1989, um encontro de pesquisadores culturais e de estudiosos da mística medieval na Abadia de Eibingen, Alemanha. Procurou-se, nessa ocasião, discutir similaridades e diferenças de concepções entre a mística por êle representadas e aquela da tradição cristã.

De ciclo de estudos sob a orientação de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Que tipo de Ser há dentro da flauta que transforma o sôpro em fogo aniquilador? O ney e o mentor plenamente desenvolvido na tradição Mevlevi e suas repercussões no ensino no Brasil".
Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 144/10 (2013:4). http://revista.brasil-europa.eu/144/Ney-no-Sufismo-e-Flauta-no-Brasil.html